Por baixo do grafiti do Armazém Vieira

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Há muito mais sob o grafiti do Armazém Vieira, em Florianópolis, do que a fachada de um prédio histórico. Encoberto pelo debate sobre arte urbana contemporânea está o golpe do projeto de Plano Diretor que o prefeito quer aprovar de uma hora para outra sem que o povo sequer o conheça direito.

Primeiro vamos falar do grafiti, pois ele faz parte do espaço urbano da nossa capital, conceito varrido do mapa pelos especuladores que dominam o poder político local distribuindo sacos de moedas a vereadores nativos corruptos que fazem do mandato meio de vida.

A questão é: um prédio antigo deve ser mantido exatamente na sua pintura original ou é possível alterá-la sem comprometer a construção e o que ela significa como registro histórico? Considero um absurdo apagar uma obra de arte. É um crime contra a humanidade. É ridícula a determinação de um órgão público (o IPUF) que obriga a pintar com uma cor morta e sem arte um prédio como o Armazém Vieira, depois que sobre ele foi construída uma obra de arte. Nada será mais belo que o maravilhoso grafiti que lá está. Ele é patrimônio artístico-cultural da comunidade humana. Seria quase como limpar a tela de um Dali só porque alguém acha que o entalhe da sua moldura é mais importante que a tela. Dirão arquitetos que o desenho da fachada, com suas portas e janelas talhadas em madeira ao estilo da época, assim como os detalhes do reboco e as proporções da construção somente se expressam como elemento estético do seu tempo, quando realçados por uma pintura neutra que valoriza cada detalhe. Têm certa razão, mas não toda. No caso, temos uma espécie de simbiose entre duas obras de arte: a arquitetônica – espacial, tridimensional, concreta e estética – e a pintura, ao mesmo tempo concreta e abstrata, emocionalmente mais intervencionista e também de altíssimo valor estético, que atua sobre a primeira.

A arte da segunda metade do século XX (pelo menos o que há de novo nesse período) é marcada pelas grandes ocupações dos espaços públicos, confundindo-se muitas vezes com a arquitetura. Talvez Niemeyer seja a maior expressão desta ideia. É exatamente ao sair dos museus, comumente frequentados por uma pequena parcela da população e tomando as ruas sem pedágio ou ingresso pago, que a arte revela sua veia revolucionária ao tornar-se acessível a todos. O velho Marx já alertava que “a propriedade privada nos fez tão idiotas e passivos que um objeto só se torna nosso se o possuímos, ou seja, se ele existe para nós enquanto capital ou se é usado por nós”. A arte das ruas quebra esta lógica assim como os prédios do nosso grande arquiteto vermelho e assim como o grafiti do Armazém Vieira.

A intensidade do impacto sensorial sobre as pessoas causada pelo prédio do Armazém com e sem o grafiti é incomparável. Pintado com as cores originais é um prédio antigo bonito que causa impressão sensorial, principalmente quando tudo em volta segue padrão meramente funcional e sem graça. Já o belíssimo grafiti sobreposto ao prédio causa emoções muito mais intensas e de outra natureza sobre a alma humana.

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O prédio grafitado foi valorizado pelo registro histórico autêntico da cultura de hoje que absorveu o antigo e conectou-o ao presente revitalizando-o. O Armazém Vieira está intacto na sua construção preservando o valor arquitetônico e agregando mais. O exterior foi embelezado pela intervenção artística contemporânea e juntamente com o interior intacto, conserva toda a sua História. A pintura conecta o prédio com uma geração que nasceu expoliada, excluída, mas encontrou formas de resistência criativa no grafiti e no hip hop. Eles não tiveram tempo nem espaço para se preocupar com a diferença entre um prédio antigo ou uma casa velha. Apesar disso conseguem sentir o que significa mudar as coisas quando pintam e deixam a marca de sua classe sobre uma “propriedade” que não podem ter. Uma obra de arte na rua, pode ser apropriada por todos, ao contrário de uma propriedade imobiliária na maior parte das vezes inacessível. Apropriando-se subjetivamente da obra de arte pintada na superfície, o prédio histórico que está embaixo passa a ser respeitado e apropriado também na suas dimensões estética, cultural e revolucionária.

Agora vamos do luxo ao lixo. Não se trata aqui da falácia de atacar o autor para desmerecer a obra, mas de entendermos o mundo em volta para agirmos com mais consequência nas tentativas de transformá-lo. O IPUF, órgão de pseudo controle da ocupação do espaço urbano, personagem deste episódio, é uma fachada a serviço da especulação imobiliária. Ao longo do tempo seu papel tem sido autorizar a destruição de quase todos os prédios históricos da cidade incluindo o quase extinto centro antigo.

Querem cometer qualquer crime contra o patrimônio público em nome do dinheiro? Basta financiar a campanha de alguns vereadores ou deputados que acabam nomeados para o IPUF e resolvem o problema. Casarões belíssimos dão lugar a edifícios de vidro iguais a todos os outros edifícios de vidro. Nem a arquitetura da primeira metade do século XX foi preservada. Crimes bárbaros contra os espaços públicos e a História de Santa Catarina são perpetrados desde sempre por uma burguesia ridícula, provinciana e colonizada que se comporta como uma corte vitoriana, diante da passividade de um povo que se contenta com migalhas, sem noção do que lhe pode ser de direito se lutar por isso.

O caso do Armazém Vieira pode servir de estopim para fazermos a discussão sobre este estupro que o prefeito está cometendo ao empurrar um Plano Diretor sem discussão séria e a toque de caixa.

Qual a pressa? Seus financiadores de campanha estão ansiosos para construir nas dunas? Para derrubar prédios históricos? Para ocupar espaços públicos? Qual a dificuldade de fazer uma discussão séria por seis meses que seja? Um texto legal é cheio de armadilhas que a maioria das pessoas não entende e mesmo os especialistas precisam estudar detalhadamente comparando suas disposições com o mundo real sobre o qual vai gerar efeitos. O prefeito, que é esperto, faz reuniões em que só ouve cidadãos isolados reclamarem do buraco em frente a casa e se faz de surdo quando alguém tenta discutir organização do espaço público sob o prisma dos interesses coletivos das pessoas que vivem nele e não das construtoras que o enxergam como objeto de lucro.

A arte de rua, como o grafiti, não deveria também ser objeto de um Plano diretor sério? Chega de assistirmos passivos às tentativas de estabelecer limites para a arte e para a preservação do meio ambiente enquanto se tenta justificar a destruição da cidade em nome do “desenvolvimento”, como se destruir fosse a única forma de desenvolver.

A arte é intervenção política e é através dela que talvez possamos redimir a humanidade de um destino medíocre. À luta! Pela preservação do grafiti no Armazém Vieira! Pela suspensão da tramitação do Plano Diretor de Florianópolis! Pela defesa e ampliação dos espaços públicos!

O que precisa de limites é a especulação imobiliária, não a arte.

Fonte: Crítica da Espécie.

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