Revogação do Novo Ensino Médio, uma luta urgente

Para o professor da UFABC Fernando Cássio, reforma no Ensino Médio não lidou com problemas estruturais da educação, e aumentou penetração de interesses privados na escola.

Sala de aula vazia da Escola Estadual Terezine Arantes Ferraz Bibliotecaria, no Parque Casa de Pedra, zona norte da capital. 14/09/2021. Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil.

Por Isis Mustafa, Revista Opera.

Em 2017, o Congresso brasileiro aprovou a Lei 13.415/17, que estabeleceu o chamado “Novo Ensino Médio”, que começaria a valer em todo o País em 2022. Alterando as diretrizes e bases da educação nacional, a chamada reforma do Ensino Médio prometia adequar a educação brasileira a um “novo mundo do trabalho”, que exigiria novas formas de ensino e aptidões que a “velha escolha empoeirada” não poderia dar conta. Dentre as medidas previstas no Novo Ensino Médio estavam uma prometida maior autonomia ao estudante, que poderia, em parte, optar por matérias de seu interesse; a flexibilização do currículo escolar; o aumento da carga horária escolar e a ampliação do ensino de tempo integral. Um ano após a instauração do Novo Ensino Médio, no entanto, se acumulam problemas: algumas das novas matérias optativas, os chamados “itinerários formativos”, por vezes não estão disponíveis aos alunos, e os professores muitas vezes não contam com formação ou estrutura para lecioná-las. Em muitas escolas, especialmente entre os alunos mais pobres, a evasão aumentou em decorrência do aumento da carga horária ou pela implementação do ensino integral. E os interesses privados invadiram a educação pública de uma forma inédita.

Na entrevista a seguir, o professor da UFABC (Universidade Federal do ABC) e doutor em Ciências pela USP, Fernando Cássio, fala sobre o Novo Ensino Médio e as dificuldades encontradas por alunos e professores após sua implementação. Além de professor, Fernando também integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Isis Mustafa: Por que a Reforma do Ensino Médio é tão prejudicial para a educação brasileira? De que forma ela afeta estudantes e professores?

Fernando CássioA Reforma do Ensino Médio é prejudicial porque ela não ataca os problemas estruturais que geram as desigualdades educacionais da juventude e se desdobram em desigualdades para toda a vida. O “novo” Ensino Médio reforma o currículo e a organização das redes de ensino, das escolas, das disciplinas e até da sala de aula, mas faz isso gastando o mínimo possível.

A Reforma do Ensino Médio faz três grandes promessas à juventude brasileira: liberdade de escolha via flexibilização do currículo, acesso à escola de jornada ampliada (ensino de tempo integral) e qualificação profissional durante o Ensino Médio. Mas tudo isso sem ampliar a rede física de escolas técnicas, sem construir salas de aula e laboratórios, sem contratar profissionais da educação e sem formular uma política de permanência estudantil na educação básica para trazer os estudantes do período noturno para a escola de tempo integral.

Assim, não há resultado possível que não seja o aprofundamento das desigualdades educacionais já existentes no país. Os dados da Rede Escola Pública e Universidade mostram que é efetivamente o que vem ocorrendo nas redes de ensino que já avançaram na implantação da Reforma do Ensino Médio, a exemplo do estado de São Paulo.

Isis Mustafa: Mas, antes dessa Reforma, a educação também não estava boa. Na sua opinião, o que é preciso fazer para termos uma escola de qualidade para a nossa juventude?

Fernando CássioEu acho que essa não é uma forma muito adequada de colocar o debate, já que, objetivamente, a Reforma da Lei nº 13.415/2017 vem piorando o Ensino Médio brasileiro. Se o Ensino Médio anterior não era bom, ele agora está pior. A ideologia do reformismo educacional alimenta a ideia de que as reformas sempre caminham no sentido da melhoria da qualidade da educação pública. E aqui temos um caso em que a qualidade da escola efetivamente piorou por causa da Reforma.

A escola pública de Ensino Médio está mais desorganizada, os professores têm o seu trabalho muito mais intensificado (agora ministram uma multiplicidade de microdisciplinas com o mesmo salário e condições de trabalho), os estudantes não têm aulas por falta de professores. As redes de ensino não estão nem mesmo cumprindo a lei da Reforma do Ensino Médio, que estabelece a oferta mínima de 1.000 horas letivas anuais. Uma vez que não tem professor e as redes converteram parte da carga horária para ensino à distância – especialmente do período noturno –, na prática, não se está nem mesmo cumprindo a lei.

Neste sentido, uma revogação da Reforma seria uma boa medida, pois voltaríamos a uma situação menos ruim do que a que temos agora.

Outro ponto desse debate é que existe sim no Brasil um modelo público de Ensino Médio de alta qualidade, que é o modelo dos institutos federais, o que é deliberadamente ignorado pelos defensores empresariais da Reforma. A gente pode até discutir as limitações do modelo federal, mas é inegável que se trata de um modelo de Ensino Médio público de qualidade. E qual é a diferença entre o modelo de Ensino Médio dos institutos federais e o praticado nas redes estaduais? É o custo por aluno, muito mais elevado nos institutos federais. Precisa ter mais recursos para financiar um Ensino Médio de qualidade. Precisa ter professores com nível elevado de formação, instalações adequadas, políticas de permanência, etc.

O modelo de Ensino Médio implantado pela Reforma, por outro lado, tem baixa qualidade e baixo custo, haja vista os modelos de “qualificação profissional” que têm sido implantados nas redes de ensino. No Paraná, por exemplo, estudantes do Ensino Médio estão assistindo a “cursos técnicos” ministrados por professores de uma faculdade privada e transmitidos via aparelhos de TV instalados nas escolas. Já no Ensino Médio paulista, as aulas são dadas por professores de escolas técnicas privadas contratados via terceirização.

Tudo isso é embalado pelas redes estaduais com ares de novidade, criando-se a ilusão de que se está revolucionando a escola pública com itinerários formativos para as “profissões do futuro”. Contudo, o que a Reforma do Ensino Médio realmente faz é criar um arremedo de ensino técnico que substitui os conteúdos escolares por uma formação extremamente superficial, inclusive com cursinhos do tipo “vendas em redes sociais” e “como se apresentar no mercado de trabalho”. Toda essa quinquilharia curricular, por óbvio, sacrifica o acesso de estudantes ao conhecimento e aprofunda as desigualdades escolares. Ou alguém acha que nas escolas privadas os alunos vão ter suas aulas de Física e Filosofia substituídas por um curso rápido de programação de apps?

Para os estudantes das escolas públicas, a Reforma claramente estabelece a preparação para um mundo do trabalho desregulamentado, uberizado e com profissões de baixa complexidade. Essa é a orientação: baratear a educação escolar dos mais pobres. O “novo” Ensino Médio, nesse sentido, dá menos escola para aqueles e aquelas que mais precisam da escola pública.

Isis Mustafa: Você acredita que existem interesses privados nessa Reforma? Se sim, quais?

Fernando CássioEm São Paulo, o material que é utilizado para orientar os professores em relação ao novo currículo tem como colaborador o iFood, além das onipresentes fundações empresariais. É sabido que uma empresa como o iFood lucra com a superexploração do trabalho – uberizado, plataformizado – de jovens com escolarização precária, que é o próprio público-alvo da Reforma do Ensino Médio. O que significa uma empresa como o iFood, sem qualquer vínculo com a educação, estar apoiando a confecção de um material didático para a rede estadual de São Paulo?

A Reforma do Ensino Médio, é claro, interessa muito às elites econômicas do país, aos grupos que desejam definir o que é o “mercado de trabalho” e qual é o perfil desejado para esse trabalhador e essa trabalhadora que vai sair do Ensino Médio. O “novo” Ensino Médio é uma política de contenção social, na medida em que ela sonega o acesso ao conhecimento a pessoas cujo acesso à educação básica e superior de qualidade sempre foi negado. Ao simplificar o currículo escolar da escola pública, criando uma multiplicidade de pequenas disciplinas rasas em conteúdo, a Reforma do Ensino Médio estreita ainda mais as possibilidades dos mais pobres. Piora, portanto, a qualidade do Ensino Médio.

Não há dúvida de que a Reforma é uma porta aberta para a privatização da educação, com a implementação do ensino à distância através da contratação de faculdades e escolas técnicas privadas para dar conta da demanda por essa nova e barateada “qualificação profissional”. O raciocínio é simples: a única forma de implantar uma reforma educacional que aumenta drasticamente a demanda por ensino técnico e profissional sem construir uma única escola técnica é privatizar a oferta educacional direta, como já vem ocorrendo em diversos estados.

Para além dos interesses privados no sentido de definir as grandes diretrizes da educação pública do país – isto é, filantropos bilionários dirigindo as políticas para a educação dos pobres no Ensino Médio – há também os grupos que vão lucrar diretamente com pequenos e grandes contratos com as secretarias de educação país afora para a oferta ultrafragmentada dos itinerários formativos nas escolas.

Isis Mustafa: Que recado você daria para os professores em formação? Por que devem ingressar na luta pela revogação do Novo Ensino Médio?

Fernando CássioÉ fundamental que professoras e professores, estejam na escola ou em formação, nos cursos de Licenciatura e Pedagogia, se engajem na luta pela revogação dessa reforma nefasta. Pesquisadores, professores e gestores escolares já previam há muito tempo que essa Reforma, da forma como foi formulada e implantada, não pode produzir outra coisa que não a ampliação das desigualdades educacionais no país.

Os estudantes também precisam se envolver no movimento nacional para exigir a revogação da Reforma do Ensino Médio. Entidades estudantis como a UBES e a UNE precisam se posicionar mais enfaticamente. Essa é uma coisa interessante que vem acontecendo: pouca gente hoje tem coragem de defender publicamente a Reforma, pois os problemas dela ficaram muito evidentes. Então, por que as entidades, especialmente as estudantis, não estão publicamente defendendo a revogação? Os sindicatos estão engajados nessa luta há muito tempo, inclusive pressionando o novo governo.

Penso que as entidades estudantis precisam ser estimuladas por suas bases a tomarem parte nesse debate. Estamos falando de milhões de jovens das escolas públicas que estão tendo o acesso ao conhecimento vedado.

 

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