Que Lula era culpado de todos os crimes pelos quais era acusado era uma ideia que não gerava nenhuma dúvida entre os que defendiam sua punição e prisão de modo exemplar. Afinal, se as instâncias do sistema judiciário tinham se pronunciado oficialmente a respeito e determinado a culpabilidade de Lula, como alguém com um mínimo de coerência jurídica poderia alegar que Lula não era realmente merecedor das condenações que lhe foram legalmente atribuídas?
Em vista do acima exposto, tudo se mostrava dentro de uma claridade cristalina para os que almejavam extirpar da sociedade e da política brasileiras a figura de Lula, um “outsider” que havia surgido dos grotões da subcidadania excluída e tinha ousado se intrometer num mundo que sempre havia estado reservado aos integrantes da bem-nascida elite socioeconômica do país: o mundo da política e das determinações dos rumos da nação.
Porém, parece que essa maneira de encarar a correção e a adequação das decisões judiciais já não está mais sendo considerada válida por boa parte dos que antes as tomavam como indicações suficientes para dar amparo às perseguições e privações a que Lula foi submetido. Agora que, nas próprias instâncias judiciais oficiais, todas e cada uma das acusações e condenações aplicadas ao ex-presidente caíram por terra, aqueles que não se conformam com isso decidiram adotar a argumentação de que a não existência de uma condenação não implica em uma automática inocentação de Lula. Dá para entender a lógica desta argumentação? Não? Bem, não é mesmo para ser entendida.
Vamos fazer uma breve exercitação mental para que possamos ter uma melhor compreensão dos objetivos daqueles que se recusam a aceitar a ideia de que Lula venha a ser considerado inocente das condenações que tinha sofrido para, desta maneira, continuar atribuindo a ele a condição de suspeito e culpado em potencial por tudo o que contra ele foi levantado.
Se alguém fosse acusado, julgado e condenado sob a alegação de ter esfaqueado e matado outra pessoa em algum lugar, este alguém seria, então, em boa lei, o responsável por um crime de assassinato. Concordam?
Entretanto, se, algum tempo depois, uma reanálise das provas e indícios referentes ao caso viesse a mostrar que não havia nenhum embasamento para determinar que o acusado fora de fato responsável pelo crime em questão, qual deveria ser a condição legal de tal pessoa? Para os defensores da manutenção da suspeita de condenação, a coisa se explicaria pelo fato de que a impossibilidade de aportar provas que evidenciem o crime praticado não excluiria a possibilidade de que o mesmo tenha sido realizado. A áurea de culpa continuaria pesando sobre o acusado embora a acusação tenha deixado de existir por inconsistência.
Foi com base em tal lógica argumentativa que um jornalista da revista IstoÉ (cujo nome insignificante me recuso a promover) andou publicando artigos para procurar invalidar a inocência de Lula quanto aos crimes a ele atribuídos. Segundo o tal jornalista, Lula não pode ser considerado inocente, visto que as determinações legais tão somente eliminaram as condenações. Portanto, quando serviam para condenar Lula, as decisões judiciais eram plenamente válidas. No entanto, embora as tais decisões legais tenham sido anuladas, elas devem continuar mantendo a validade da essência com a qual foram proferidas. Em outras palavras: Lula é sim culpado porque a Justiça assim o determinou, mas Lula não pode ser considerado inocente simplesmente em razão de que as determinações judiciais que o haviam condenado terem sido consideradas legalmente infundadas. Aquilo de que todo mundo é inocente até prova em contrário não tem nenhuma serventia neste caso específico.
Analogamente, poderíamos aplicar a mesma regra ao citado jornalista e dizer que ele estaria agindo para difamar a figura de Lula pela suspeita de ter recebido milhões de dólares de seus patrocinadores para divulgar uma versão que impediria que a sociedade visse em Lula alguém que foi acusado, condenado e caluniado injustamente de vários crimes sem a apresentação de nenhuma prova. Neste caso, se o jornalista em questão abrisse um processo judicial contra mim e o júri me condenasse por eu não ter aportado nenhuma prova veemente das acusações que levantara, sempre me caberia a saída de que a decisão tomada pela Justiça não implicaria em reconhecer a inocência daquele a quem tinha acusado. Em outras palavras, qualquer um continuaria sendo um provável responsável por qualquer crime que lhe tenha sido atribuído. Se não é para ser assim, que o acusado se vire e trate de provar que não cometeu os crimes em questão. Ou seja, inverte-se a tradição jurídica: todo mundo é culpado até que prove sua inocência!
E se surgisse alguma outra acusação dizendo que o tal jornalista estaria agindo desta maneira em função de uma extorsão por um crime de pedofilia em sua juventude praticado contra uma menor desamparada que, agora, está exigindo dele este comportamento contra Lula para não tornar pública a violação de que tinha sido vítima? Bem, pode não haver nenhuma prova disponível a respeito do tal ato de pedofilia, mas quem garante que o mesmo não tenha ocorrido? Poderíamos exigir que o citado jornalista saísse a campo e tratasse de produzir as provas que determinariam a sua inocência.
Estão achando absurdas as linhas de pensamento apresentadas? Oxalá que sim, porque é exatamente disto que se trata. Estamos falando de argumentos estapafúrdios que estão sendo empregados por aqueles que entraram com tudo na campanha para eliminar a presença incômoda (para eles e para os seus) de Lula na vida política do Brasil e, agora, não conseguem aceitar passivamente a derrota de seus planos macabros.
No fundo, estamos diante de mais um capítulo da eterna luta de classes. Não é que o jornalista da revista IstoÉ que escreveu aquele artigo mal-intencionado não soubesse do que se tratava ao redigir sua matéria. Seguramente, ele deveria ter plena consciência da besteira lógica que estava tentando inculcar na mente de seus leitores. Mas, seu objetivo fundamental não era defender a coerência de sua lógica judicial. O que ele estava tratando de fazer era proteger os interesses de classe com os quais ele está associado.
Não apenas na Justiça, como em tudo mais na vida social, o fator determinante de nosso comportamento é sempre, em última instância, relacionado com as disputas envolvendo a luta das principais classes sociais na contenda pela participação de cada qual na distribuição dos frutos do trabalho produzido pela sociedade.
Em resumo, a velha luta de classes continua sendo a essência do motor que impulsiona os movimentos da sociedade em que vivemos. Por isso, muito mais do que em coerências teóricas, a lógica do comportamento dos diferentes atores das disputas sociais vai ser detectada com mais claridade nos objetivos de classe com os quais eles estão associados.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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