Por Natalia Marques, Globetrotter.
No dia 25 de setembro de 2022, Cuba aprovou um dos códigos de famílias mais progressistas do mundo. De uma só vez, a pequena nação insular legalizou o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, definiu e defendeu os direitos das crianças, das pessoas com deficiência, dos cuidadores, dos idosos, além de redefinir o conceito de “família” em função dos laços de afinidade, e não de sangue. Isso abre o conceito de “família” para incluir formas não tradicionais de relações familiares, que existem fora do modelo da família nuclear heterossexual.
Aclamado como revolucionário por muitos em Cuba, o código ajudará a proporcionar proteção àqueles que, de outro modo, teriam enfrentado a discriminação social, garantindo ao mesmo tempo que, na ilha, as pessoas homossexuais que desejem casar-se tenham agora o direito legal de fazê-lo.
Segundo jovens cubanos e líderes de movimentos sociais com quem falei sobre o Código de Famílias durante a conferência “Construindo nosso futuro”, realizada em Havana em novembro de 2022, o código é reflexo de um diálogo entre o povo cubano e seu governo.
Desde a aprovação do código, o povo cubano segue dialogando com o povo. O Ministério da Justiça segue realizando seminários nas províncias de todo o país para os cidadãos que buscam respostas em relação às questões que têm surgido durante o processo de aplicação. O Código de Famílias incidiu em todos os âmbitos, desde o esporte até as relações de propriedade. Em particular, somente nos dois primeiros meses após a aprovação da lei, foram realizados 112 matrimônios entre pessoas do mesmo sexo.
Um código revolucionário
“É um código revolucionário, que mudará o pensamento e a visão que os cubanos têm […] sobre a discriminações que podem ocorrer na sociedade”, afirma José Luiz, estudante do terceiro ano do curso de Relações Internacionais do Instituto Superior de Relações Internacionais Raúl Roa García. O Código de Famílias legaliza e amplia a definição de “família” para muito além da definição tradicional. O código “trará novas proteções às pessoas que, de uma maneira ou outra, foram discriminadas”, me disse luiz.
Cuba ratificou uma nova Constituição em 2019. A Constituição foi escrita através de “consultas populares” com o povo cubano. Através deste processo, os cubanos participaram em discussões comunitárias com funcionários do governo, tanto para discutir como para alterar a Constituição. O artigo 68 (que tratava de definir o matrimônio como uma união entre duas pessoas, legalizando assim o casamento entre pessoas do mesmo sexo) foi discutido em 66% das reuniões de consulta popular. A maioria dos cubanos e cubanas que participaram nestes processos apoiaram a manutenção da definição do matrimônio como a união entre um homem e uma mulher. Isso se deveu em parte aos preconceitos históricos contra as pessoas LGBTQ+ que prevalecem em todo o continente americano, e, em parte, ao crescente movimento evangélico conservador em Cuba, que se opõe a reformas sociais progressistas como o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Após um intenso debate sobre o artigo 68 entre o povo cubano, a comissão constitucional decidiu não incluir o texto proposto a favor do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo e, no lugar disso, impulsionou a decisão de abordar o assunto através de uma futura legislação de “código de família”. Esta legislação se converteu no Código de Famílias de 2022.
“Consulta popular”: um governo em diálogo com seu povo
Para superar o conservadorismo social e aprovar um dos Códigos de Famílias mais progressistas do mundo, Cuba se submeteu a um meticuloso processo de consulta popular, desde 1 de fevereiro de 2022 até 30 de abril de 2022. A Assembleia Nacional do Poder Popular se esforçou para que os cubanos se familiarizassem com o código, para evitar sentimentos de incerteza. Através deste processo, o povo cubano fez mais de 400 mil propostas, muitas das quais foram incluídas ao código final. O ministro de Justiça, Osmar Manuel Silvera Martínez, disse que a 25ª versão do código, apresentada à Assembleia Nacional e por ela aprovada, “era mais sólida, porque estava impregnada da sabedoria do povo”.
Os jovens desempenharam um papel central no processo que conduziu à aprovação do Código de Famílias. “A juventude cubana […] participa em todas as tarefas que a revolução cubana leva adiante”, disse Luiz. “Também participamos no referendo por nossa Constituição, em 2019. Estivemos em comitês populares, discutindo a Constituição, e contribuímos para ela”.
Em 2019, Cuba celebrou um referendo sobre uma nova Constituição. O referendo foi aprovado com uma maioria de votos, de 86,85%, o que equivale a cerca de 73,3% do eleitorado total. O referendo foi precedido por um processo de consulta popular, no qual o projeto de Constituição foi debatido em 133 mil reuniões públicas em todo o país, nas quais o povo cubano apresentou 783 mil propostas de alteração. As autoridades cubanas declararam que quase 60% do projeto da Constituição foi modificado com base nas propostas apresentadas pelo público durante o processo de consulta popular.
“Me lembro que na minha universidade tivemos reuniões para explicar o Código de Famílias e para que nós, como estudantes, déssemos nossa perspectiva em relação ao Código e fizéssemos propostas para ele”, me contou Neisser Liban Calderón García, também um estudante de Relações Internacionais. “Mas depois de fazer isso na universidade, fizemos o mesmo em nossa comunidade, com uma perspectiva diferente – porque na universidade estamos com nossos colegas, com [outros] estudantes; mas na comunidade estamos com pessoas de todas as idades e de diferentes famílias”. García, que tem um namorado, me disse que se alegra de agora ter a oportunidade de casar-se com ele no futuro.
Os resultados deste processo popular falam por si mesmos: com a participação de 74,01% dos votantes com direito a voto, o Código de Famílias foi aprovado em uma vitória aplastante, com 66,87% dos votos favoráveis.
“O dia que [o povo cubano] votou o Código de Famílias no referendo popular, eu também participei diretamente no colégio eleitoral”, disse Luiz. “Pude ver a alta participação do povo no processo, e a alta aceitação e o afã pela aprovação do código”.
Como Luiz mencionou, alguns jovens tiveram a oportunidade de participar de forma ainda mais direta. “Através da Federação Estudantil Universitária (FEU), temos reuniões com os dirigentes do país. Por exemplo, meu instituto teve uma reunião com o presidente. Nessa reunião, descrevemos a visão que temos como jovens revolucionários e comunistas, a visão que temos da mudança que deve ser produzida em relação à base e os dirigentes do país”, disse. “Temos voz [como jovens] em todos os espaços que há, inclusive a presidenta da FEU [naquele momento a estudante de Direito Karla Santana] faz parte da Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba. E ela compartilha sua perspectiva com o governo cubano, sobre o pensamento da juventude e sua tradição na revolução cubana”.
Gretel Marante Roset, responsável pelas Relações Internacionais da Federação de Mulheres Cubanas, me disse que as mulheres de Cuba desempenharam um papel especial no processo de criação do Código de Famílias. “Nosso comandante-em-chefe [Fidel Castro] disse que a Federação de Mulheres Cubanas é uma revolução dentro de outra revolução. Nós, mulheres cubanas, somos beneficiárias e protagonistas de nosso próprio desenvolvimento”. As mulheres ocupam a metade dos assentos parlamentares nacionais de Cuba.
“A Federação de Mulheres Cubanas fez parte da comissão que redigiu o rascunho do Código de Famílias para propor o texto e a interpretação da igualdade de gênero”, me disse Marante Roset.
“Sobre o Código de Famílias, creio que é um documento para o futuro. Está baseado no amor […] reconhecendo outros tipos de famílias, direitos humanos conjuntos… Creio que este é o futuro para Cuba”, disse ela.
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