Um estudo inédito lançado pelo Instituto Socioambiental (ISA), nesta sexta-feira (10), aponta que o roubo de madeira e a presença de gado ilegal em terras indígenas ocupadas por povos isolados aumentou na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Os grupos mais pressionados são aqueles que dependem de portarias presidenciais de restrição de uso para proteção de suas terras, onde grileiros tentaram registrar fazendas e projetos de mineração.
“Havia uma sinalização bastante clara para os invasores. E essa omissão de não proteger os territórios se reflete no aumento das invasões em 2020, principalmente nas terras onde as portarias de restrições de uso expiraram”, avalia Tiago Moreira, antropólogo do ISA.
Em seu governo, Bolsonaro teve como política a não renovação de maneira espontânea das portarias de proteção das terras com registro de povos isolados, deixando estas comunidades totalmente desprotegidas. Ao mesmo tempo, seu governo editou normas que permitiram o registro de imóveis em territórios não homologados.
Em 16 terras indígenas com presença de isolados foram devastados mais de 6,5 mil hectares entre 2020 e 2022, segundo mostram dados do Sistema de Alerta de Desmatamento em Terras Indígenas com Registros Confirmados de Povos Isolados (Sirad – I) do ISA, que monitora o desmatamento em 20 terras indígenas brasileiras em tempo real, com imagens de satélite e radares.
Nas terras indígenas Jacareúba/Katawixi, no sul do Amazonas, e Piripkura, no noroeste do Mato Grosso, onde as portarias de restrição não foram renovadas no prazo, ladrões de madeira, criadores de gado ilegal e mineradores se sentiram à vontade para invadir e permanecer nessas terras.
Em 16 terras com presença de isolados, mais de 6,5 mil hectares devastados entre 2020 e 2022 (fonte: ISA)
Na TI Jacareúba/Katawixi, que tem uma área protegida de 647,3 mil hectares entre os municípios de Lábrea, Canutama e Humaitá, o Sirad-I identificou extração seletiva de madeira e a abertura de novos ramais ilegais (estradas secundárias) saindo de fazendas vizinhas para o interior da terra indígena: “o que demonstra que há uma ampliação ilegal de fazendas da região que adentram as terras indígenas sem intervenção qualquer dos órgãos responsáveis”, aponta trecho do relatório.
O avanço dos invasores apropriando-se das terras indígenas fica evidente com mais de uma centena de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) emitidos para supostas propriedades privadas dentro da TI Jacareúba.
O território está a apenas 16 quilômetros da BR-319, cujo projeto para recuperação da rodovia pretende reativar a ligação entre Porto Velho e Manaus.
“A BR-319 já exerce uma pressão muito forte, nós vemos que essas espinhas de peixe que se formam com as estradas ilegais vêm da rodovia. Esse é um projeto que vai ter um impacto muito grande sobre o território”, emenda Moreira.
Estima-se que mais de 3,3 milhões de árvores já foram derrubadas no interior da TI. O desmatamento ocorre justamente pelos acessos que partem do eixo da BR-319. Ao tomar posse como a primeira mulher e indígena a presidir a Funai, que agora se chama Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana renovou as portarias de restrição de uso das TIs Jacareuba/Katawixi e Piripkura.
Gado e ouro contra os Piripkura
Os anos de 2020 e 2021 foram devastadores para a Terra Indígena Piripkura, onde mais de 2,4 mil hectares foram derrubados, segundo os dados do Sirad. Neste período, o ex-presidente Bolsonaro resistiu em renovar a restrição de uso para manter o território protegido. O que só ocorreu em abril de 2022 e por apenas seis meses.
Nessa área, os sistemas de monitoramento do ISA identificaram queimadas intensas e flagraram grandes fazendas de gado instaladas no interior da terra indígena.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) revelam que o desmatamento na área dos Piripkura disparou entre 2020 e 2021.
Em março de 2022, uma fazenda de 12 mil hectares localizada dentro do território Piripkura quase foi vendida em um leilão, em São Paulo, por R$ 4,5 milhões. O imóvel, que chegou a ser usado por uma construtora para quitar dívidas com a Justiça, fica dentro da terra indígena.
O território com 243 mil hectares também foi alvo de mineradores e madeireiros. No ano passado, a Oxycer Holding, que é uma empresa formada por advogados especializados em direito no agronegócio, pediu autorização para explorar ouro em uma área de 33 mil hectares dentro do território.
Os isolados da etnia Piripkura mantêm contatos esporádicos com os indigenistas da Funai, que registram a presença de Pakyî e Tamandua no território desde a década de 1980 – dois sobreviventes de invasões violentas nas décadas de 1960 e 1970.
Além de não renovar a proteção dos territórios e permitir o registro de imóveis privados nessas áreas, o governo ainda tentou aprovar projeto de lei para liberar a mineração e o garimpo em terras indígenas (PL191/2020).
Em 2022, segundo o ISA, ocorreu redução nos índices de destruição após campanhas com foco na proteção dos povos isolados da Amazônia e de uma atuação forte do MPF, que conseguiu decisões que obrigavam o governo a proteger os territórios.
“Desde 2016 nós já verificamos o aumento das invasões em territórios com povos isolados, mas em 2020 o governo deu uma espécie de salvo-conduto para essas invasões e houve um aumento muito grande”, afirma Moreira, antropólogo do ISA.
Uru-Eu-Wau-Wau
Na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, território demarcado e homologado desde 1991, em Rondônia, o conflito entre criadores de gado e indígenas, que é histórico, se intensificou nos últimos anos. A disputa com fazendeiros, que estava concentrada em uma área específica da terra indígena, avançou na região onde vivem indígenas isolados.
Um grupo de indígenas em isolamento voluntário tem aparecido no município de Seringueiras, nas áreas do entorno da terra indígena, gerando clima de conflito iminente.
Em 2020, o indigenista Rieli Franciscato, da Funai, morreu após ser atingido com uma flechada dos indígenas isolados. Franciscato era sertanista e havia sido chamado após os indígenas serem vistos fora da floresta.
Só em 2022, mais de 87 mil árvores foram derrubadas no território Uru-Eu-Wau-Wau, segundo dados do Sirad, demonstrando ampliação das fazendas com áreas de pasto e de plantio de soja dentro do território indígena.
Segundo as organizações que atuam na região, além das invasões pela posse da terra, do garimpo e da exploração de madeira, uma grande invasão de pescadores no rio Cautário pode ter influência no movimento dos indígenas isolados para fora do território demarcado.
Como o território já é demarcado e homologado, o novo do Ministério dos Povos Indígenas promete ampliar a estrutura de fiscalização na região com a reativação de postos de controle.
Nesta rota da destruição, seguem as terras indígenas Alto Turiaçu, no Maranhão, e Zoró, no Mato Grosso. Nessa última, que possui registro confirmado de povos isolados, foram identificados pela primeira vez pontos de garimpo em seu interior. Em outra análise realizada pelo ISA, também em 2022, foram identificados requerimentos de exploração mineral de ouro protocolados por grandes mineradoras internacionais dentro da terra indígena.
A exploração garimpeira não é uma exceção na realidade dos territórios de povos isolados. A Terra indígena Munduruku, que possui um grupo de isolados em estudo no Alto Tapajós, tem parte de sua área tomada por garimpo ilegal. Em 2022, o Sirad-I identificou a expansão de antigos garimpos, com mais de 500 hectares de mata nativa perdida na TI, além de novos pontos de atividade minerária ilegal.
De acordo com dados oficiais, existem, em todo o país, 114 registros de povos indígenas isolados, sendo 29 confirmados pela Funai. Há, ainda, o reconhecimento de, ao menos, 18 povos indígenas de recente contato.