Poder popular ou democracia? Por Oleg Yasinsky.

Foto; Juan Calero / AFP

Por Oleg Yasinsky.

Essa breve reflexão foi motivada pela recente mensagem do presidente colombiano Gustavo Petro sobre as eleições na Venezuela e a explosão da mídia e o vandalismo que acompanharam esse evento. Em sua declaração, entre outras coisas, Petro diz: “…convido o governo venezuelano a permitir que as eleições terminem em paz, permitindo um escrutínio transparente com contagem de votos, atas e com supervisão de todas as forças políticas de seu país e supervisão internacional profissional. Enquanto esse processo estiver ocorrendo, as forças cidadãs opositoras podem se acalmar e interromper a violência que leva à morte até que a contagem dos votos seja concluída e as eleições oficialmente encerradas. Propomos respeitosamente que se chegue a um acordo entre o governo e a oposição que permita o máximo respeito pela força que perdeu as eleições. Peço ao governo dos EUA que suspenda os bloqueios e as decisões contra os cidadãos venezuelanos. O bloqueio é uma medida anti-humana que só traz mais fome e violência do que já existe e promove a fuga em massa de pessoas. A emigração da América Latina para os EUA diminuirá substancialmente se o bloqueio for suspenso. Os povos livres sabem como tomar suas decisões. […] A apuração é o fim de qualquer processo eleitoral, deve ser transparente e garantir a paz e a democracia.

Antes de revelar minha essência totalitária e antidemocrática, ouso questionar a sinceridade desse discurso. Essas palavras poderiam ter sido escritas por algum teórico europeu de um café suíço que acredita muito em leis e organizações internacionais, mas desconhece totalmente a dura realidade do Terceiro Mundo. Não posso acreditar na ignorância e na ingenuidade do presidente colombiano. Acredito sinceramente que essas palavras não poderiam ter saído da mente de um conhecedor das lutas populares e políticas da América Latina. A ultradireita venezuelana, irmã gêmea da ultradireita colombiana, com sua força paramilitar e seu tremendo desprezo pela vida, que emana de séculos de violência e escravidão, não pode ser “uma força cidadã opositora”, como Petro a chama, porque, em primeiro lugar, é uma força patronal, colonial, de paramilitares…, tudo menos uma força cidadã. É tão absurdo quanto “pedir” aos governos dos EUA, que criam, mantêm e alimentam essa força, que “suspendam os bloqueios, porque eles prejudicam os povos”, “impedindo” o triunfo da “democracia”.

Sabemos que a principal ameaça aos povos da América Latina e do mundo não vem de “um adversário político cidadão” que ganha ou perde eleições, nem das “decisões errôneas” do Departamento de Estado. Quando alguns repetem que Hugo Chávez sempre defendeu a democracia, não estão nos dizendo toda a verdade: Chávez, desde o primeiro momento no poder, insistiu em apenas um tipo de democracia, a democracia participativa. A participação cidadã é algo diametralmente oposto ao que conhecemos como ir votar e, em duas horas, esquecer o assunto pelos próximos quatro ou seis anos.

Então, vamos falar sobre essa palavra que é tão falada em todo o mundo, democracia. Há aqueles que acreditam, e com razão, que a democracia é uma invenção burguesa para o segmento afluente da população, que pode se dar ao luxo de embelezar suas vidas com conceitos bonitos e reflexões sábias. Assim como na Grécia antiga, a democracia sempre foi um privilégio de poucos, enquanto o restante, a maioria, os plebeus e os escravos, faziam a sociedade funcionar com ideias democráticas grandiosas para os que estavam no topo. Existe uma grande diferença entre essa democracia e a que é praticada atualmente? A maioria realmente participa da tomada de decisões políticas?

O que precisou acontecer nas últimas décadas para que uma ideia tão atraente e simples como a democracia se tornasse o conceito mais profanado e pervertido da atualidade? Por que, para a maioria das pessoas que não se esqueceram de como pensar, essa palavra não faz nada além de causar irritação e sarcasmo?

Certamente, muitos eleitores comuns ficarão muito surpresos quando souberem que a democracia não é um fim em si mesmo, mas um dos métodos para melhorar nossa sociedade. Que ela não é um sistema político, mas uma ferramenta para gerenciá-lo. Ou que eleições regulares não são o único, e muito menos o principal, indicador de democracia. Que a única coisa verdadeiramente democrática que deve acontecer em nossas sociedades é, como Chávez e muitos outros sonharam, a participação ativa diária dos cidadãos comuns na política e sua organização para isso.

A democracia atual, que nos é imposta pelos donos do poder da mídia, sem ética, sem educação, sem cultura e sem livre acesso a diferentes fontes de informação, assemelha-se a aulas de natação em uma piscina sem água.

No embalo de periódicas “votações democráticas” para diferentes matizes da mesma coisa, é imposta ao mundo a tirania da vulgaridade, da ignorância e da idiotice.

A sociedade de consumo alimentou um coletivo individualista vulgar e autoindulgente, acostumado a reivindicar apenas seus próprios direitos de acordo com o conforto e o prazer, aqui e agora, a qualquer preço e com zero capacidade de reflexão, autocrítica ou empatia. Essa civilização é, por si só, uma doença autoimune da humanidade.

A hipocrisia se tornou tão comum e necessária quanto o ar. Se todos os agressores que lançaram inúmeras guerras nas últimas décadas sob pretextos espúrios e com milhões de vítimas civis tivessem recebido um décimo da condenação, das sanções e do boicote cultural que são aplicados hoje contra a Rússia, este mundo já teria se tornado um paraíso na Terra há muito tempo. Obviamente, isso também implicaria em um suicídio coletivo de assassinos econômicos e mil outras maravilhas, no melhor estilo da declaração de Petro.

Chamar de “democracia” processos eleitorais que se baseiam inteiramente em “marketing”, manipulação e ignorância é não estar disposto a aceitar o significado e o espírito dessa palavra. Ninguém explica que o modelo ocidental de democracia não é o único, nem está longe de ser o melhor. As eleições “diretas e gerais” de uma população manipulada que não entende nada de política não podem escolher absolutamente nada. É exatamente por isso que existe uma idade para votar, porque não se supõe que o bebê tenha capacidade de tomar decisões; uma população alienada e manipulada é exatamente como o menor. Presidentes como Milei ou Zelenski são a prova disso. Abusando descaradamente dessa realidade, o poder nos anuncia que deve ser o guardião, o curador das pessoas que, manipuladas pela “desinformação”, não sabem se orientar (como gostariam), como disse Klaus Schwab em seu discurso no Fórum de Davos 2024.

Outros modelos de participação democrática existiram e ainda existem. Desde os sovietes (conselhos) na Revolução Russa, até os Comitês Cubanos de Defesa da Revolução ou os territórios indígenas autônomos em vários estados mexicanos, inspirados pelo zapatismo. Em outras palavras, diferentes formas de poder popular, geralmente desprezadas pelos países ocidentais, que se dizem democráticos, embora algumas deles, mesmo por escolha divina, sejam também monarquias.

O conceito de democracia se tornou uma categoria moral absoluta, assim como a prática religiosa costumava ser. Não ser democrata é uma heresia. Nosso mundo é tão grande e diverso que ninguém pode exigir que todos os seus cantos, culturas, histórias e sensibilidades sejam reduzidos a um único esquema social, que, além disso, não funciona em lugar algum, porque é uma farsa.

Sem educação, cultura e valores coletivos universais na sociedade, qualquer voto não será uma eleição. Em outras palavras, para que uma democracia seja realmente democrática, ela deve se tornar um poder popular, com valores totalmente opostos aos que nos são impostos pelo decadente sistema capitalista neoliberal.

Tradução: TFG, para Desacato.info.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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