Por Viegas Fernandes da Costa.
O filme “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (EUA, 2022), escrito e dirigido pela dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert, recebeu diversos prêmios importantes, dentre eles dois BAFTA, três Globo de Ouro e sete Oscar. Está, neste momento, entre os filmes mais comentados pela crítica e pelo público, e divide opiniões. Celebrado por uns, rejeitado por outros, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” certamente não colheu unanimidade, e arrisco dizer que as vaias superam os aplausos. Compreensível, apesar de apresentar ação do início ao fim, o filme dos “Daniels” consegue a proeza de ser enfadonho e convidar para o sono.
Leia mais: Furtou, era laranja e não o pescaram. Pode acontecer com você! Por Raul Fitipaldi.
A história de fundo é simples: Evelyn, é uma mulher imigrante em esgotamento físico e mental que administra a lavandeira familiar, tem o pai idoso, está casada com um homem que considera irresponsável e incompetente e vive em conflito com a filha que julga rebelde (a moça fez tatuagem, pouco conversa com a mãe e está namorando outra mulher). Ao ser convocada pelo fisco sob a suspeita de fraudar impostos, a personagem entra em colapso e se confronta com as múltiplas possibilidades de vida que teria, fossem outras as suas escolhas no passado (estas “vidas alternativas” aparecem na história como multiversos). Em resumo, toda ação se passa entre a reunião com a servidora federal do fisco e a entrega da declaração de impostos retificada, momento de redenção da personage, e este é o ponto que quero discutir.
Afinal, o que faz com que “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” seja reconhecido pela crítica, especialmente a estadunidense? Primeiro é preciso dizer que toda premiação no cinema é também política. Em tempos de extrema polarização política, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” tenta encontrar o caminho do meio. Se está em tela a ideia do “você pode ser o que você quiser”, especialmente no contexto da filha de Evelyn que vive uma relação homoafetiva, por outro está a importância da família nuclear. A mulher é protagonista, mas precisa do marido, que no início do filme é desdenhado. Ao final, é este marido inapto que obtém a possibilidade de novos prazos para entrega da documentação, que só pode ser organizada porque a família se reuniu em torno da mesa e organizou toda papelada enquanto a mulher vivia seus conflitos pessoais nos “metaversos”. Aliás, nestes conflitos, sua inimiga é justamente a filha que, junto com seu marido e pai são os responsáveis pelas frustrações que acumulou ao longo da vida, pelas “escolhas erradas” que fez. É curioso, entretanto, que também no “metaverso” particular da protagonista são os dois homens da família que a puxam de volta para a realidade e a salvam da destruição total.
Ou seja, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” é também a história de uma família que “lava sua roupa suja”, e não por acaso os diretores (que são homens, e isto não me parece apenas um detalhe) optaram pela lavanderia enquanto metáfora. Ao fim, o que incomoda é justamente a defesa do lugar comum, a ideia dos velhos valores “americanos”. A pátria é esta grande família que precisa ser resgatada da destruição. Em síntese, o filme estende o olhar para temas importantes, como as relações homoafetivas (ainda que exclusivamente à homoafetividade entre mulheres), a xenofobia e o protagonismo feminino, mas por outro lado reforça instituições e valores conservadores, como o papel da família, da tradição e do Estado, que precisa ser respeitado. Ainda mais desconfortável observar que, para vencer a luta contra seus inimigos pessoais, Evelyn recorre aos “olhinhos engraçados” do marido. Os sete prêmios Oscar que “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” recebeu provavelmente estão relacionados ao seu conteúdo político de “conciliação” da polarização, criando inclusive uma falsa simetria entre a extrema direita e as forças progressistas, e não às qualidades artísticas e técnicas (exceto, talvez, o prêmio pela montagem).
Também a homenagem que os Daniels fazem à história do cinema, por meio das muitas intertextualidades e algumas referências bastante claras, como aquelas feitas aos trabalhos de Stanley Kubrick, Quentin Tarantino, Carlos Saura, Bruce Lee e às irmãs Wachowski, por exemplo, tornaram ainda maior ao apelo do filme à Academia. Na base é isto, um filme dirigido por homens que reforça estereótipos e apela a ideia de conciliação sem, entretanto, problematizar as estruturas nas quais se fundam os preconceitos.