Por João Henrique Zoehler Lemos e Márcio Rogério Silveira.*
Eventos climáticos e suas repercussões impactam o cotidiano de diferentes formas. E o reflexo é ainda mais complexo quando envolve as redes de transportes, a começar pela infraestrutura rodoviária e o seu papel central nas realidades brasileira e catarinense.
Entre os dias 11/04 e 16/04/2024, vários municípios litorâneos de Santa Catarina foram atingidos por chuvas intensas, com registros superiores a 400 mm. Conforme dados da Epagri/Ciram. Por exemplo, Santo Amaro da Imperatriz registrou 420 mm, Antônio Carlos 385 mm e São José 368 mm de chuva.
As chuvas resultaram na interrupção da BR-101, no Morro dos Cavalos em Palhoça, no litoral catarinense. No dia 13 de abril, as pistas Norte e Sul no km 234 foram bloqueadas devido a deslizamentos, incluindo quedas de rochas. Isso causou uma desconexão abrupta dentro do estado e com outras regiões do país. A liberação do trecho ocorreu na sexta-feira, 19/04. Mesmo assim, é um evento que demonstra fragilidades nos sistemas de transporte do estado.
Mesmo não sendo tão antigas, as rodovias federais são fundamentais para os transportes no estado catarinense. Além da BR-101, há outros eixos rodoviários de destaque. Temos a BR-116, que corta o planalto na região de Lages; a BR-282, com seus mais de 600 km de extensão e que liga Florianópolis a Paraíso, na fronteira com a Argentina; e a BR-470, que liga Navegantes a Campos Novos. Exceto a BR-116, as demais foram inauguradas de forma plena entre 1970 e 1990.
É na BR-101 que se concentram atividades econômicas importantes para o estado, de forma contínua, na forma de um eixo de urbanização e fluxos econômicos que acompanha a faixa litorânea. Segundo dados recentes do IBGE, há 35 municípios diretamente articulados à rodovia, abrigando uma população de 2,85 milhões de habitantes (dados do Censo Demográfico de 2022), o que corresponde a 37% do total da população estadual. Além disso, os 35 municípios articulados à BR-101 abrangem 43% do PIB catarinense ou R$ 185 bilhões (dados do PIB municipal para 2021).
Exemplos da intensidade dos fluxos econômicos são trazidos por dados recentes do DNIT. Eles apontam que 40 mil veículos trafegam diariamente pela rodovia no trecho afetado, sendo elevado para 50 mil veículos no trecho entre Biguaçu e Palhoça, portanto no núcleo da Região Metropolitana de Florianópolis. Ou como observado nos complexos logísticos situados nas duas margens da rodovia, como no caso de Biguaçu, São José e Palhoça (formando um forte eixo de produção e circulação) e empresas de portes diferenciados.
No presente, o estado tem uma rede rodoviária com mais de 10 mil km de extensão, dos quais 6,29 mil km são estaduais e 3,71 mil km federais. Os trechos duplicados estão concentrados na fachada atlântica, cabendo destaque à BR-101 com seus 448 km duplicados em Santa Catarina, o que corresponde a 63% de todas as rodovias com faixa dupla no estado.
Apesar do intenso tráfego diário, a falta de rotas alternativas na BR-101 durante eventos extremos revela deficiências no planejamento de transporte. Após a interrupção ocorrida a partir de 11/04, conectar as áreas anteriormente acessíveis pela BR-101 tornou-se desafiador. Importa destacar que essa conexão inter-regional não se limita apenas à costa, mas também abrange regiões do planalto e da serra.
Com a interrupção da BR-101, foi necessário percorrer diferentes estradas estaduais situadas nos vales atlânticos para contornar a Serra do Tabuleiro, onde o Morro dos Cavalos está situado. São duas as rodovias que possibilitam de maneira emergencial essa ligação.
Destaca-se a SC-108 como uma importante rota norte-sul em Santa Catarina, conectando Joinville a Praia Grande em seus 472 km. No entanto, vários trechos ainda carecem de pavimentação, com leito natural e falta de sinalização, especialmente em áreas acidentadas, como entre Rancho Queimado e Rio Fortuna. Outra via, a SC-435, conecta Gravatal a Águas Mornas em seus 104 km, dos quais 47 km não estão pavimentados. Mesmo nos trechos asfaltados, há deficiências na qualidade técnica e construtiva.
As duas rodovias estaduais mencionadas – SC-108 e SC-435 – possibilitam a ligação de Florianópolis com algumas áreas do Sul catarinense, por meio da BR-282 em Rancho Queimado e Águas Mornas, respectivamente. Esta rodovia também é submetida constantemente às intempéries e apresenta deslizamentos nas encostas recortadas pela rodovia. Outro aspecto relevante é que é construída com pista simples repleta de sinuosidades, o que é agravado ao estar inserida em áreas urbanas de densa ocupação, como na cidade de Santo Amaro da Imperatriz, onde acaba servindo de suporte para os fluxos internos a esse centro urbano. O mesmo ocorre em Palhoça, São José e Florianópolis.
Mesmo assim, com essas alternativas, são rodovias estreitas, sem acostamento e, nos seus trechos sem pavimentação, têm condições muito precárias, com pontes de madeira, sendo impraticável o tráfego para carretas, bitrens, ônibus médios e de grande porte etc. Desse modo, foi inadiável a interrupção dos serviços públicos de transporte, como as linhas regulares de ônibus entre cidades da região Sul do estado e a Região Metropolitana de Florianópolis.
Essa limitação e a dificuldade de ser contornada é um exemplo bastante nítido das históricas desconexões entre litoral e planalto. As rodovias que sustentam essas ligações são regularmente afetadas por questões climáticas. Por outro lado, o estado da arte da tecnologia de transporte já permite superar essas barreiras e, portanto, Santa Catarina, como outras diversas porções do Brasil, se mostra um território atrasado em relação a isso. E o estado catarinense, possivelmente mais que outras porções do país, devido à sua formação natural (geologia, morfologia, clima e vegetação) e econômico-social (população, economia etc.) necessita de sistemas de transportes mais modernos, integrados e com elevado nível de progresso técnico.
Exemplo de sistemas de transporte mais modernos incluem o uso de outros modais além do rodoviário. Como é o caso do hidroviário, para os deslocamentos de passageiros e cargas leves, com o uso de embarcações adequadas, como os catamarãs, populares no Brasil e fabricados nacionalmente. Com isso, poderia ser realizado o transporte de Biguaçu a Palhoça passando por São José e Florianópolis.
Para o transporte coletivo de passageiros, o trabalho “Transporte público e mobilidade na região metropolitana de Florianópolis”, do geografo Rodrigo Giraldi Cocco (Florianópolis, editora Insular, publicado em 2017), tratou da histórica defasagem quanto ao uso do modal hidroviário para o caso da Região Metropolitana de Florianópolis.
Apesar de do estado Santa Catarina se apresentar como um espaço moderno e dinâmico, com sistemas sofisticados de normas, tributação e planejamento para facilitar a circulação corporativa, ainda persistem vestígios de um passado arcaico. Esses vestígios se manifestam nas dificuldades de lidar com os notórios eventos climáticos que frequentemente implicam em interrupções aos fluxos nas redes de transporte do estado. Resulta, portanto, da falta de uma capacidade de planejamento robusta, eficaz diante de suas próprias condições físico-naturais e econômicas.
É enfim o convívio entre heranças de um desenvolvimento desigual. No estado, há traços sofisticados e modernos de inteligência territorial que, no entanto, coexistem com as deficiências do arcaico, evidenciadas nas antigas e precárias rodovias secundárias que conectam importantes regiões de Santa Catarina.
Reflexões mais amplas do que as apresentadas aqui estão no trabalho recentemente publicado pelos autores, intitulado “A integração territorial em Santa Catarina: entre o arcaico e o moderno”, disponível na página do Laboratório de Estudos sobre Circulação, Transportes e Logística (LabCit), vinculado ao Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
* Geógrafos, pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre Circulação, Transporte e Logística (LabCit), Departamento de Geociências, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)