Por que não podemos tolerar Feliciano?

Marco Feliciano
Marco Feliciano

Por Allan Kenji Seki.

Nas últimas semanas temos assistido as manifestações contrárias e a favor à permanência do deputado Marco Feliciano (PSC-SP) na presidência da comissão de direitos humanos da Câmara dos Deputados. Entre os despautérios do deputado que já afirmou que só sai do cargo morto, destacam-se: “Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato” e “O reto não foi feito para ser penetrado – não sou contra o homossexual, sou contra o ato homossexual”. Houve também a detenção de dois manifestantes (27/03) e a mobilização de vários setores da sociedade brasileira contra ou a favor de sua continuidade.

Algumas armadilhas e outras mais

Diante desses absurdos, há duas posições possíveis. A primeira é nos colocar na posição ridícula de debater qual versão da bíblia Feliciano leu, ou ainda pior, podemos começar a debater se os homossexuais preferem relações anais, orais ou todas as outras infinitas possibilidades sexuais legadas pelo corpo e pela criatividade.

A outra possibilidade é levar o pastor a sério. Em meio a todas as baboseiras publicadas nos grandes jornais do país, uma questão foi tratada quase que aos sussurros, mas vale a pena ser pensada: por que não podemos ser tolerantes em relação às crenças evangélicas do pastor? Não seria isso um contrassenso já que exigiríamos dele justamente tolerância e respeito às diferenças?  No fim, não importa apenas que possa existir um espaço salutar onde aqueles que partilham de posições distintas e irreconciliáveis possam encontrar uma forma de coexistir?

Essa questão, obviamente brinca com um falso contrassenso, e formulada dessa forma é, em si, a própria objetivação da ideologia. Pela própria ordem em que essas perguntas são feitas.Primeiro, nos colocam na posição de intolerantes: nós é que cometemos o excesso ao não conseguir “tolerar” os valores e concepções do deputado.Em seguida nos coloca na posição de precipitados – entendemosmal certas posições do deputado e apressadamente concluímos que por ser pastor e evangélico ele não poderia abrir mão de certas particularidades de suas crenças em favor de valores supremos como a dignidade humana e assim por diante. E por fim, o golpe de misericórdia: em nome do não-conflito devemos tratar como se o espaço público e o privado fossem a mesma coisa. Em outras palavras: devemos evitar o verdadeiro debate político.Há espaço para todos! Todas as posições políticas são válidas e podem coexistir mesmo que sejam absoluta e radicalmente opostas.

O absurdo dessa posição é que faz desaparecer por meio de fraseologias que poderíamos aceitar facilmente (“podemos todos conviver pacificamente”, “vocês ai, nós aqui”, “há espaço para todos”) a preservação do espaço público como espaço privilegiado da política.

Ingenuamente poderíamos percorrer o caminho lógico implícito e aceitar as teses subjacentes: é a mesma coisa odiar negros e homossexuais, considerá-los estúpidos, condenados pelo pecado e assim por diante; no espaço privado e calado de uma consciência conservadora na presidência da comissão de direitos humanos da Câmara dos Deputados, sendo um deputado!Só há uma forma de fugir dessa armadilha ideológica: negar suas teses implícitas e debatê-las rigorosamente. O primeiro passo aqui, é fugir desse dispositivo, afirmando que o âmbito público não pode comportar elementos de contradição dessa ordem. Não é que ele deve sair, ele deve ser removido do cargo – a lição aqui é que sua chegada ao cargo é tão importante quanto sua saída! – por ser um cargo público incompatível com os valores que ele expressou.

Mas se devemos defender a primazia do espaço público como essencialmente político, isso não quer dizer que o privado também não o seja. Assim, precisamos também fugir da armadilha no polo oposto, que nos diria“bom, cada um pode pensar e agir conforme sua própria consciência no âmbito privado (se eu quiser ser evangélico, racista, sexista, criacionista, homossexual, etc. ninguém tem nada a ver com isso, desde que eu também não tenha nada a ver com eles)”. A armadilha aqui é aceitar que não existem limites para o âmbito privado, fazendo reviver a velha múmia do individualismo levado ao extremo, que parte do princípio de que entre Eu e o outro não existe nada. Ou ainda, outra armadilha: já que há limites para o âmbito individual, precisamos intervir abruptamente, que reflete a posição política imatura de estabelecer uma tentativa depoliciamento da subjetividade.

Existem limites para o âmbito privativo da consciência de cada sujeito, sobretudo quando decorre dela atos que mudam as coisas para todos nós. Mas não é com saídas autoritárias, policialescas e punitivas que poderemos resolver esses problemas sociais de ordem subjetiva, mas com a Política.

Mas, afinal, por que não toleramos o Feliciano?

Curiosamente, existem duas possibilidades etimológicas para a palavra “tolerância”: (a)tolerare que pode significar suportar, levar, aceitar implicitamente, aguentar e (b) tollere que pode significar tirar, destruir. Talvez isso indique em algum sentido que podemos aguentar a existência de posições contrárias às nossas desde que, e somente se, intimamente ainda acreditamos que poderemos destruí-las. Essa, obviamente, é uma posição ambivalente que ainda existe suprassumida sob o signo de “tolerância” que afirma e ao mesmo tempo subverte seu sentido – talvez isso explique parcialmente como uma palavra pode ser tão mal utilizada ao longo da história[1].

Talvez nossa única postura verdadeiramente éticaseja assumir o imperativo da retomada do espaço público como o espaço de confronto entre as infinitas posições subjetivas e objetivas.  Portanto, ao invés de “tolerar” o pastor Feliciano, devamos leva-lo à sério e ir com as manifestações até as últimas consequências políticas, com sua remoção do cargo – e consequentemente, o resgate da comissão de direitos humanos para uma função que não seja a de mera de moeda de troca na composição eleitoral realizada pelo Partido dos Trabalhadores e sua “base aliada”.

Mas isso não pode ser realizado por completo sem assumirmos que o espaço público não é o espaço da aceitação universal. Nele não pode haver espaço para o cinismo, nada pode subjazer, tudo deve ser trazido à tona e levado a rigorosamente a sério. A mensagem que o espaço público torna audível, para a amargura dos conservadores e dos falsos progressistas é justamente que nele há a liberdade para debatermos aberto de todas as questões, mas nem todas as posições podem sair ilesas de um debate sério – as posições irreconciliáveis não irão se reconciliar no final. O que persiste no fim não é a falsa conciliação “tolerante”.

A mensagem é clara aqui: não há espaço para todas as formas de satisfação das vontades (mesmo coletivas), algumas tem que ser suprimidas por serem incompatíveis com os princípios que regem as instituições públicas, outras terão quer ser suprimidas por serem incompatíveis com qualquer âmbito da vida em sociedade. E isso não constitui um exercício de autoritarismo, ao contrário, é um exercício de liberdade no seu sentido maispuro: é que se você defende e faz certas coisas, todos nós – mesmo os que estão do lado oposto a essas práticas – saem perdendo.

Por isso não podemos aceitar a permanência de Feliciano no cargo sem lutar,  porque se ele o crê e age com essas crenças em desfavor dos direitos das minorias políticas, então, todossaem perdendo! Há coisas inaceitáveis nas instituições públicas, está na hora de deixar claro que não há espaço em nossas instituições para que cada um faça (sozinho ou no seu “grupelho”) o que bem quiser. Há coisas que estão de acordo com os princípios públicos, outros não. Devemos combatê-los seriamente e não tratá-los de forma cínica ou velada. E é por isso que não podemos ser tolerantes com Felicianos!

Imagem: Diário Pernambuco


[1]                      Não devemos esquecer que na maior parte dos países de língua portuguesa, enquanto tolerante (adjetivo) significa aquele que desculpa certas faltas ou erros, que tolera, dotado de tolerância; e tolerado (adjetivo masculino ou neutro) significa que se tolera, consentido, apreciado com indulgência; tolerada (adjetivo feminino) se refere a prostituta. Até poucos anos atrás, “casa de tolerância” não era um lugar onde se poderia ser tolerado, mas onde “toleradas” estavam à disposição sexual do homem “tolerado” e casado com uma esposa tolerante!

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