A esposa de Nelson Mandela, Graça Machel, a brilhante dirigente moçambicana, continua a dizer o que pensa sobre o governo neoliberal do ANC. Estos não são os melhores tempos para a África do Sul. O temor e o ódio estão em todo o lado, a imprensa está cheia de novas acusações de corrupção, e a inquietação amplia-se inclusivamente quando o país se prepara para acolher a Cimeira Económica dos países BRICS, aos quais pertence juntamente com Brasil, Rússia, India e China. A África do Sul enfrenta um crescimento do desemprego e um mal-estar económico e político que se infiltra por toda a parte.
A esposa de Nelson Mandela, Graça Machel, a brilhante dirigente moçambicana que se casou com o homem que todos designam pelo seu nome de clã Madiba, continua a dizer o que pensa, inclusivamente quando o seu esposo Nelson Mandela já não pode fazer o mesmo devido à sua idade e estado de saúde. Graça Machel crê que África do Sul é uma nação “encolerizada … à beira de algo muito perigoso”. Fez estas declarações no funeral de um taxista moçambicano cuja morte às mãos da polícia foi captada com uma câmara de telefone móvel e foi difundida por toda a rede. Apesar do vídeo a polícia nega a sua brutalidade, o que indigna ainda mais um país que parece estar cada vez mais farto de políticos que saqueiam os seus recursos.
Machel não poupou palavras, afirmou que a África do Sul é uma sociedade que “sangra e respira dor”, e advertiu que o ” problema mais profundo é um passado que não é abordado”. Esse “problema mais profundo” evocava a transição negociada que levou ao poder político o Congresso Nacional Africano (ANC), mediante eleições, em princípios dos anos 90, mas que deixou o poder económico nas mãos de uma elite, na sua maioria branca, dominada pelas grandes empresas e pelo “complexo minero-energético”. O economista Sampie Terrablanche conta essa historia no seu livro “Lost in Transformation”, a história de um neoliberalismo imposto pela pressão das multinacionais, das instituições financeiras internacionais e de governos estrangeiros como os EUA e o Reino Unido. Há muitas vozes críticas. Mamphela Ramphele, antiga camarada de Steve Biko, uma médica convertida em banqueira, perita em pobreza e empresária, lançou um novo partido político, Agagng (que em sesotho significa “construir”), para desafiar o ANC.
Embora careça de uma base com as raízes profundas do ANC na comunidade negra, a sua análise ecoa com força. O seu programa, cujo objectivo é “reviver o sonho de África do Sul”, afirma que “o país de nossos sonhos, infelizmente, desvaneceu-se… O sonho desvaneceu-se para muitos que vivem na pobreza e na indigência”. Num lírico apelo à memória e à militância pergunta: “¿Recordas-te da nossa paciência e tranquila dignidade enquanto esperávamos em longas filas para votar pela primeira vez como cidadãos de uma África do Sul livre? ¿Recordas como te afogava a emoção e se te punha a pele de galinha quando marcaste pela primeira vez a cruz no boletim? ¿Recordas-te das lágrimas de alegria e de alívio quando vimos o nosso primeiro presidente, Rolihlahla Mandela, honrado pelo voo rasante dos caças de uma força aérea que ia a ter o seu primeiro comandante em chefe eleito democraticamente? ….
¿Recordas o sonho que abraçámos de construir uma grande sociedade que fosse nossa, uma próspera democracia constitucional unida na sua diversidade?”. Ramphele critica a corrupção, mas os meios de comunicação se encarregarão de que a nova iniciativa política tenha poucas possibilidades de êxito. Outros partidos, incomodados por ela não se lhes ter aliado, mantêm-se distantes, mesmo aqueles cujos líderes, como Mangosuthu Buthelezi, se sentiram animados por esta iniciativa a lançar novas críticas contra o ANC: “A mensagem do Estado da Nação da semana passada (do presidente Jacob Zuma) deixou-nos sem a menor duvida de que chegou momento de afastar do poder líderes que não são aptos para governar. Chegou o momento de fechar as portas desta primeira República governada pelo ANC, e acabar decididamente com todas as ineficiências, as deficiências e os problemas que o ANC trouxe consigo.
O ANC já não é o partido dos visionários de 1912; o partido do Dr. Pixley ka Isaka Seme, de Inkosi Albert Luthuli e Nelson Mandela. Este ANC é corrupto. Está a defraudar a África do Sul”. O que Buthelezi e outros críticos do ANC parecem esquecer é que o anterior governo, o regime branco de apartheid, era tão ou mais corrupto, embora talvez mais discreto e controlava os meios de comunicação de maneira que no havia perigo de que a coisa fosse divulgada. Para além disso, sempre que alguém recebe dinheiro, alguém o está a dar, tal como faziam as empresas estrangeiras de armamento que recorriam ao pagamento de comissões para ganhar concursos na África do Sul. Não será por isso que o que acontece agora se torna mais aceitável, mas demonstra que existe um contexto mais profundo que implica algo mais do que os funcionários do ANC. Não é só a comunidade negra que se vê prejudicada ou envolvida nestas práticas. Os hindus e os brancos também estão comprometidos.
Num país chocado pela actual crise interna de violações e abusos infantis, todos as primeiras páginas foram para o caso do atleta paralímpico Óscar Pistorius, que disparou e matou a sua noiva modelo. Ambos eram brancos. Como assinalou a Eurasia Review: “O caso de Pistorius não pode … ser tratado isoladamente de uma cultura complexa, o que faz com que o seu resultado final constitua um momento decisivo para África do Sul. Que seja capaz de mudar a cultura sociopolítica é farinha de outro saco. Entre 2011 e 2012, dois centros de acolhimento importantes da Cidade do Cabo, que historicamente têm dado resposta a diversas formas de violência de género, lutavam pela sua sobrevivência”. A família de Pistorius defendeu o seu direito a deter o arsenal de armas encontrado em sua casa, e que sem dúvida existe em outros lares.
A violência é endémica numa cultura da pobreza e da insegurança pessoal porque o crime se converte num sistema de redistribuição primitivo e desigual. A Eurasia Review acrescenta: “A par desta luta pela sobrevivência, outros dois acontecimentos políticos importantes tiveram lugar na África do Sul. O primeiro foi o assassínio público dos mineiros em Marikana, que se atreveram a protestar para exigir um salario digno; e o segundo foi a sucessiva apresentação e retirada em varias ocasiões do projecto de lei sobre os tribunais tradicionais … “Este projecto de lei é considerado um retrocesso nos direitos das mulheres, ao fazer dos chefes tradicionais poderosos senhores que não estão sujeitos a controlo democrático ou à prestação de contas”. Deste modo, se se investiga um pouco abaixo da superfície de quase qualquer tema, encontrar-se-ão correntes de dissensão e desacordo, e denúncias coléricas contra aqueles considerados responsáveis.
A profundidade desta desafeição popular face ao governo e o desgosto pela direcção que o país tomou não encontra reflexo adequado nos meios de comunicação. O sentido de camaradagem, a unidade e o sentimento de coesão social – o “nós”, não o “eu”- que unificou os sul-africanos durante anos na luta parece estar a evaporar-se à medida que se aprofunda a desigualdade e as pessoas lutam para sobreviver economicamente como indivíduos numa economia que não está a crescer com suficientemente rapidez para promover o desenvolvimento económico, e permanece em grande medida controlada pelos proprietários brancos das multinacionais e dos bancos. O sentido de solidariedade tradicional, a coesão de classe e comunidade estão sendo questionados por um darwinismo flagrante, a ponto de que até os pobres abraçam valores fundamentais do capitalismo: “a caridade começa por si mesmo”, sobretudo quando os serviços do governo, o que eles chamam “cumprir as promessas”, fracassam ou não existem.
No outro dia sentei-me junto a duas mulheres sul-africanas, uma chamada Confiança, a outra viúva de um antigo comandante do clandestino exército do ANC, o MK, que lutou pela libertação do país. Ambas estão frustradas pela lentidão das mudanças, e necessitam de cuidados médicos fora do seu alcance. Ambas trabalham, mas os seus salários não cobrem as suas despesas. Anteriormente politizadas, parecem agora passar a maior parte do tempo na Igreja, orando para pedir a intervenção divina. Na sua autobiografia “Longo caminho para a liberdade”, que se converterá em breve num filme de longa-metragem, Nelson Mandela advertiu que quando se chega ao cimo da montanha, aparece sempre outra a seguir que alguém terá de subir. Os sul-africanos têm ainda muito que escalar.
Fonte: O Diário.info