Por Beatriz Lourenço, Bitniks.
Estamos vivendo uma era de imagens. Vídeos e fotos tomam as redes sociais e o mundo offline — seja na forma de memes, selfies, deepfakes ou inteligência artificial. Mas, ainda que a democratização da imagem dê espaço a novas vozes, ela também pode ser perigosa.
Isso porque é com esse conteúdo que alimentamos a dadosfera, um conjunto de informações infinitas e irrefreáveis que pautam a política e as dinâmicas sociais. Ou seja, quando postamos uma foto no Instagram, por exemplo, o sistema reconhece todas as camadas de dados: com quem estamos, onde e qual é o modelo do nosso celular. A partir disso, grupos e perfis são analisados e podem ser referência para propagandas e publicidade. Isso permite que empresas de tecnologia — interessadas em lucro, como toda empresa que se preze — nos enxergam pelos nossos próprios olhos.
Essa é uma das discussões propostas no livro Políticas da imagem – vigilância e resistência na dadosfera, escrito pela artista e professora da Universidade de São Paulo, Giselle Beiguelman. A obra é composta de seis ensaios pensados há duas décadas. As discussões envolvem a constatação de que, hoje, as imagens são as protagonistas de relações, da comunicação e da vivência humana.
“Em 2015, estimou-se que, a cada dois minutos eram produzidas mais imagens que a totalidade das fotos feitas nos últimos 150 anos. Essa era uma estimativa relativamente modesta, considerando-se que, à época, existiam 1 bilhão de dispositivos com câmera (entre os 5 bilhões de celulares ativos), e que cada um deles capturava cerca de três fotos por dia (ou mil por ano). Hoje, já não é possível contar essa produção nem sequer em minutos. Em uma tarde de maio de 2021, mais de mil fotos por segundo eram disponibilizadas no Instagram”, escreve Beiguelman.
Os impactos disso são notáveis, uma vez que há um ciclo de superexposição, vigilância e formatos inéditos de padronização (da imagem e do olhar). Ao Bitniks, a autora fala sobre um pouco de tudo o que ela abordou na obra.
1. Como foi o processo de pesquisa e escrita do livro?
Esse livro está sendo escrito há 20 anos. Ele reúne várias questões trabalhadas em projetos artísticos que eu vim desenvolvendo no campo das imagens desde o começo dos anos 2000, mas que foram reunidas à luz de um repertório teórico acumulado nesse período. A organização dessas ideias foi feita no último ano, nesse período de pandemia, em que eu li o material que eu tinha e o desenvolvi em em uma escrita contínua.
2. A democratização da imagem abre espaço para quem antes não tinha voz, mas também gera um problema de rastreamento de dados. Como você vê isso?
Por um lado, nunca antes estivemos diante dessa grande capacidade de disseminação de imagem. Por outro, caímos em algoritmos que vão padronizar essas imagens em busca da visibilidade. Os sistemas aprendem conosco as maneiras como nós queremos ser visualizados e, ao mesmo tempo, se nutrem de todo um vocabulário inédito que consegue nos controlar.
Esses sistemas sabem onde nós estivemos, com quem estivemos e são capazes de articular esses dados para mapear grupos, perfis de identidade e essa é uma grande ambivalência que a democratização da imagem traz. São as chamadas novas estéticas da vigilância.
3. De que forma a grande circulação de imagens nos afeta?
A privacidade no século 21 é algo muito diferente daquilo que nós entendíamos antigamente. Antes, a nossa casa era o limite entre o público e o privado. Agora, estar em rede é estar conectado ao outro em várias escalas diferentes. Isso nos obriga a pensar que temos que ter um novo código ético. Me parece que é impossível as redes operarem sem essa coleta massiva de dados. O problema, no entanto, não é saber se os dados estão sendo coletados ou não, é saber quem está os coletando, para onde eles estão sendo encaminhados e como eles poderão ser usados.
O impacto no nosso cotidiano é muito evidente quando você conversa por mensagens com alguém sobre passar férias em algum lugar e, em segundos, é invadido por uma série de anúncios sobre hotéis e passagens.
Está na hora de entendermos um velho ditado estadunidense que diz: “Não existe almoço grátis”. Isso quer dizer que todos esses espaços que nós frequentamos que teoricamente são gratuitos, tipo Facebook, YouTube, Google, Gmail, tem um custo — e esse custo são os nossos metadados. Nesse sentido, as imagens ocupam um plano prioritário, uma vez que elas têm inúmeras camadas de informação, desde o celular que você usou até o lugar onde você estava. Nós somos vistos a partir daquilo que nós vemos.
4. E como isso influencia a forma como vemos o mundo?
Hoje em dia as imagens ocupam o centro das relações afetivas, sociais, políticas e de comunicação. Por um lado, isso nos coloca diante da possibilidade de acessar um vocabulário audiovisual sem precedentes na história. O contraponto disso é a horizontalidade que os algoritmos impõem a essa proliferação de imagens. Elas passam a responder a determinados padrões que vão dizer qual será a visibilidade daquele conteúdo de acordo com quem você é online.
O que pode acontecer é nós chegarmos a um ponto de só ver pelos cânones desses aparatos. Talvez um exemplo contundente sejam os mecanismos de filtragem dos sistemas de reconhecimento facial, que ainda falham muito e têm problemas em lidar com a diversidade. Aqueles erros que acontecem na identificação dos rostos de pessoas negras, por exemplo, colocam um problema em pauta que eu tenho chamado de eugenia algoritmica. No limite extremo, isso pode nos conduzir à impossibilidade de enxergar e lidar com as diferenças.
Além disso, nossa comunicação está cada vez mais visual, o que pode atrofiar nossa capacidade discursiva e de discussão com o outro. Posso citar os memes, que reduzem o diálogo ao mínimo.
5. Você apresenta todos esses problemas no livro. Há algum jeito de resolvê-los?
Primeiro, nós precisamos discutir uma nova ética para o tempo das redes. O foco deve ser por quem, para onde e como irão ser usados os dados que estão sendo extraídos. A outra demanda é uma urgência de um letramento digital. A educação deve ser responsável por nos ensinar a entender o que está na internet — e isso não quer dizer que as escolas devem ensinar o word ou power point. A minha proposta é que devemos aprender a ler esse mundo algoritmizado.