Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Uma coisa me parece certa, leitor ou leitora: é fundamental entender que a Venezuela sofre a cobiça dos Estados Unidos e outras nações imperiais. Para elas, o que interessa é o acesso o mais livre possível aos imensos recursos naturais venezuelanos, petróleo e gás destacadamente. E para esse fim nada melhor, nada mais eficaz do que ter em Caracas fantoches e títeres, como os da oposição a Nicolás Maduro.
Estou sendo repetitivo? Talvez. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, o que não é repetido com insistência permanece rigorosamente inédito (frase que já repeti, aliás, centenas de vezes).
Cabe reconhecer, claro, que o presidente Maduro às vezes toma decisões duvidosas, para dizer o mínimo. Um exemplo marcante: a pretensão de incorporar à Venezuela mais da metade do território da Guiana. Isso criaria uma confusão na América do Sul e, mais amplamente, nos outros países da América Latina e do Caribe. A América do Sul é uma região de paz desde a Guerra das Malvinas em 1982 e precisa continuar assim. Desde a guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança, de 1864 a 1870, não houve um conflito envolvendo diversos países no nosso continente.
Uma guerra entre a Venezuela e a Guiana não abriria caminho para uma intervenção americana direta? Não é exatamente isso que queremos evitar? Maduro agredir a Guiana equivaleria à decisão fatídica de Saddam Hussein de invadir o Kuwait em 1990. O Brasil nunca poderia endossar um avanço da Venezuela sobre outro vizinho nosso. Isso não interessa ao Brasil, não interessa a ninguém. Observo, de passagem, que a Guiana faz parte do grupo de países que representei na diretoria executiva do FMI. Tenho um fraco por ela, pois desenvolvi uma relação de afeto (pouco profissional, reconheço) com quase todos os países do nosso grupo.
Contudo, isso não influi sobre o que vai escrito aqui e nem interessa agora. O que queria dizer é que, à distância, no meio de uma guerra de informações, é muito difícil determinar quem está mentindo e quem, dizendo a verdade sobre o resultado das eleições venezuelanas. Alguém tem credibilidade para falar sobre isso? A oposição provou algo? O governo provou?
Quem tem moral para falar em democracia?
Não vamos perder de vista que diversos países que se arvoram a opinar não têm moral nenhuma para interferir nas eleições da Venezuela – ou de qualquer outro país for that matter. Onde existem eleições realmente confiáveis? Nos Estados Unidos? Francamente! Para começo de conversa: alguém entende o sistema eleitoral americano? Parece que havia por lá uma dúzia de sujeitos que o compreendiam perfeitamente e sabiam explicá-lo, mas estão todos mortos ou entrevados.
A complexidade do sistema americano favorece manipulações. Há suspeitas recorrentes e até evidências de eleições fraudadas. E o sistema ainda produz absurdos arrematados – como a vitória na eleição presidencial de um candidato com menos votos do que o adversário. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2016, quando Hillary Clinton venceu no voto popular e perdeu para Donald Trump no colégio eleitoral onde votam delegados. Poucos no exterior sabem que não há eleição direta nos Estados Unidos.
Sem falar no nível estarrecedor de corrupção política. O que eles têm nos Estados Unidos, como dizem os próprios americanos, é the best Congress that money can buy (o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar). Uma plutocracia, portanto, não uma democracia. Se o leitor ou leitora me permite o lugar-comum, direi que as acusações americanas à Venezuela devem suscitar o famoso bordão: “macaco olha o teu rabo!”.
Vou mais longe e entro aqui, por um instante, em terreno pantanoso. Afinal, a democracia é mesmo um valor universal, como se afirma com frequência? Ou está entre aqueles conceitos gerais e vazios que Nietzsche chamava de “a última fumaça da realidade evaporada”? O risco de recorrer a essa noção de universalidade é o de conduzir à ideia de que existe um modelo único de democracia – provavelmente aquele que os países do Ocidente Político (ou Norte Global) praticam ou dizem praticar e querem exportar para todos os cantos do planeta. Não estamos diante de mais um embuste da chamada “comunidade internacional” – o grupo formado por Estados Unidos, Canadá, União Europeia, mais alguns países europeus, Japão, Coreia do Sul, Austrália e outros penduricalhos? Comunidade que inclui apenas cerca de 15% da população mundial!
Deixem, portanto, a Venezuela resolver sem interferência estrangeira os seus problemas políticos e econômicos! Problemas esses que foram criados, recorde-se, em larga medida pelas sanções aplicadas há muito tempo por Estados Unidos e seus satélites europeus. Menciono um só exemplo: as reservas internacionais e os ativos líquidos da petroleira estatal venezuelana foram congelados e roubados por americanos, ingleses e outros. Pirataria, não há outra palavra!
As dificuldades da economia da Venezuela refletem, também, má gestão por parte dos governos Chávez e Maduro, não há dúvida. Mas um peso enorme, talvez preponderante, deve ser atribuído às numerosas e sistemáticas sanções impostas à Venezuela. Na verdade, é grande a lista de países que foram ou estão sendo sancionados pelos Estados Unidos junto e seus satélites – entre muitos: Irã, Síria, Afeganistão, Iraque, Líbia, Cuba e, mais recentemente, Rússia e China. Justamente daí é que vêm a desdolarização e os planos, ainda embrionários, de criação de uma moeda de referência dos BRICS como alternativa ao dólar.
Papel do Brasil
Qual o papel do Brasil nesta quadra? Muitos, na direita bolsonarista, na direita neoliberal e até na esquerda, querem que o governo brasileiro se intrometa, condene as eleições venezuelanas e se distancie ou mesmo rompa com o “ditador” Maduro – epíteto raramente aplicado aos ditadores ou autocratas de países simpáticos ao Ocidente. Um exemplo: Arábia Saudita. Outro: Ucrânia. Volodymir Zelensky suspendeu as eleições em razão da guerra, o que supostamente legitimaria a decisão. Ora, o que enfrenta a Venezuela, há muitos anos, senão uma guerra econômica e financeira patrocinada pelo Ocidente?
O Brasil dar palpites sobre a Venezuela seria um grande erro, no meu modesto entendimento. A Venezuela é um dos principais países latino-americanos, tem extensa fronteira conosco e importantes laços econômicos. Esses laços só não são maiores, recorde-se, porque a Venezuela foi suspensa do Mercosul, em 2017, no tempo de Michel Temer no Brasil e Mauricio Macri na Argentina.
Vejam como foi escandalosa a decisão: o governo golpista de Temer teve a cara-de-pau de invocar a “cláusula democrática” do Mercosul (um dos muitos legados sofríveis do tempo de Fernando Henrique Cardoso) para suspender a participação da Venezuela no bloco. No governo Lula, as relações diplomáticas foram retomadas. Porém, que se saiba, nada se fez até agora para readmitir o país no Mercosul. Seria mais importante trazer a Venezuela de volta do que ficar promovendo acordos neoliberais e danosos do Mercosul, herdados do governo Bolsonaro, como os acordos com a União Europeia, com a área de livre comércio do resto da Europa, com a Coreia do Sul e com o Canadá.
Uma palavra final sobre um aspecto central da questão. Posso estar enganado, mas até onde se pode perceber os Estados Unidos e a oposição venezuelana fantoche dificilmente derrubarão Maduro. O Brasil vai permitir que a Venezuela caia nos braços da China e da Rússia? Pragmaticamente, não nos cabe ao Brasil reconhecer a continuação do governo Maduro?
Opinião controvertida, bem sei. Mas questões decisivas não são sempre objeto de controvérsias?
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Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.
O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição, 2021.
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