‘casta’
1. Fem: Ascendencia o linaje. U: también referido a los irracionales.
Sinónimos: ascendencia, linaje, estirpe, clase, progenie, alcurcia, ralea, prosapia
Diccionario de la Real Academia Española, 2023
Já em seu discurso de posse, e novamente, 15 dias depois, em entrevista exclusiva ao bajulador Luis Majul, do canal La Nación, o recém-empossado presidente argentino Javier Milei falava sobre a desejabilidade e inevitabilidade de uma terapia de choque, utilizando o termo “choque de mercado”.
Em menos de um mês sob o governo do “liberal libertário”, o argentino médio sentiu seu poder aquisitivo cair pela metade, além de se ver imerso em uma espécie de distopia totalitária na qual o mínimo que se espera ao sair de casa é um anúncio do “Ministério do Capital Humano” em trens e outros transportes públicos “avisando” que todo aquele que recebe algum tipo de bolsa, pensão, aposentadoria ou benefício do Estado deixaria de receber caso participasse de marchas e protestos. As duas frases mais repetidas por Milei e por sua ministra da Segurança, a ex-candidata de direita Patricia Bullrich e sua principal opositora no pleito de 2023, é “el que cobra no corta” e “No hay plata”. Anunciam um verdadeiro túnel sem saída.
O anúncio ainda estimula denúncias anônimas por meio de um número exclusivo para essa nobre finalidade – a delação. Policiais entravam nos ônibus onde havia manifestantes com destino à Praça de Maio filmando seus rostos.
Milei é como um “Robin Hood ao contrário”, capaz de perdoar dívidas milionárias de empresas importadoras no mesmo dia em que autoriza uma desvalorização do peso em 120%, causando uma alta inflacionária imediata sobre bens de consumo essenciais como alimentos, remédios e combustíveis; e aprofundando a estagflação – terrível combinação de recessão econômica e inflação. Jurando – certamente não em nome de Conan, o cachorro clonado que o guia dos Céus – que o “ajuste” seria pago pela dita “casta”, Milei rouba dos pobres para dar aos ricos, a verdadeira “casta” de quem está a serviço.
Diga-se de passagem, o primeiro ato do presidente “anti-casta” foi derrubar a lei contra o nepotismo sancionada durante o governo de seu comparsa Mauricio Macri para nomear sua irmã como secretária-geral de Governo. Mas isso não é propriamente novo: o presidente De la Rúa havia feito bem parecido, nomeando o irmão. Teve vida curta no cargo. Simbolicamente, o DNU foi lançado no dia do aniversário do “Argentinazo” de 2001 – do qual Milei buscou capturar os principais slogans daquele ano (como o “Que se vayan todos”) ao longo de sua campanha.
Ao mesmo tempo em que liberalizou os preços em todas as áreas, incluindo alimentação, aluguéis, saúde e educação privadas, Milei congelou salários, aposentadorias e pensões, não apresentando Lei Orçamentária para 2024 – na prática, congelando os gastos públicos por tempo indeterminado. Isso dificulta muito, para não dizer que impede, o início do ano letivo em universidades públicas, sem falar nos milhares de servidores públicos em iminente ameaça de demissão.
Para utilizar a expressão do deputado Christian Castillo (PTS/FITU), trata-se de um verdadeiro “combo do terror”, pois ao mesmo tempo que desvalorizou os ganhos dos argentinos, derretendo as poupanças das classes médias (mesmo aquelas em dólares), liberando lucros extraordinários para os capitalistas, aumenta a monopolização em setores tradicionalmente oligopolizados como a indústria alimentícia ou farmacêutica.
Além disso, uma das metas de Milei é a consolidação do estabelecimento da utilização, em território argentino, de preços internacionais em dólares para petróleo e gás, tornando o país mais vulnerável aos constantes aumentos dos preços internacionais.
Porém, as medidas previstas tanto no DNU quanto na Lei Ônibus, entusiasticamente aplaudidas pelo FMI recentemente no Fórum de Davos, na Suíça, vão muito além desse choque inicial e implicam, além de tempos duros de penúria, fome e sofrimento social, uma entrega de soberania sem precedentes na história da Argentina.
DNU – Decreto Nacional de Urgência: urgência de quê?
No dia 20 de dezembro, Milei enviou ao Congresso um Decreto Nacional de Urgência (DNU), instrumento similar, no Brasil, à MP (Medida provisória) ou, talvez mais apropriadamente, à GLO (Garantia de Lei e Ordem), pois provê poderes extraordinários ao Executivo para legislar sem Câmara e Senado por período determinado. Com a Justiça em férias, entrou em vigência no dia 29 de dezembro e perturbou o fim de ano dos argentinos, muitos dos quais responderam com cacerolazos.
Havia de fato uma urgência no país, dados os números acima relatados, por exemplo um desemprego superior a 40% e um aumento brutal da miséria. O problema é que as medidas de Milei certamente vão aprofundar esse estado de coisas. Com Milei, do dia para a noite, alguns medicamentos, incluindo aqueles de uso contínuo, como contra diabetes e hipertensão, aumentaram dez vezes. Nos transportes, houve uma média de 45% de aumento nas tarifas de trens e ônibus.
Os Decretos Nacionais de Urgência já tinham sido utilizados por diversos outros presidentes e constituem mecanismo legal. O DNU de Milei é inédito pois traz 366 artigos compilados em 83 páginas versando sobre os mais diversos assuntos, de clubes de futebol à Reforma do Estado, passando pelo Código Aeronáutico, funções do Banco Central, comércio exterior e saúde.
O objetivo central é tornar nulas leis que protegem minimamente o poder aquisitivo da maioria da população das crises e flutuações financeiras constantes no país, bem como zelam relativamente bem, ainda que aos trancos e barrancos, pelo patrimônio público, cultural, artístico e natural nacional. Por esse motivo tem sido o DNU chamado também de “revogaço” ou “decretaço”.
Um dos principais pontos do DNU é uma ampla contrarreforma trabalhista, com: fim do direito de greve (praticamente todas áreas passam a ser consideradas “essenciais”, até mesmo gastronomia); flexibilização total do teletrabalho; fim da autonomia sindical; imposição do imposto sindical; fim de qualquer indenização por demissão; redução do tempo de licença maternidade; liberação da terceirização completa, fim de vínculo empregatício para trabalhadores de qualquer empresa com 5 empregados ou mais, entre outros pontos.
No que tange ao trabalho, é o “modelo Rappi” extrapolado para todos os outros trabalhos. Como sempre fez em todo o mundo capitalista, a direita logra nivelar por baixo os ganhos dos trabalhadores dividindo a classe subalterna através, por exemplo, do discurso de que trabalhadores com direitos seriam “privilegiados”.
Outros itens importantes do DNU são: fim da lei dos aluguéis (os quais estavam regulados no teto de preços, métodos de pagamento, duração dos contratos, entre outros), podendo agora serem pagos em dólares (praticamente impondo a dolarização). Transações mercantis diversas, como o pagamento de salários, poderiam ser realizadas e até mesmo em mercadorias diversas como leite, carne e bitcoin. Como ironizou o crítico cultural brasileiro Helder Maldonado, é o criptofeudalismo…
O fim da lei dos aluguéis se somou ao fim da lei de abastecimento, que visava evitar a escassez de alimentos e outros itens essenciais; ao fim da lei que obrigava empresas e supermercados a oferecerem determinada variedade de produtos e marcas (Lei de Gôndolas); ao fim de subsídios estatais a serviços como transporte, energia elétrica, água, entre outros; e finalmente à modificação da lei de terras, permitindo a compra de terra por estrangeiros sem limitações, incluindo as riquezas naturais nelas existentes, mostrando o grau de entrega do país que Milei está disposto a alcançar.
A partir de agora, as chamadas “pré-pagas” (que são mais ou menos como serviços de saúde pré-pagos), outro setor extremamente cartelizado, poderão subir os preços como bem desejarem, sem nenhuma regulação. Outra medida, esta retomada diretamente da era Menem nos anos 1990, e que na época foi um desastre para a saúde pública, é a liberalização da venda de medicamentos em quaisquer estabelecimentos comerciais.
Tecnicamente, o DNU está em vigência até que a Suprema Corte de Justiça, que tem sabidamente uma forte influência macrista e da mídia empresarial, o aceite ou rechace por completo. Até o momento, aparentemente apenas o capítulo da contrarreforma trabalhista foi momentaneamente estancado pela via judicial, por uma apertada votação, com a justificativa de que seria preciso primeiro decidir em que instância(s) uma modificação de tal magnitude deve ser debatida.
Lei Ônibus: um novo laboratório neoliberal
A chamada “Lei Ônibus” foi apresentada apenas uma semana depois do DNU, a 27 de dezembro de 2023, com 664 artigos e sete anexos distribuídos em 351 páginas. Levou esse nome porque seria como uma lei que carregava diversas outras leis. Ela parece estabelecer nada menos que um virtual estado de sítio, dentro do qual o presidente Milei teria seus poderes significativamente aumentados. Na verdade, o texto, apesar de seu tom jocoso, disfarçado de técnico, implica uma reforma significativa na Constituição Nacional.
A proposta intitula-se oficialmente “Lei de bases e pontos de partida para a liberdade dos argentinos” e seu artigo primeiro afirma que a lei teria por objeto
“promover a iniciativa privada, assim como o desenvolvimento da indústria e do comércio, mediante um regime jurídico que assegure os benefícios da liberdade para todos os habitantes da Nação e limite toda intervenção estatal que não seja a necessária para velar pelos direitos constitucionais” (p.3).
A lei delega funções legislativas “ao Poder Executivo nacional de emergência pública em matéria econômica, financeira, fiscal, social, previsional, de segurança, defesa, tarifária, energética, sanitária e social” (p.13). No mesmo artigo primeiro, afirma-se, na letra (c), que se objetiva:
“O aprofundamento da liberdade de mercados, impulsionando a interação espontânea de oferta e demanda como modo de ordenamento e reativação da economia, facilitando o funcionamento dos mercados e o comércio interno e externo, promovendo a desregulação dos mercados e simplificação regulatória” (p.14).
A privatização de empresas públicas aparece no segundo Capítulo do Título II – Reorganização administrativa (p.16). No anexo com os nomes daquelas sujeitas à privatização imediata, são listadas 41 estatais ou mistas da mais alta relevância, estratégicas, como a Administração dos Portos; as Aerolíneas Argentinas; empresas de água e saneamento; o próprio Banco de la Nación Argentina; a Casa da Moeda; os Correios; diversas fábricas de aviões, trens, de equipamento militar; a única empresa de produção de energia elétrica nuclear; serviços de rádio e televisão nacionais e/ou ligados a universidades, como o Serviço de Rádio e televisão da Universidade de Córdoba, da Universidad Nacional del Litoral; a Televisão Pública Argentina; a TELAM; o único veículo espacial argentino (p.96); e por fim, mas não menos importante, a YPF, empresa que historicamente – como a Petrobrás – é a jóia da Coroa a ser arrematada pela verdadeira “casta”.
O Título III da Lei leva o nome de “Reorganização econômica” e seu Capítulo primeiro intitula-se “Desregulação econômica” (p.36), e em seu conjunto invalida uma série de regulamentos acerca de posse e transferência de bens, entre outros inúmeros temas, das Leis de herança às formas de assunção, pelo Estado, de dívidas privadas.
Sobre o sistema eleitoral, a lei propõe terminar com as PASO (Primarias Abiertas Simultáneas y Obligatorias) e estabelecer lista única para votação. Sua seção III, que trata de “Financiamento da política” (atenção para o sentido pejorativo do termo “política” em todo o texto), eliminaria financiamento público de partidos políticos.
No capítulo III (Ambiente) da Seção II (Turismo), amplia-se o entendimento do conceito de “aproveitamento produtivo” para “toda a atividade que tenha finalidade de lucro e que não tenha relação alguma com a proteção do meio ambiente do terreno”. Sobre as queimadas, o artigo 498 afirma que as mesmas, para serem realizadas, somente necessitariam uma autorização de “autoridade local competente”; e que mesmo que a mesma não seja concedida, “se considerará que a queimada foi autorizada tacitamente” (p.150). Aqui é revogada a regulamentação sobre a fiscalização de fertilizantes, permitindo agrotóxicos; e encurtada a lei que protegia as áreas argentinas glaciais, bem como os bosques nacionais. Isso significa, por exemplo, a possibilidade de mineração em áreas até hoje protegidas.
São previstas severas modificações nas leis de concessão de obras públicas; nas leis de infraestrutura e serviços; diversas modificações no Código Civil e Comercial afetando, segundo o Anexo 5, os seguintes setores: Agroindústria; infraestrutura; florestal; mineração; gás e petróleo; energia e tecnologia. No capítulo intitulado “Criação do regime de incentivo para grandes investimentos (RIGI)”, está claro que por grandes investimentos compreende-se o capital nacional ou estrangeiro, jamais investimento do Estado, retratado como malévolo.
No capítulo sobre empregos públicos, cria-se uma “promoção para a reinserção laboral privada de agentes públicos” através de um “Fundo de reconversão laboral”. Os empregados públicos que forem demitidos estarão automaticamente em “situação de disponibilidade” por um período de até 12 meses, que seria, na prática, seu tempo hábil para procurar outro emprego. Aqueles que não conseguirem, receberiam indenização desse mesmo Fundo da quantia de um salário por cada ano de serviço; sendo que se esse funcionário/a conseguir vincular-se novamente ao serviço público em menos de cinco anos, não teria garantida sequer essa indenização irrisória. O artigo 610 prevê sanção grave para o funcionário que dedique “suas horas laborais de serviço público para fazer qualquer tipo de tarefas vinculadas a campanhas eleitorais ou partidárias”, com o evidente objetivo de desmobilizar, pela coerção, setores inteiros de trabalhadores dos mais organizados sindicalmente.
Distopia totalitária do capital: violência, vigilância e entreguismo em nome da liberdade (de mercado)
Coerente com o anarcocapitalismo, que tem um pressuposto hobbesiano absoluto misturado com darwinismo social, a Seção sobre “Legítima defesa” estabelece uma espécie de “excludente de ilicitude” tanto para agentes públicos como para qualquer civil, afirmando que não serão punidos aqueles que:
“não tenham podido no momento do fato, seja por insuficiência de suas faculdades, por alterações de humor das mesmas ou por seu estado de inconsciência, erro ou ignorância de fato não imputáveis, compreender a criminalidade do ato ou dirigir suas ações” (p.115).
Inclui-se, dentre aqueles presumíveis “cidadãos de bem” isentos de serem julgados – e, frise-se, “qualquer que seja o dano ocasionado ao agressor” – todos que se “defendam” de pessoas que escalem muros, grades, ou provoquem danos ao patrimônio (p.115). Na Seção que trata de “Atentado e resistência à autoridade”, aumenta-se expressivamente as penas para resistência à autoridade, colocando prisão de quatro a seis anos se tal resistência “for cometida por uma reunião de mais de três pessoas” ou se o “agressor” “colocar suas mãos na autoridade”. Em sendo funcionário público, o réu sofreria ademais inabilitação especial pelo dobro do tempo de condenação (p.114). O incentivo ao armamentismo é outra coisa em comum de Milei com a extrema-direita global, e o Estado penal o outro lado da moeda da acumulação e da gestão/disciplinarização da força de trabalho.
O Capítulo I do Título IV, Segurança e Defesa, trata da Segurança Interior e seu primeiro artigo, de número 326, modifica o Código Penal tornando mais severas as punições para todo/a aquele/a que “criar uma situação de perigo comum, impedir, estorvar ou entorpecer o normal funcionamento dos transportes por terra, água ou ar ou os serviços públicos de comunicação, de previsão de água, eletricidade […]” (p.111-112).
No artigo 327, afirma-se, em palavras que poderiam ter sido escritas pelos ditadores Massera ou Videla, que:
“se entenderá por organizador ou coordenador de uma reunião ou manifestação a toda pessoa humana, pessoa jurídica, reconhecida ou não, ou conjunto daquelas que : a) convoque a outras pessoas a participar da reunião; b) coordene pessoas para levar a cabo a reunião; c) forneça qualquer tipo de meio material ou logístico para a realização da reunião; e d) passe lista, registre as presenças ou ausências por qualquer meio escrito ou de gravação de imagens”, mais uma vez, independentemente se a pessoa esteja ou não na manifestação (p.112).
O capítulo que trata da “Defesa nacional”, autoriza “a entrada de tropas estrangeiras ao território nacional e a saída fora dele de forças nacionais” para realização de “exercícios militares”. No artigo 346, faculta-se ao Poder Executivo “autorizar o ingresso no país de contingentes de pessoal e material de Forças Armadas, pertencentes a outros países para atividades de exercitação, instrução ou protocolares de caráter combinado” (p.116).
O capítulo sobre Cultura é um puro suco de macarthismo com neoliberalismo, estabelecendo ataques sem precedentes à cultura argentina, começando pela cinematografia, retirando a autonomia do INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales), cujo diretor passa a ser designado pelo presidente; em seguida, trazendo dispositivos similares acerca do Instituto Nacional de Música. Nos artigos 587 a 590, respectivamente, são sumariamente extintos o Instituto Nacional do Teatro e o Fundo Nacional das Artes (Fonarte), estabelecendo que cabe ao Poder Executivo Nacional (isto é, à cabeça e ao humor de Milei, Karina ou Conan) decidir sobre seus recursos humanos, orçamentários, materiais e patrimoniais, que são públicos.
Quanto ao financiamento da educação, assim como em assuntos relacionados à proteção da infância, passam a ficar a cargo do superpoderoso (e amedrontador) Ministério do Capital Humano. É interessante notar como as universidades públicas são tratadas na parte das universidades privadas, não havendo uma seção para universidades públicas. No artigo 553, que trata da cobrança de mensalidade em instituições de ensino superior pública de gestão estatal, a redação é dúbia: afirma, primeiro, que “para os estudos de graduação” não está permitida a cobrança; e, na frase seguinte, diz que essas instituições podem sim cobrar por “serviços de ensino” (p.163). Em seu artigo 550, autoriza o ensino à distância como alternativa à educação presencial já a partir da segunda etapa do nível primário (equivalente ao nosso quinto ano).
No seu título sobre saúde pública, uma das principais modificações diz respeito à saúde mental: a partir do artigo 620, a internação involuntária é considerada como recurso terapêutico, mesmo a pedido de pais ou quem exerça responsabilidade parental como tutores. Este é apenas um resumo extremamente sintético da Lei Ônibus.
Em apenas três comissões, o Congresso está nesse momento conduzindo debates sobre o extenso texto, e é difícil que o Libertad Avanza consiga o número necessário de votos para aprovar determinadas medidas; entretanto, vale lembrar que muitas dessas medidas já estão acontecendo na prática, como a dolarização forçada. A chantagem televisionada do ministro da Economia Luis Caputo é de que, se essa lei não for aprovada, medidas econômicas e sociais ainda mais duras virão. O espanto maior aqui é que o grosso das contrarreformas tem chance de ser de fato aprovado no Congresso, apesar do partido de Milei não ter maioria, pois as direitas (macrismo, o PRO, e inclusive kirchneristas “market friendly”) parecem estar bastante unidas naquilo que é central no supostamente inevitável “ajuste”.
¿Se viene el estallido?
Apesar das ameaças, desde a primeira semana de governo ocorreram diversas marchas e protestos tanto na Casa Rosada quanto na Praça de Maio. Os setores mais mobilizados no momento são os trabalhadores da Cultura e da Educação, mas espera-se uma importante greve geral no dia 24 de janeiro.
Conforme o cientista político e deputado Leandro Santoro (Unión por la Patria), a própria forma com que se está pretendendo fechar o regime político causa certo distúrbio cognitivo e não é possível saber se existe um plano muito bem formulado por trás desse combo de atrocidades ou se essa turma não tem a menor ideia do que está fazendo. Na primeira hipótese, deveria haver suficiente respaldo militar e exterior; na segunda, o governo cairá muito rapidamente.
Em menos de um mês, também já acontece a primeira crise interna no governo, com diversas notícias na imprensa sobre uma série de reuniões paralelas, conforme enfatizado pelo líder social e ativista Juan Grabois (Frente Patria Grande), segundo o qual a vice-presidenta Victoria Villarruel estaria já em plena conspiração junto com Mauricio Macri.
Milei, tal como Trump e Bolsonaro, declara guerra aberta contra as demais instituições, chamando congressistas de “idiotas úteis” e provocando juízes que ousem discordar de sua posição. A designação de José Luis Espert (Libertad Avanza) para liderar o governo no Congresso foi bem representativa disso, pois se trata de um conhecido personagem político autoritário, que foi candidato nas eleições de 2019 imitando Bolsonaro. Espert chegou a incitar violência na televisão contra ativistas e políticos de esquerda como Myriam Bregman e Nicolas del Caño (ambos PTS/FITU), dizendo que com eles [o tratamento] deveria ser com “cadeia ou bala”. No país que viu apenas um ano antes das eleições um atentado contra a vida da ex-vice-presidente Cristina Kirchner, é um evidente incentivo à violência política.
A lógica do maximalismo neoliberal em sua enésima potência é: mesmo que não sejam institucionalmente aprovados os anseios do capital e do imperialismo nos marcos de uma democracia formal, o que for feito já será trágico em níveis inauditos. O laboratório libertário de Milei, caso não encontre resistência à altura, implicará para a Argentina desindustrialização, perda de soberania, vulnerabilidade externa, aprofundamento das desigualdades sociais e regionais, além de uma miséria social e cultural a ser sentida por gerações.
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Agradecimento: Agradeço a leitura atenta, comentários e sugestões de Carlos Berenze e Diego Ferrari. Todas as traduções livres realizadas ao longo do texto são de responsabilidade da autora.
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