Historiador israelense Ilan Pappé: “Esta é a última fase do sionismo”

Ilán Pappé fala sobre “neosionismo”, negociações de cessar-fogo, a segunda presidência de Trump e doutrinação em Israel.

Por Anealla Safdar.

Copenhague, Dinamarca – Em uma manhã gelada de sábado em Copenhague, Ilan Pappe se aquecia em uma sala de cinema, conversando e brincando em árabe fluente com um dos organizadores de uma conferência que ele logo discursaria, entre goles de café preto de um copo de papel.

Ao contrário de outros israelenses, disse Pappe, ele aprendeu o idioma “dos colonizados” passando algum tempo na Palestina, cercando-se de amigos palestinos e tendo aulas formais de árabe.

Centenas de acadêmicos, autoridades, ativistas de direitos internacionais e dinamarqueses comuns, horrorizados com o genocídio de Israel contra os palestinos em Gaza, participaram do evento na capital dinamarquesa, organizado pela Rede Palestina Europeia.

O grupo foi fundado recentemente e seus membros incluem dinamarqueses de origem palestina.

Mais tarde, Pappé disse à plateia que, desde o início da última guerra de Israel contra Gaza, ele ficou chocado com a reação da Europa.

“Compartilho com muitas pessoas a surpresa com a posição europeia”, disse ele no palco. “A Europa, que afirma ser um modelo de civilização, ignorou o genocídio mais televisionado dos tempos modernos.”

Nos bastidores, a Al Jazeera entrevistou Pappe, de 70 anos, um importante historiador, autor e professor israelense que passou grande parte de sua vida lutando pelos direitos dos palestinos. Perguntamos a ele sobre sionismo, solidariedade e o que ele acha que a mudança no cenário político americano significa para Gaza.

Al Jazeera: Há muito tempo você diz que as ferramentas do sionismo, a ideologia nacionalista e política que exigia a criação de um Estado judeu, incluíam a captura de terras e despejos. Nos últimos 15 meses, Gaza tem sofrido assassinatos em massa diariamente. Que estágio do sionismo estamos testemunhando?

Ilan Pappé: Estamos em um estado que pode ser definido como neosionista. Os antigos valores do sionismo estão agora mais extremos, [de] forma muito mais agressiva do que antes, tentando alcançar em pouco tempo o que a geração anterior de sionistas estava tentando alcançar de forma muito mais longa, incremental e gradual.

Essa é uma tentativa de uma nova liderança do sionismo de concluir o trabalho que começou em 1948, ou seja, assumir oficialmente o controle de toda a Palestina histórica e se livrar do maior número possível de palestinos no mesmo processo, e [isso é] algo novo, criando um novo império israelense que é temido ou respeitado por seus vizinhos – e, portanto, pode até mesmo se expandir territorialmente além das fronteiras da Palestina obrigatória ou histórica.

Historicamente, estou disposto a dizer com certa cautela que esta é a última fase do sionismo. Historicamente, esses desenvolvimentos em movimentos ideológicos, sejam eles coloniais ou impérios, geralmente são o capítulo final [que é] o mais cruel, o mais ambicioso. E então é demais e eles caem e entram em colapso.

Al Jazeera: Estamos a poucos dias de um novo cenário político, quando Donald Trump se dirige à Casa Branca pela segunda vez. Ele tem uma voz ainda mais alta nas mídias sociais com o bilionário da tecnologia e proprietário da X, Elon Musk, que elogia as políticas israelenses e suas forças armadas, entre as principais figuras de sua administração. Como você vê a influência da presidência sobre Israel? A guerra em Gaza continuará?

Pappé: É muito difícil ver algo positivo durante o segundo mandato de Trump e com suas associações com Elon Musk.

O futuro de Israel e do sionismo está ligado ao futuro dos Estados Unidos.

Não acho que todos os estadunidenses sejam partidários de Trump. Não acho que todos os estadunidenses sejam partidários de Elon Musk.

[Mas temo que não haja muito que possa ser feito nos próximos dois ou três anos.

A única boa notícia é que líderes populistas como [o presidente eleito dos EUA, Donald] Trump e malucos como Elon Musk não são muito capazes. Eles vão derrubar a economia estadunidense e a posição internacional dos EUA, portanto, se esse tipo de personalidade for liderar os Estados Unidos, isso acabará mal.

A longo prazo, acho que isso pode levar a um menor envolvimento dos Estados Unidos no Oriente Médio. E, para mim, um cenário em que o envolvimento estadunidense é mínimo é um cenário positivo.

Precisamos de intervenção internacional não apenas na Palestina, mas em todo o mundo árabe, mas ela deve vir do Sul Global e não do Norte Global. O Norte Global deixou um legado tão grande que pouquíssimas pessoas considerariam alguém do Norte Global como um mediador honesto. Estou muito preocupado com o curto prazo, não quero ser mal interpretado. Não consigo ver nenhuma força impedindo os desastres de curto prazo que nos aguardam.

Quando vejo uma perspectiva mais ampla, acho que estamos no final de um capítulo muito ruim da humanidade, não no início de um capítulo ruim.

Al Jazeera: Atualmente, estão ocorrendo negociações de cessar-fogo. Quando o senhor espera que a Palestina tenha paz?

Pappé: Não sei, mas acho que mesmo um cessar-fogo em Gaza não é o fim, infelizmente, por causa do genocídio. Esperamos que haja poder suficiente para, se não acabar com ele, pelo menos domá-lo ou limitá-lo.

A longo prazo, vejo um processo que é longo. Estou falando de 20 anos, mas acho que estamos no início desse processo.

É um processo de descolonização de um projeto colonial de assentamento.

Ele pode ir para qualquer lado. Sabemos disso pela história. A descolonização pode ser muito violenta e não necessariamente produzir um regime melhor, ou pode ser uma oportunidade de construir algo muito melhor, uma vitória para todos os envolvidos e para a região como um todo.

Al Jazeera: Para os palestinos e muitos observadores, parece que o mundo está apenas assistindo enquanto Israel se expande para seus vizinhos e realiza o genocídio com impunidade.

Pappé: Bem, o último estágio, do ponto de vista histórico, é um processo longo. Não é um processo imediato. Não se trata de uma questão de se vai acontecer, mas de quando. E, definitivamente, isso pode levar tempo.

Há acontecimentos em nível regional e global que permitem que essa fase continue. Seja a ascensão de políticos populistas como Trump, o poder das corporações multinacionais, a ascensão do fascismo, o novo fascismo de direita na Europa, o nível de corrupção em alguns países árabes, tudo isso funciona de forma a sustentar uma aliança global que permite que Israel faça o que faz, mas há outra aliança.

Ela não tem o mesmo poder, mas é ampla e está ligada a muitas outras lutas contra a injustiça. É bem possível que, se não em um futuro imediato, um pouco mais tarde, esse tipo de sentimento global que não se concentra apenas na Palestina, mas também no aquecimento global, na pobreza, na imigração e assim por diante, se torne uma força política mais poderosa. Cada pequena vitória dessa outra aliança global aproxima o projeto sionista do fim.

Al Jazeera: O que essa outra aliança tem a fazer? O que poderia ajudar sua causa?

Pappé: Há duas coisas. Primeiro, não temos uma organização que contenha essa boa vontade, o apoio, a solidariedade e a energia para combater a injustiça. Ela precisa de uma organização adequada e alguns dos jovens que fazem parte dessa aliança parecem não gostar, por boas razões, de organizações e assim por diante. Mas você precisa dessa infraestrutura.

A segunda coisa é abandonar a abordagem purista que esses movimentos tinham no passado e criar redes e alianças que levem em conta que as pessoas discordam até mesmo em questões fundamentais, mas são capazes de trabalhar juntas para impedir um genocídio em Gaza, para libertar povos colonizados.

Al Jazeera: Voltando à aliança mais poderosa que você diz estar defendendo o sionismo, você falou sobre a ascensão da extrema direita na Europa. No entanto, entre eles, ainda há traços de antissemitismo.

Pappé: Essa aliança profana estava presente desde o início. Se pensarmos logicamente, tanto os antissemitas quanto os sionistas, no que diz respeito à Europa, tinham o mesmo objetivo: não queriam ver os judeus na Europa. Vê-los na Palestina poderia ser um objetivo tanto do movimento sionista quanto do movimento antissemita.

Agora há uma nova camada de uniformidade de ideias entre a neodireita e Israel, que é a islamofobia.

A nova direita agora, embora ainda tenha fortes elementos antijudaicos, ou antissemitas, tem como alvo principalmente as comunidades muçulmanas e árabes. Não tem como alvo as comunidades judaicas, em particular.

Eles veem Israel como a mais importante força anti-islâmica e antiárabe do mundo, portanto, também há identificação nesse nível – mas, é claro, é algo que os judeus lamentariam fora de Israel se fizessem parte de tal aliança. Até mesmo os judeus pró-israelenses na Europa se sentem um pouco desconfortáveis com [aqueles que] se vestem com a bandeira israelense, mas ao mesmo tempo com a bandeira nazista.

Esperamos que isso os faça repensar sua associação com Israel. Já vemos sinais, especialmente na comunidade judaica americana entre a geração jovem, de que eles entendem que Israel agora faz parte de uma aliança política com a qual eles, como judeus americanos, não conseguem se identificar.

Como dizemos, isso permite que Israel continue por causa de Trump e dos líderes populistas, mas também é algo que não será para sempre no futuro.

Al Jazeera: O genocídio levou muitos, inclusive alguns grupos judeus, a estudar a criação de Israel e a histórica limpeza étnica da Palestina. Você já viu famílias divididas por sua compreensão do conflito?

Pappe: Isso não acontece [em Israel], mas definitivamente acontece com famílias judias fora de Israel.

A quantidade de informações que circula é tal que a geração mais jovem não pode ser cega. Mesmo que recebam uma educação judaica muito boa, ainda mais, eles conseguem ver a imoralidade da ação israelense.

A maior parte do conflito é intergeracional, o que é um sinal positivo, pois significa que a geração atual pode ser muito mais uniforme nessa posição.

Al Jazeera: Mas dentro de Israel, os jovens também têm acesso à documentação do genocídio nas mídias sociais, em plataformas como o TikTok. Mas muitos ainda desconsideram o sofrimento palestino.

Pappé: Eles não tiveram a mesma educação que os jovens judeus nos Estados Unidos. Eles receberam uma educação de um país muito doutrinado. E esse é o segredo. Eles foram produzidos, se preferir, projetados pelo sistema educacional israelense.

Escrevi um artigo em 1999 alertando que, observando os currículos israelenses, os próximos formandos desse sistema seriam fanáticos racistas, extremistas e perigosos para si mesmos e para os outros. Infelizmente, eu estava absolutamente certo.

Esse é o produto de uma sociedade muito doutrinada desde o berço até o túmulo.

É preciso reeducar essas pessoas. Não se pode simplesmente mostrar coisas a elas e esperar que isso as comova.

Elas podem ver bebês palestinos mortos e dizer ‘Bom, muito bom’. A desumanização faz parte do DNA israelense e é muito difícil enfrentá-la apenas dando-lhes mais informações.

Observação: Esta entrevista foi levemente editada para maior clareza e brevidade.

Legendas: TFG, para desacato.info.

Conspirações no Congo. Por Linda Pentz Gunte.

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