Por Geledés, em Outras Palavras.
Aqui, pretendo trazer reflexões acerca de alguns aspectos da história e cultura dos povos afro-brasileiros, sobretudo o trabalho das parteiras. Gostaria de enfatizar neste texto os saberes, as práticas e as muitas solidariedades existentes entre mulheres negras num território quilombola da Amazônia Legal em específico: o quilombo de Santa Rita de Barreira, localizado no município paraense de São Miguel do Guamá, onde realizei pesquisas durante o mestrado. Antes de chegar à comunidade e dar a conhecer algumas de suas dinâmicas e relações entre as mulheres quilombolas e as parteiras da comunidade, vale focalizar e entender aspectos gerais sobre saúde da mulher e cuidados materno-infantis no Brasil, e suas transformações ao longo do tempo.
Resistência da tradição e as tentativas do Estado para controlar as atividades das parteiras
Durante muito tempo as atividades relacionadas ao auxílio no nascimento de uma criança foram exclusividade das mulheres. No entanto, após alguns séculos, essas atividades começaram a ser realizadas também por homens (médicos) que passaram a dominar as atividades obstétricas, num processo de institucionalização e medicalização ocidentalizada dessas práticas tradicionais.
No Brasil, os médicos passaram a atuar gradualmente como obstetras no século XIX, quando a Medicina médica/científica começou a se popularizar. A partir desse período, muitas mulheres grávidas – em especial, as abastadas – passaram a ser acompanhadas por esses profissionais. Paralelamente, as parteiras começaram a ser criticadas e perseguidas. A disputa entre médicos e parteiras revela um esforço latente dos primeiros em legitimar sua profissão. Para tanto, buscavam romper com a autoridade tradicional das parteiras, que reuniam profundo conhecimento sobre gravidez/parto/pós-parto.
Ademais, essa disputa permite observar também o racismo, a desigualdade de gênero e de classe existentes na sociedade brasileira, pois a maioria das mulheres assistidas, no momento do parto, por parteiras eram/são negras e pobres, não possuem condições financeiras para pagar planos de saúde ou uma consulta com um obstetra e os serviços públicos de saúde voltados para mulheres grávidas são bastante precários. Sendo a maioria das parteiras negras e pobres, logo, foram elas as que sofreram as maiores perseguições.
Para impedir a atuação de mulheres negras enquanto parteiras, o Estado brasileiro criou várias estratégias ao longo do tempo. Entre elas, estabeleceu-se a obrigatoriedade de apresentação de um certificado do curso de formação de parteiras. Para ingressar nesse curso a candidata deveria apresentar atestado de bons costumes, saber ler e pagar 20.000 réis pela matrícula. Desse modo, aquele curso de formação restringia a atividade legal de parteira, especialmente das mulheres negras, uma vez que a maioria delas não sabia ler, não era vista como pessoas de bons costumes e não possuía recursos para pagar a matrícula.
Por essas e outras razões, no Brasil, as/os médicas/os obstetras acabaram ganhando cada vez mais espaço e suplantando o papel de parteiras, pajés e outros/as conhecedores/as culturais que administravam itinerários terapêuticos e eram responsáveis pelas curas, sofrendo até mesmo perseguição e criminalização em certos momentos. No entanto, a autoridade e o reconhecimento tradicional desses sujeitos não se perderam do campo de referências de grande parte da população brasileira. Na Amazônia, por exemplo, muitas mulheres grávidas buscaram e continuam buscando atendimento e acompanhamento tanto entre os médicos quanto entre as parteiras, principalmente as mulheres quilombolas e as indígenas. Isso ocorre por razões diversas, como falta de acesso ao atendimento médico-hospitalar, mas principalmente porque essas mulheres confiam no trabalho das parteiras e no conjunto de práticas tradicionais em suas comunidades.
Desse modo, na Amazônia, a cultura relacionada ao nascimento de uma criança permaneceu restrita ao espaço doméstico, marcada pelo cuidado e por uma rede de solidariedade feminina protagonizada por avós, mães, tias, madrinhas e vizinhas. Essas mulheres praticavam (e muitas ainda praticam) a atividade de parteira em suas comunidades, pois as práticas obstétricas que se difundiam no mundo acadêmico, em sua institucionalidade, não fizeram muito eco entre as mulheres negras e indígenas, em especial entre parteiras e parturientes, que mantinham suas práticas tradicionais e reforçavam suas respectivas relações socioculturais intracomunitárias.
Os saberes e os cuidados das parteiras relacionados à/ao recém-nascida/o e à parturiente em Santa Rita de Barreira
Santa Rita de Barreira é um quilombo contemporâneo que fica localizado na área rural do município de São Miguel do Guamá, nordeste do Estado do Pará. Sua história está diretamente ligada ao processo de colonização portuguesa e a escravização de povos africanos trazidos para a Amazônia. Nesse quilombo, assim como na maioria dos territórios quilombolas no Pará, as mulheres atuam e protagonizam diferentes atividades comunitárias. Para a análise aqui traçada, enfatizo que as mulheres quilombolas estão envolvidas com o nascimento da maioria das crianças. Elas são respeitadas pelos membros da comunidade, tanto pela atividade de parteira quanto pelo tratamento, à base de plantas medicinais e outros recursos naturais, que realizam para restabelecer a saúde das parturientes, e pela rede de cuidados mobilizada em torno dessas mulheres e das crianças.
As parteiras não se preocupam apenas com o momento do parto, mas também com o período posterior, o puerpério. Elas acompanham as parturientes por várias semanas, por saberem da importância de se cumprir os quarenta dias de repouso (o resguardo), fundamentais para a recuperação completa da mulher. Durante o pós-parto, as mulheres do quilombo de Santa Rita de Barreira sabem da necessidade de observar alguns cuidados para restabelecer a sua saúde. Por exemplo, elas são aconselhadas pelas parteiras a não saírem do quarto durante os três primeiros dias do puerpério. Depois desse período, precisam tomar algumas precauções importantes: não realizar atividades agrícolas, domésticas e sexuais, e não comer alguns alimentos reimosos, como carne de porco, de paca e de anta, peixes de pele e também mariscos, pois eles são considerados prejudiciais à saúde da parturiente.
As mulheres-parteiras, ao longo de suas atividades cotidianas ligadas ao partejar, ganham muita experiência, tanto que com um simples toque, ou até mesmo uma olhada para a barriga da grávida, elas já conseguem saber como a criança está e se a parturiente poderá ter seu filho em casa, por exemplo. Em alguns casos, as suas análises falham. Mas segundo as moradoras da região, é muito difícil uma parteira experiente errar em suas intuições. Dessa forma, as mulheres do quilombo confiam nas suas parteiras e em seus saberes ligados à saúde-doença das mulheres grávidas e paridas da comunidade, a exemplo de massagens na barriga e remédios caseiros feitos de plantas medicinais para tomar antes e depois do parto. Esses são saberes que as parteiras adquiriram ao longo de seus anos de ofício e que são fundamentais às parturientes quilombolas.
Os saberes das parteiras são resultados das práticas cotidianas, derivados de aprendizagem intergeracionais (as mais novas aprendem com as mais velhas). Mas também é fruto do desafio dessas mulheres diante da vida e da morte, já que muitos partos eram/são bastante complicados. O temor à morte se fazia (e ainda se faz) presente nessas ocasiões. Assim, as atividades das parteiras quilombolas, mais especificamente do quilombo Santa Rita de Barreira, encontram-se envoltas em práticas mítico-cosmológicas, sendo que essas mulheres são geralmente guardiãs de saberes ocultos.
Em Santa Rita de Barreira, as parteiras conquistaram respeito e autoridade dentro da comunidade. E elas não recebem dinheiro em troca dos serviços prestados. Assistem às mulheres na hora do parto porque entre elas existem laços afetivos e de solidariedade comunitária, sendo que o modo de vida quilombola é marcado por uma outra alternativa de pensar e viver que, de certa forma, se opõe ao capital e à cultura eurocêntrica hegemônica. O modo de vida desses povos é entendido como um Bem-Viver, pois para eles o fundamental é a coletividade, o cuidado com/entre o grupo, a relação com o território e a natureza e o conhecimento ancestral.
Vale destacar que algumas mulheres da comunidade começaram a atividade de parteira ainda muito jovens, enquanto outras já iniciaram na idade adulta. Assim, não é estabelecida uma faixa etária única para se tornar parteira entre as quilombolas. A atividade inicia conforme as necessidades cotidianas: seja vendo e ajudando as parteiras mais idosas a realizar o parto de uma criança, ou também em momentos de improvisação, quando a parturiente, por exemplo, se encontra sozinha em casa, sem o auxílio de uma parteira “profissional” (ou mais experiente).
Assim, algumas moradoras de Santa Rita de Barreira iniciaram a atividade de parteira com mais de 40 anos de idade, a partir da necessidade de ajudar suas vizinhas que estavam em trabalho de parto. Isso ocorre quando a parteira experiente (termo usado para designar as parteiras que já realizaram muitos partos com sucesso e conquistaram a confiança de seu grupo social) demora a chegar. Se a experiência for exitosa, o quilombo terá uma nova parteira que precisará, ao longo do tempo, acompanhar as mais velhas em suas práticas do partejar, a fim de adquirir alguns conhecimentos importantes para o sucesso de partos futuros.
A confiança das mulheres quilombolas depositada nas parteiras da comunidade se traduz também na seguinte ação: apesar de fazerem o seu pré-natal e acompanhamento obstétrico com médicos e enfermeiras, geralmente na cidade próxima, elas procuram as parteiras para “puxar sua barriga” e fazer outros acompanhamentos específicos, relacionados à sua realidade sociocultural. Nesse sentido, há uma intensa complementaridade terapêutica no quilombo, entre saberes biomédicos e tradicionais.
As mulheres quilombolas acreditam que os médicos fazem o ultrassom apenas para verificar a posição da criança. E caso ela não esteja na posição correta para o nascimento (posição cefálica, a qual facilita o parto vaginal), o médico propõe a realização de uma cesariana, sem buscar outras alternativas. Isso as deixa inseguras e com medo, levando-as a buscarem os saberes das parteiras, por confiarem em seus conhecimentos e em suas massagens para colocar suas/seus filhas/os na posição adequada para o nascimento. A isso dá-se o nome de puxação. Nesse momento, a parteira analisa o corpo da grávida para perceber se o/a bebê se mexe na barriga da mãe. Esse também é um momento de afeto e trocas de experiências entre as mães e as parteiras.
Portanto, o conhecimento tradicional das parteiras criado e recriado em seu cotidiano, saberes sobre as plantas medicinais, banhos, receitas, chás, simpatias, massagens e garrafadas, se corporificam na cosmovisão e nas concepções terapêuticas dessas mulheres e de suas “pacientes”: as parturientes do quilombo. Essa prática, o partejar, está longe de constituir uma expressão atomizada de saúde tradicional, um resquício de formas antigas e superadas de cuidar das mulheres grávidas e puérperas, que se mantém em diversas comunidades pelo interior do Brasil. É muito mais que isso. Ela expressa parte das necessidades, dos sentimentos, dos afetos e das redes de solidariedade que foram social e culturalmente definidos e historicamente tornados possíveis entre povos racializados, para afirmar suas existências e horizonte de vida coletiva. Tradições que nos ensinam sobre a potência do cuidado das mulheres, e entre as mulheres. E que continuemos aprendendo com elas!