Por Eduardo Aliverti.
Obviamente, esta coluna está a ser escrita sob o impacto de uma surpresa que, independentemente do resultado das urnas, já é gratificante: uma parte significativa da sociedade argentina decidiu lutar contra a descida ao abismo.
Contra todas as probabilidades, o triunfo da União pela Pátria, liderada por Sergio Massa e Axel Kicillof, representa uma esperança que vai para além da calculadora do segundo turno. A vigília indisfarçável de ontem à noite nos meios de comunicação da oposição, ao ponto de voltar ao argumento repugnante de que o povo é conduzido como gado pelo aparelho peronista, avisa que está a começar outro jogo. E que eles não o ganharam.
A grande maioria das análises que circulam atualmente falam da vitória do medo sobre a raiva. Talvez, mas em todo o caso, essa seria uma das componentes. É preciso também ter em conta que a situação económica percebida não é assim tão catastrófica. E que a figura de Massa, ou mais genericamente do partido no poder, é muito mais fiável do que o esperado para liderar a curto e médio prazo.
Esse ingrediente do voto é relativizado.
Para já, o que interessa é o fato de Milei e os seus seguidoresse excederam desde as primárias e, em particular, nos últimos dias. Que a acumulação de barbaridades que cometeram foi demasiado grande, capaz de assustar até a pessoa mais pintada. Lançarse frontalmente contra o Papa, as declarações indescritíveis de Lilia Lemoine, falar da Educação Sexual Integral financiada pelos pais para depois esfregar na cara dos filhos, etc. Ou ainda, não ter transferido qualquer confiança sobre a forma de implementar a dolarização e o desaparecimento do Banco Central.
Os cambiemitas esforçaram-se por colocar Carlos Melconián no cargo e apresentar Horacio Rodríguez Larreta como chefe de gabinete. Mas foi inútil com uma candidata frágil, longe de uma imagem presidencial e com ninguém menos que o dono, Mauricio Macri, apostando no rival liberal.
Tudo isto é ou seria verdade, como o é o discurso de Milei quando aceita a derrota apelando ao apoio da casta. Apelou à adição do voto de Bullrich. Justificou Rogelio Frigerio agarrando o pouco que este tinha para mostrar como fator de aliança, juntamente com Jorge Macri. Ele parece derrotado. Lamentável.
Estas são também horas de uma oposição que chora sobre o leite derramado, especialmente no antigo Juntos pela Mudança. Que tiveram um penalty sem goleiro, entre Larreta e Bullrich, e o desperdiçaram. A subestimação do potencial daqueles que gerem “o aparelho”. A confiança excessiva na rejeição de um kirchnerismo que, como narrativa, já não governava há algum tempo.
O próprio Massa deixou claro: o próximo governo será o “meu” governo, não este.
No entanto, eles insistiram com a sua ladainha e ontem à noite ela foi reiterada nos seus discursos. Milei e Bullrich chamaram o governo de “organização criminosa” e “o pior da história argentina”, entre outras delícias.
E, por outras palavras (e compreensivelmente, porque têm de assegurar o seu núcleo duro), vão persistir naquilo que já mostrou os seus limites. É neste sentido que a democracia do direito ao ódio deu, pelo menos, uma parada. Veremos se se trata de uma parada eleitoral momentânea.
Contra isso, Massa utilizou a retórica de um Presidente, federal, inclusivo, detalhista. Mas, insistimos, parece incompleto que tenha sido apenas este o elemento unificador, à exceção da frivolidade de se referir ao “plano platita” (plano que deu vários bônus à população mais necessitada).
Há algo mais a acontecer para que UxP tenha produzido esta surpresa. E o desempenho de Kicillof é decisivo. O seu trabalho é tão importante que superou o escândalo Martín Insaurralde, a loja de chocolates e qualquer outra adversidade.
Como bem escreve Martín Granovsky, a província de Buenos Aires foi a barreira contra Milei e repercutiu em todo o país. O triunfo do governador é impressionante, mesmo que a desculpa de que a direita cometeu o pecado de se dividir entre “libertários” e “cambiemitas” possa ser usada como desculpa.
É válido apontar esse fato. Mas não é assim que as coisas se medem, mas sim pelo que realmente aconteceu. Se esta direita não foi capaz de se unificar, isso simboliza a sua incapacidade de ser uma opção viável. Se começarmos com as somas do que poderia ter sido, perdemos a noção do que é.
Kicillof salientou que não é apenas a sua honestidade que explica a vitória. É a palavra, o fato de se ter revelado a salvo de casos capazes de derrubar qualquer outra pessoa. É evidente que tem uma probidade de gestão que os frívolos e ressentidos não podem, não querem ou não querem compreender.
O novo partido que já começou está cheio de incógnitas, à exceção de uma certeza: Massa, como já deixou claro em termos inequívocos, não terá qualquer escrúpulo em apelar à unidade nacional.
A calculadora que todos já sacaram pode ser utilizada para especular sobre números muito equilibrados, em que cada voto do cordobesismo, da esquerda radicalizada, dos ausentes, dos votos em branco, dos duvidosos face a um cenário sem precedentes. Mas a UxP (re)começa com o que foi anunciado, que é apelar à unidade de um candidato que, a este respeito, não pode ser censurado por nada.
Por outro lado, terão de conseguir unificar-se com base no ressentimento, na raiva, na ficção de se juntarem à “casta” ou de insistirem que a única coisa que importa é manterem-se fiéis aos seus treze bobões e “gorilas”.
Cuidado: eles são capazes de o fazer. É um momento de surpresa que empolga, mas não de euforia excessiva. É compreensível que se aprecie o que não se esperava, mas nunca se justificaria descansar num eflúvio que pode ser transitório.
O fato de a vitória em vésperas de eleições ser uma ilusão, ou uma provável falha do aparelho autêntico, verificou-se. O dos meios de comunicação social, da arrogância das redes, do fato de que não importa o que se diz, desde que se diga.
Disseram tudo o que tinham a dizer, previram que Insaurralde era o fim, espalharam todas as manobras que se podiam inventar, decretaram que se vão embora e nunca mais voltam.
Deve ser incrível que não percebam que tudo continua em movimento.
São tão ignorantes. Tão ignorantes que imaginam uma realidade muito mais complexa do que a que o seu ódio lhes permite imaginar.
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