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Imagine 24 campos de futebol enfileirados um ao lado do outro. Esse foi o tamanho médio de floresta desmatada por dia, entre agosto de 2021 e julho de 2022, na Fazenda Cachoeira, norte de Rondônia. A área está registrada como propriedade do empresário e pecuarista João Gilberto Assis Miranda, que, no entanto, afirma ter vendido a fazenda para terceiros.
Este é o maior desmatamento da Amazônia em área contínua registrado no último ano, uma perda florestal de 8.987 hectares, segundo a última taxa oficial de desmatamento registrada pelo Prodes/Inpe. Os diferentes estágios do desmatamento, já é possível identificar áreas de pastagem entre derrubadas e queimadas recentes, revelam que área está sendo derrubada para criação de gado.
A família Miranda administra diversas propriedades rurais e fornece gado para grandes frigoríficos como a JBS, maior processadora de carne do mundo, e Marfrig. Entre 2018 e 2022, 8.017 cabeças de gado passaram pelas fazendas dos Mirandas.
O gado enviado para os frigoríficos saíram de fazendas registradas no município de Campo Novo de Rondônia, a 200 quilômetros da Fazenda Cachoeira. Mas a relação da família com a área recentemente desmatada é antiga e bastante enrolada.
Pelo menos 30 imóveis rurais estão registrados em nome de familiares e empresas dos Miranda, segundo dados do Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) do governo federal. Desses, 13 imóveis estão na área do maior desmatamento da Amazônia e foram certificados.
em 2018 para João Gilberto Assis Miranda.
O desmatamento nessa região começou em 2006, mas foi nos últimos anos que se tornou mais intenso. A área é uma floresta pública não destinada
e está cercada por unidades de conservação, na divisa entre a capital Porto Velho e Cujubim.
Em abril deste ano, João Gilberto Miranda foi condenado em 1ª instância, junto com o pai, Gilberto Assis Miranda, o empresário Chaules Volban Pozzebon e Laerte Manoel Correia pelo desmatamento de 409 hectares e por introduzirem 390 cabeças de gado ilegalmente na área da Fazenda Cachoeira, ainda em 2006. Segundo narra a decisão, por diversas vezes ao longo dos últimos anos, houve descumprimento dos embargos e tentativas de esconder os verdadeiros proprietários da área.
Sobrevoamos a fazenda em agosto deste ano com a equipe de monitoramento do Greenpeace, que identificou o desmatamento através de diferentes ferramentas de monitoramento.
Em agosto, a fumaça das queimadas chegou à Porto Velho, deixando as manhãs da capital rondoniense encobertas. Ao sobrevoar as áreas da Fazenda Cachoeira, a fumaça era tão intensa que os jornalistas tinham poucos minutos para fazer imagens com a aeronave literalmente dentro da nuvem escura.
“Esse desmatamento se destaca muito, é o maior desmatamento registrado no período de agosto de 2021 a julho de 2022, e é praticamente o dobro do tamanho da segunda maior área desmatada nesse período, que fica em Apuí”, informou Cristiane Mazzetti, da campanha Amazônia do Greenpeace.
No perímetro da área desmatada, foram identificados 25 pedidos de registro de propriedades no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Mazzetti destaca que as terras públicas não destinadas estão entre as as categorias fundiárias mais vulneráveis, tanto para o desmatamento quanto para a grilagem. Em terras indígenas e unidades de conservação, por exemplo, além dos impeditivos legais para se adquirir a propriedade privada da terra, a fiscalização e as autuações também são mais efetivas. “Mas não dá pra dizer que o processo de responsabilização das pessoas que invadem essas áreas [não destinadas] é impossível, porque muitas vezes os grileiros se utilizam de instrumentos para obter aquela área, como por exemplo o Cadastro Ambiental Rural [CAR]”, destaca.
Mas não dá pra dizer que o processo de responsabilização das pessoas que invadem essas áreas [não destinadas] é impossível, porque muitas vezes os grileiros se utilizam de instrumentos para obter aquela área, como por exemplo o Cadastro Ambiental Rural [CAR]
Cristiane Mazzetti, da campanha Amazônia do Greenpeace
A área desmatada está nas glebas públicas Jacundá e Rio Preto – parte dessas terras chegaram a serem distribuídas a ex-soldados da borracha, que trabalhavam nos seringais da região na época da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a título de indenização. No entanto, atualmente, os indícios são de que essas terras foram griladas.
Indícios de “laranja”
Em maio deste ano, o Ibama voltou a embargar áreas da Fazenda Cachoeira e aplicou uma multa de R$ 7,5 milhões pela derrubada de 1,5 mil hectares. No local, foram apreendidas castanheiras:Espécie nativa da Amazônia classificada como vulnerável na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (UICN) derrubadas e uma serraria móvel. Mesmo assim, o desmatamento persistiu nos meses seguintes, como mostram os flagrantes feitos por nossa reportagem e pelas equipes do Greenpeace.
A multa de R$ 7,5 milhões foi lavrada em nome de Sebastião Carlos Candido, e não no nome do proprietário, João Gilberto Miranda. Segundo consta no processo, Sebastião teria se apresentado aos fiscais como dono da área, mas ao InfoAmazonia ele negou essa informação. “Eu não tenho conhecimento disso”, respondeu por telefone.
Nossa reportagem também identificou que Sebastião é beneficiário do Auxílio Emergencial e está registrado no Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal.
Fontes ligadas ao Ibama confirmaram à reportagem que, como as áreas desmatadas pertencem a um fornecedor de grandes frigoríficos, a multa em nome de terceiros indica o uso de “laranjas”, que é quando uma pessoa assume a multa no lugar do verdadeiro infrator.
Em 2006, segundo a ação judicial, a multa aplicada pelo Ibama por desmatamento na Fazenda Cachoeira também foi registrada em nome de terceiros quando, na verdade, deveria ter sido registrada em nome de Gilberto Miranda, pai de João Gilberto Assis Miranda.
Na época, os fiscais autuaram o primo de Miranda, mas o Ministério Público (MP) de Rondônia conseguiu comprovar os interesses da família Miranda sobre a criação de gado na área, tanto que confirmou que os animais que estavam na área eram registrados no órgão sanitário estadual como propriedade dos Miranda.
Procurado, o Ibama não respondeu porque a multa foi lavrada em nome de terceiro.
O desmatamento na Fazenda Cachoeira também foi destaque no relatório da organização holandesa Aidenvironment, que investiga cadeias de suprimentos de comerciantes de soja e carne bovina. O relatório destacou quatro áreas na Amazônia, apontando a relação empresarial dos proprietários da Fazenda Cachoeira com a cadeia de abastecimento bovina da região.
Segundo o documento, a cadeia de abastecimento dos frigoríficos da região envolve seis propriedades com multas ambientais e cinco com áreas embargadas.
Os negócios do Grupo Miranda
A mais de 200 quilômetros da área desmatada no norte de Rondônia, em Campo Novo de Rondônia, estão as principais fazendas dos Miranda, com cerca de 2 mil hectares. Antes de irem para o abate, os animais passam por diferentes propriedades da família e de terceiros.
A maioria do gado enviado para a JBS saiu da fazenda Minueira, que está registrada em nome de uma holding, a LPJ Empreendimentos e Participações, da qual João Gilberto Miranda é sócio. Pelo menos 898 animais foram enviados dessa fazenda para os frigoríficos da rede. Colada na fazenda Minueira está a Fazenda Muralha, também registrada em nome de João Gilberto Miranda, que também forneceu gado para a JBS.
Já os 252 animais enviados para a Marfrig saíram da Fazenda Santo Expedito, também registrada em nome de João Gilberto Miranda.
Em 2016, João Gilberto Miranda foi multado pelo Ibama por inserir informações falsas para o transporte de madeira em Documentos de Origem Florestal (DOF). Miranda pagou a multa de maior valor (R$ 51,5 mil) e a de menor valor ainda está em aberto (R$ 11,5 mil).
O empresário também é dono de uma rede de concessionária de carros com lojas em diversas cidades de Rondônia, negócio que herdou do pai, o pecuarista Gilberto Miranda.
O patriarca da família emigrou de Minas Gerais para Rondônia em busca de terras no final da década de 1970, durante projeto do governo militar de ocupação da Amazônia.
Hoje, os negócios da família estão concentrados no Grupo Gilberto Miranda, que ainda administra uma incorporadora de imóveis e uma pequena central hidrelétrica.
Além de gado de corte, Gilberto Miranda, o pai, também produz queijos artesanais especiais. Em uma página no Instagram, políticos locais são figuras frequentes nas propagandas do Queijo 4 Cachoeiras, como o governador Marcos Rocha (União), o senador Marcos Rogério (PL), além de secretários de estado e deputados.
Pecuarista diz ter vendido área
“O grande culpado disso aí é o Ministério Público. Se tivessem deixado a posse para os que cuidavam da área não haveria esse desmatamento. O Ministério Público começou com perseguição e eu saí de lá de dentro, a pessoa que comprou é que está desmatando”, afirmou João Gilberto Assis Miranda.
Conversamos por telefone com o pecuarista e empresário, que nega ter relação com o desmatamento na Fazenda Cachoeira. “Eu vendi essa área e não consigo cancelar a matrícula em meu nome, já apresentei os documentos. Hoje tem outra pessoa lá ocupando, ele tem curral, tem casa. Eu não tenho nada a ver com essa área”, afirmou.
Ao InfoAmazonia, João Gilberto Miranda apresentou documentos de compra e venda da área com a data de 2012. O mesmo documento foi apresentado ao Incra e à Justiça. Em julho de 2022, Miranda pediu o cancelamento dos registros de propriedades em seu nome, mas o Incra apontou contradição na documentação apresentada.
Apesar de alegar ter vendido as áreas em 2012, João Gilberto pediu o registro dos imóveis em seu nome no Incra em 2018 e só trouxe a informação da possível venda agora em 2022, após o Ibama ter embargado parte da área desmatada. O empresário não soube explicar a contradição.
“Nos parece irregular terem enviado a certificação no SIGEF em 2018 no nome do senhor João Gilberto Assis Miranda, sendo que já haviam vendido os imóveis ao senhor Sérgio Masiero em 2012, favor justificar junto a seu cliente esse fato”, apontou o técnico do Incra em resposta aos pedidos de Miranda.
Miranda em diversas vezes sai em defesa de Chaules Volban Pozzebon, pecuarista e empresário do ramo madeireiro que está preso por extração ilegal de madeira e já foi considerado o maior desmatador da Amazônia. Chaules é apontado como cabeça de uma organização criminosa e também forneceu gado para grandes frigoríficos, segundo mostrou uma investigação da Repórter Brasil.
Pozzebon foi apontado como o dono de 120 madeireiras em toda região Norte e foi preso durante a Operação Deforest, conduzida pela Polícia Federal, que levou a sua condenação a 99 anos de prisão. As áreas do madeireiro ficam na mesma região da Fazenda Cachoeira.
Nos contratos de compra e venda apresentados por João Gilberto Miranda, Chaules Pozzebon aparece como avalista do pecuarista.
Em 2008, a Justiça chegou a anular a matrícula de um dos imóveis na gleba Jacundá que João Gilberto tentou registrar. Na ação, a Justiça aponta a falsificação de assinatura de um ex-seringueiro que tinha recebido um dos lotes à título de indenização do estado.
A defesa dos Miranda recorreu da condenação julgada em 1ª instância em abril deste ano. O processo ainda não foi julgado em definitivo.
Marfrig excluiu fornecedor e JBS diz manter rastreamento rigoroso
Questionada sobre as relações de negócios com a família Miranda, a Marfrig informou que realizou o último abate de animais desse fornecedor em 2020 e que não compra mais gado da Fazenda Santo Expedito. No entanto, documentos obtidos pela reportagem do InfoAmazonia mostram que a unidade de Chupinguaia (RO) da Marfrig recebeu animais da fazenda até julho de 2021.
“O produtor encontra-se bloqueado para fornecimento à Marfrig, pois a propriedade está localizada em área considerada de Alto Risco (de acordo com metodologia do Mapa de Risco, elaborado pela Agroícone para a companhia)”, informou o frigorífico.
“Além disso, o fornecedor não compartilhou – até o momento – todas as informações exigidas pelo Programa Marfrig Verde+. O objetivo do plano é tornar a cadeia de fornecimento da companhia 100% livre de desmatamento e rastreada até 2025, na Amazônia, e até 2030 para os demais biomas”.
Já a JBS diz que mantém “robusto sistema de monitoramento” e que os animais adquiridos das propriedades da família Miranda têm origem em fazendas legalizadas e livre de desmatamento.“A JBS esclarece que a Fazenda Cachoeira não consta em sua base de fornecedores e que não há registro de negócios realizados entre a empresa e essa propriedade. As fazendas Minueiras e Muralha estão no cadastro de fornecedores ativos da JBS, em situação de conformidade socioambiental, segundo os protocolos da Companhia e do Ministério Público Federal (Boi na Linha). Esse sistema faz o cruzamento de dados com as listas públicas mais atualizadas, além de análises de riscos socioambientais, sendo que a avaliação é realizada sempre por fazenda”, diz nota da JBS.