“O ecofeminismo parece mais realista do que o viés apocalíptico dos discursos colapsistas”

Sobre Mi Gata é um conjunto musical de Barcelona que define o seu estilo como “pós-cumbia makinera”. Seus integrantes participam dos movimentos sociais. Este ano lançaram seu primeiro álbum, Calor del colapso, em cujas letras está presente a crise ecossocial. Eles conversam com Antonio Turiel sobre a iminência do colapso e as perspectivas para o futuro.

Imagem: MOM/Pixabay

Entrevista de Antonio Turiel, publicada por Ctxt, 04-08-2023. Tradução: Cepat.

O colapsismo é uma galáxia ideológica em formação. Não defende o colapso nem o procura. Enquanto a maioria dos colapsistas tenta evitá-lo, alguns o veem como uma espécie de oportunidade. O colapsismo pode ser um estado de espírito, compartilha afetos, estéticas e modos de raciocínio. É o colapsismo o zeitgeist atual? Qual é a narrativa colapsista hegemônica? O colapso é iminente?

Neste momento, o colapso parece ser um estado de espírito. Tudo está prestes a entrar em colapso e o futuro não é mais anuviado, mas é como se tivesse simplesmente evaporado. A esperança de um presente melhor e de um futuro que o ultrapassasse parece ter ficado no fim dos anos noventa, na ressaca póstuma de um show do Iron Maiden. As portas do amanhã parecem ter sido fechadas com tábuas após um despejo ao estilo Desokupa. O bombardeio da mídia é intenso.

Os números e os alertas dos colapsologistas mais preparados se diluem no barulho de fundo, gerado pela mídia mais interessada em promover um sensacionalismo colapsista que borra um panorama desolador com nuances de Mad Max: o que fazem é colocar o acento na parte mais decadente do nosso presente, invisibilizando o potencial mais transformador de uma reflexão profunda sobre como chegamos até aqui.

O que existe para além do discurso colapsista branco eurocêntrico? Existe um privilégio do colapso? O decrescimento, as energias renováveis e as soluções mais ecológicas são alternativas viáveis para todos?

A popularização do colapso chegou à Europa, principalmente depois da covid. De repente, o medo do fim do mundo, da escassez de recursos naturais e energéticos, das crises ambientais (aspectos inquestionáveis) atingiu os lares dos mais privilegiados. A primeira reação quando você é atingido ou quando seus privilégios são apontados deve ser uma profunda reflexão sobre o impacto que suas ações têm em seu ambiente. Ao ver o risco de perder algum privilégio e só de imaginar a possibilidade de não poder continuar alimentando seu consumo e estilo de vida, o homem branco europeu entrou em pânico.

O resto do mundo está em colapso faz décadas e séculos: e é este colapso que levou à mão de obra barata, à extração de recursos e à acumulação de capital. Se existem alternativas, é preciso ver como torná-las acessíveis e disponíveis para todos, a começar por aqueles que historicamente não foram tão privilegiados. E se nós, brancos, saqueamos e consumimos além das possibilidades da nossa natureza, ainda é hora de deixar espaço e recursos para aqueles que, historicamente, fizeram menos uso deles porque deles foram tirados.

Água, petróleo, energia: como sua falta e escassez afetam fora do Primeiro Mundo? Que consequências gera entre os mais oprimidos e explorados? Como o colapso afeta a partir de outras perspectivas, como a classe social, o gênero, a raça e a espécie?

Muito se tem falado sobre o colapso. Sobretudo numa perspectiva hegemônica, obcecada com as consequências do fim de uma era para uma população historicamente privilegiada. Talvez seja hora de nos darmos conta de que há civilizações e continentes inteiros que, tendo sofrido as consequências mais brutais do capitalismo, do patriarcado e do racismo ao longo de séculos, têm uma compreensão profunda da ameaça do fim, assim como uma capacidade de análise, resiliência e resistência.

Deveríamos perguntar a essas populações sobre o fim do mundo, porque o mundo delas está acabando desde 1500. E, sobretudo, quando pensamos em como tentar evitar que o fim do nosso tempo aconteça, teríamos que ter em conta que as estratégias que construímos (energias renováveis, transições ecológicas, redução de gastos e consumo, etc.) não continuem afetando os historicamente mais explorados, vulneráveis e os que sempre foram oprimidos.

Um exemplo muito claro da perpetuação dessa opressão é o que está acontecendo no chamado Triângulo do Lítio (BolíviaChile e Argentina), onde se concentra a maior quantidade de lítio do mundo (estima-se entre 60% e 80%). Essa região, assim como a África, é hoje o epicentro das disputas entre as potências mundiais que lutam para decidir quem lidera o saque dos recursos naturais daqueles países em nome de uma suposta preocupação com as mudanças climáticas.

Seria importante que as estratégias contra o colapso passassem pela reparação dos danos que geramos ao longo de séculos, assumindo nossa dívida como continente com o resto do mundo e deixando de endividar economicamente e viver dos juros dos empréstimos impagáveis que concedemos aos países oprimidos.

mudança climática aumenta os fluxos migratórios de forma inédita, com todas as consequências (incluindo a morte) sofridas pelas pessoas que são forçadas a se deslocar: um drama humanitário, social e político que não tem nome. Secas, inundações e condições climáticas mais extremas limitam o acesso aos recursos naturais mais básicos para as populações mais dependentes deles. A agricultura e seus cultivos são extremamente afetados pelo desastre ambiental. Também devemos recordar que o mundo animal sofre as consequências de um sistema que não apenas escraviza outras raças, mas também explora outras espécies para seu benefício econômico e alimentar.

Como em outras coisas, a mudança climática gera desigualdades no acesso à água, uma questão candente nestes anos de secas e especulações sobre o futuro da água no mundo. É interessante um estudo sobre o consumo de água em diferentes bairros da cidade de Barcelona. Não era difícil imaginar que em bairros como Sarrià-Sant Gervasi, com maior renda per capita, o consumo doméstico médio chegasse a 128 litros por pessoa/dia. Em Nou Barris, área com menor renda, o consumo diário é de 92 litros. Estes números são explicados, em grande parte, pela pegada hídrica de atividades associadas às áreas ricas, como a rega de jardins privados (que requer cerca de 400 litros para cada cem metros quadrados) ou o enchimento de piscinas (que necessita, em média, 48.000 litros).

Um estudo da Universidade de Uppsala mostrou que as famílias mais ricas da Cidade do Cabo (África do Sul) representam menos de 14% da população e consomem mais de 51% da água disponível na cidade. As famílias de baixa renda, ao contrário, são 62% da população e consomem apenas 27% dos recursos hídricos disponíveis na metrópole. É evidente que o aumento do preço da conta da água prejudica sobretudo os grupos mais vulneráveis (e que menos água consomem), pois são os que não podem pagar o custo adicional enquanto os que podem pagar perpetuam níveis insustentáveis de consumo. Outro estudo mostrou que um turista em Barcelona, durante sua estadia na Ciudad Condal, consome cinco vezes mais água do que um residente. Nada mais a acrescentar.

Os povos nativos se viram historicamente privados do acesso à água ou às suas terras devido a interesses econômicos e a um Primeiro Mundo que precisa extrair até o último recurso natural para garantir a manutenção de seu bem-estar e consumo. É lógico que as condições climáticas extremas apenas agravam certas injustiças.

Vivemos (até agora) no centro do sistema, conservamos a capacidade de transferir elementos de colapso para as periferias, para os três tipos de colônias de que costuma falar a pensadora ecofeminista Maria Mies: a natureza, os povos do Sul Global e as mulheres. A via de “externalizar” danos, extração e impactos pode prolongar um pouco nossa desastrosa trajetória (e isso está sendo feito), mas ao preço de prejudicar ainda mais as escolhas de uma infinidade de seres vivos (incluindo bilhões de seres humanos) agora e no futuro.

A articulação de um ecofeminismo parece muito mais relevante e realista em termos políticos do que o viés apocalíptico dos discursos colapsistas: diante da crise ecossocial que o mundo está vivendo, talvez seja hora de parar de dar tanta visibilidade às vozes que apregoam o catastrofismo, paixão bastante masculina, e colocar a lupa nas alternativas que vão sendo forjadas, numa perspectiva responsável, resiliente e de resistência.

O capitalismo se alimenta das crises para se reinventar, extrair ainda mais recursos e explorar mão de obra barata. O próximo colapso é uma consequência ou uma ferramenta do capitalismo? O aceleracionismo que estamos vendo em todas as esferas é uma demonstração de seu último suspiro ou de força e de vontade cega de não parar?

O capitalismo do desastre avança através da dinâmica da acumulação, do açambarcamento, da exploração e da erosão dos direitos. Cada crise é mais uma engrenagem que lubrifica um funcionamento cada vez mais perfeito, que se adapta a qualquer situação e faz do capitalismo o tirano do mundo. Houve muitos colapsos civilizacionais na história, inclusive alguns que ainda são pouco ou mal conhecidos. Este que estamos vendo tem características especialmente graves, fruto da própria extensão e evolução do sistema capitalista heteropatriarcal e racista.

O colapso também é uma consequência da máquina capitalista. Cada passo que dá é cego e não conta com os limites materiais do planeta e de seus habitantes. Devora rapidamente tudo o que pode. Talvez um dia possamos ver o capitalismo entrar em colapso, gerando seu próprio fim.

Após dois anos de pandemia, vimos como o discurso do medo permeou várias camadas da população. Com consequências terríveis para a coletividade. Muitos discursos colapsistas se conectam com um medo profundo. Que papel desempenha o medo frente ao colapso?

O tempo da pandemia de covid revelou vários aspectos que poderíamos relacionar com o zeitgeist colapsista. Diante de uma emergência sanitária global, o Estado reage limitando ainda mais os direitos básicos da população. Sucumbe às decisões das grandes multinacionais farmacêuticas que decidem pautas, preços e distribuição de uma imunização ainda não demonstrada. Fomenta o medo e a desconfiança nos cidadãos enquanto não abre novos andares nos hospitais para resolver o principal problema do colapso sanitário: outra crise e mais uma vez somos nós, mulheres, que nos infectamos além de nossas possibilidades.

Na escala individual, a resposta também é uma reação mais do que conservadora. O vizinho vira delator, alguém de casa vira policial da saúde pública. Seu companheiro de andar o deixa sozinho para ir embora com seu “amor” para a segunda residência dos pais. A família, conceito que os feminismos tentam questionar há décadas, volta a ser a prioridade de muitas pessoas que se esqueceram de ter tantos avós. De repente, os laços de sangue prevalecem sobre qualquer outro tipo de relação, quebrando e desfazendo afinidades, comunidades (ou sonhos de), redes e amizades. Há também respostas coletivas, alguma forma de insubordinação, redes de alimentação, pequenas ou maiores desobediências, alguma festa “ilegal” de mais de dez pessoas.

O medo veiculado pela mídia paralisa e faz com que os cidadãos repitam slogans e ajam sem o filtro da razão e da justiça. E, mais uma vez, quem sofre mais são os que sempre sofreram mais, as mulheres e outras dissidentes, os migrantes e as classes sociais mais baixas. O medo de novo, se bem administrado, também é capaz de gerar amnésia sobre tudo o que aconteceu.

Agora a pergunta será: o que podemos esperar diante de um possível colapso? É provável que a grande maioria das reações se assemelhe às que já vimos durante a covid: prevaleceriam as soluções individuais sobre as coletivas, culpabilizar-se-iam as pessoas de sempre e erodir-se-iam ainda mais os direitos mais fundamentais. O medo voltaria a ser uma arma usada para controlar e manipular.

Ter tido a prévia da pandemia pode ser útil para nos prepararmos, escolhermos pessoas afins e nos reconhecermos entre aqueles que priorizam a dimensão coletiva. O medo do colapso não estará alimentando um futuro sem futuro que poderia encorajar ainda mais o individualismo? Será que o bloqueio mental e físico que gera não está forçando pensamentos do tipo “não há nada a fazer, não há alternativa, então é melhor pensar ainda mais no meu e superar isso tudo”? Individualismo extremo às portas de um colapso coletivo.

Imaginar futuros piores tirou de nós a capacidade de pensar em um futuro melhor. Mark Fisher (1968-2017) teorizou o realismo capitalista. Somos capazes de imaginar apenas o sistema capitalista. Um dos sucessos do capitalismo foi nos roubar a capacidade de imaginar alternativas. O discurso colapsista nos deixa cegos diante da possibilidade de imaginar outros futuros possíveis? É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o capitalismo. Existe um mundo por vir?

A ideia de futuro, até vinte anos atrás, estava ligada à imagem de um progresso e a uma perspectiva de aperfeiçoamento sem fim. Nos últimos anos, crises econômicas, sociais, políticas e ambientais, acompanhadas de uma produção cultural do colapso, deram seus resultados devastadores. Imaginar futuros piores nos tirou a capacidade de pensar em um futuro melhor. Um resultado extremamente funcional para o neoliberalismo capitalista, que tem usado a produção de imaginários distópicos a seu favor, para manter a ordem atual e evitar as mudanças. Se só imaginarmos um futuro pior, o presente nos parecerá aceitável e não lutaremos para mudar as coisas.

Provavelmente, haverá mundos por vir. Mas nesta transição para o desconhecido, se queremos ver o que pode haver depois do fim de uma era, é hora de alargar o olhar para os outros, redistribuir riquezas, recursos, ajudas, padrões de consumo e acabar com os privilégios, aprofundando a consciência dos danos multidimensionais que causamos ao planeta em que vivemos e aos seus seres e canalizando um caminho de justiça e reparação.

 

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