Brasil é país que menos julgou e puniu crimes da ditadura na região, diz historiadora argentina

Os anos após o AI-5, decretado em 68, foram os mais violentos da ditadura militar

Por Camilla Veras Mota.

Paraguai, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai, Argentina. Em meados dos anos 1970, boa parte da América do Sul estava mergulhada em ditaduras militares.

Apesar dos elementos em comum – o pano de fundo da Guerra Fria, os conflitos internos que colocavam grupos de esquerda como ameaça à ordem nacional, o princípio da doutrina de segurança nacional -, cada um desses regimes foi marcado por particularidades.

E o mesmo se pode dizer do período posterior, a redemocratização. A maneira como cada país decidiu lidar com os crimes cometidos pelo Estado e com o processo de desmilitarização da política foi única – e essas escolhas reverberam até os dias de hoje, diz a historiadora argentina Marina Franco, que pesquisa o tema.

Franco é professora da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM) e co-coordenadora do Programa de Estudios de las Dictaduras del Cono Sur y Sus Legados (“Programa de Estudos das Ditaduras do Cone Sul e Seus Legados”, em tradução literal). É co-organizadora do livro Ditaduras no Cone Sul da América Latina (editora Civilização Brasileira), publicado em 2021.

A Argentina, por exemplo, foi um dos poucos países a revogar a lei de anistia que os militares aprovaram antes de deixar o poder.

Ainda em 1983, ano em que o civil Raúl Alfonsín assumiu a presidência, foi criada a Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (Conadep), que tinha a função de investigar os crimes contra direitos humanos cometidos entre 76 e 83, os anos do regime.

O país levou à prisão perpétua o general Jorge Rafael Videla, que governou o país entre 76 e 81 e, até março de 2022, a Justiça havia condenado outras 1.058 pessoas em 273 sentenças por crimes relacionados ao terrorismo de Estado.

O Brasil é um exemplo do lado oposto. A lei de anistia sancionada em 1979 pelo regime militar segue em vigor e foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010 – o que significa que a grande maioria dos civis e militares envolvidos nos crimes durante o período não pode ser julgada.

O órgão instituído para investigar os crimes relacionados à ditadura, por sua vez, foi criado apenas em 2011. Trata-se da Comissão Nacional da Verdade, que, em seu relatório final, em 2014, apontou 377 nomes entre os autores de graves violações aos direitos humanos.

A primeira condenação de um agente havia ocorrido ano passado, quando um juiz federal responsabilizou o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte nos anos 70 (o entendimento foi de que o sequestro é um crime continuado e, portanto, não coberto pela lei de anistia). Em fevereiro deste ano, contudo, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região acatou um recurso da defesa, que alegava prescrição do caso, e extinguiu a punibilidade do ex-delegado.

Em entrevista à BBC News Brasil, a historiadora explica por que considera, entre os vizinhos do Cone Sul, o Brasil como um caso “extremo” da chamada justiça de transição, sendo o que menos investigou, julgou e puniu crimes da ditadura.

Fala ainda sobre a importância dos áudios revelados nesta semana em que membros do Supremo Tribunal Militar admitem a prática de tortura durante a ditadura militar e sobre como o processo de redemocratização à brasileira explica o momento atual do país.

BBC News Brasil – Quando olhamos para os países da região após o fim das ditaduras, a Argentina parece ser o que com mais afinco se debruçou sobre a questão da justiça de transição. A revogação da lei de anistia, a criação do Conadep, a prisão de Videla, os julgamentos que acontecem até os dias de hoje. O país é um caso particular? Se sim, por quê?

Marina Franco – A Argentina é um caso particular em relação a como se resolveu a saída da transição. É diferente do Uruguai, do Chile, do Brasil. Se você olhar a partir do presente, é o melhor, é um modelo de como se julgar e investigar esses crimes.

Agora, isso não se deve ao fato de que a Argentina em si seja um país modelo ou de que nós argentinos sejamos mais justos, com mais memória ou mais democráticos. Não tem nada a ver com isso.

O que aconteceu na Argentina foi que existiram as condições políticas para que pudesse haver justiça transicional. Essas condições políticas são três, para mim, muito claras.

As Forças Armadas saem de cena completamente derrotadas e fracassadas. Deixaram o poder com um fracasso político terrível, com um fracasso em uma guerra desastrosa – a Guerra das Malvinas -, com um fracasso econômico e uma crise atroz.

Isso é o inverso do que aconteceu no Brasil. Durante o governo militar no Brasil se produziu um milagre econômico – muito questionado, mas houve um momento de crescimento.

Aqui, quando as Forças Armadas deixaram o poder havia 300% de inflação mensal. Não há governo que resista a isso. E é o momento em que se começam a descobrir os crimes. A debilidade absoluta das Forças Armadas quando saem do poder cria as condições para que, se viesse um governo disposto a investigar e julgar, se pudesse fazê-lo.

E o governo que veio [de Raúl Alfonsín, representante do partido União Cívica Radical (UCR), rival histórico do movimento peronista] efetivamente teve essa vontade. A outra força política que poderia ter ganhado aquelas eleições, o peronismo, não pensava em investigar e julgar.

Então o que se deu foi uma confluência de elementos, um equilíbrio de forças que permitiu que se investigasse e se julgasse.

O último elemento – e é importante que isso fique claro – é que na Argentina não se investigou porque socialmente havia um critério ético sobre as aberrações que haviam sido cometidas pelas Forças Armadas. Não existia uma consciência, é o contrário. A investigação e julgamento – ou seja, as políticas de Estado – criaram um consenso social sobre o que havia acontecido.

Sede da Escola de Mecânica da Armada em Buenos Aires, centro de tortura e repressão durante a ditadura, foi convertida em museu

BBC News Brasil – Às vezes parece que o caminho é inverso, que a pressão social dos argentinos levou à investigação, julgamentos e punições…

Franco – Justamente, mas o que aconteceu foi que, no final da ditadura, começam a surgir informações sobre o que havia acontecido, sobre o desaparecimento forçado de pessoas.

Naquele momento, a maioria acreditava que essas pessoas eram subversivas e que a repressão havia sido necessária. São os efeitos do julgamento, da investigação, que começam a mudar o olhar da sociedade.

E aqui me parece importante destacar, pensando no caso brasileiro, que as políticas de Estado produzem efeitos e transformam. A ausência de políticas de Estado no Brasil, para mim, é um dado fundamental para entender algumas das coisas que acontecem no país.

As políticas de Estado de memória, de justiça, as políticas educativas sobre as ditaduras geram efeitos de transformação social, e acredito que a Argentina seja um desses casos.

Acho que o mais notável no caso argentino são os efeitos dessas políticas sociais junto com a mobilização social, que, claro, também existe.

Uma das manifestações estudantis ocorridas em 1968, contra as quais representantes da linha dura no regime militar pressionavam o presidente Costa e Silva a decretar novo ato institucional para liberar instrumentos repressivos

BBC News Brasil – O Brasil parece um exemplo no sentido contrário quando se pensa em justiça de transição. Criou sua Comissão da Verdade apenas em 2011, fez sua primeira condenação em 2021. Como a senhora vê esse processo – é também um caso particular?

Franco – Bom, todos os casos são particulares. Nesse sentido, poderia-se dizer que o caso argentino é o extremo de investigação e justiça. O Brasil, por sua vez, estaria no outro extremo. Porque no Uruguai e no Chile houve processos, eles estariam ali no meio. Foram processos tardios e limitados de investigação e justiça, mas eles os tiveram.

O Brasil é o caso mais extremo, porque, com a lei de anistia de 1979, não houve praticamente nenhum julgamento. E existe um consenso social a favor dessa lei [confirmada pelo Supremo em 2010], uma vontade política, uma vontade jurídica para que ela seja mantida.

A Comissão da Verdade, como você mencionou, é bastante tardia. O próprio partido que poderia tê-la estabelecido muito antes, que era o PT, demorou para fazê-lo.

E aí é importante agregar outro ponto. A lei de anistia também permitiu o retorno daqueles que estavam exilados, os opositores ao regime – e que passariam a fazer parte do jogo político dali para frente.

Então há um interesse de todas as partes nessa possibilidade de restaurar o jogo político, o que não aconteceu na Argentina, porque a maioria dos opositores ao regime estavam mortos, desaparecidos ou faziam parte de grupos que depois não se integraram aos partidos políticos.

Assim, é importante, no caso do Brasil, o fato de que a cena política posterior incorpora todos os atores, assim como no Uruguai, por exemplo, com seu Frente Amplio.

Isso faz com que o jogo político posterior decida como se vê a situação prévia. Por isso sempre insisto na questão do equilíbrio de forças.

BBC News Brasil – A ideia é de que poderia ser “desconfortável” para esses grupos tocar em assuntos como os grupos paramilitares de esquerda?

Franco – Isso. Quando Dilma Rousseff chega ao poder, por exemplo, é constantemente “acusada” de ser guerrilheira.

BBC News Brasil – Parece haver uma tensão permanente nesse sentido. O atual presidente do Supremo Tribunal Militar, Luis Carlos Gomes Mattos, ao comentar sobre os áudios inéditos revelados nesta semana em que membros do STM relatam casos de tortura durante a ditadura, desdenhou do material e disse que, quando se toca no assunto, “só varrem um lado, não varrem o outro”.

Franco – Nesse sentido, eu diria que os efeitos dos julgamentos na Argentina permitiram deixar claro que, não importa qual tenha sido a violência das organizações revolucionárias – que, aliás, na Argentina foram muito mais violentas do que no Brasil -, nada, nada é comparável com a violência exercida pelo Estado e pelas Forças Armadas.

Em certa medida essa discussão está resolvida aqui. Há um consenso social muito claro de que a responsabilidade pela violência é do Estado, das Forças Armadas, e que ela é inadmissível.

Acho que essa é uma diferença marcante, e é resultado das políticas de investigação e justiça.

Protesto contra a ditadura na Argentina em 1982: regime se estendeu de 76 a 83.

BBC News Brasil – Também comentando sobre os áudios, o vice-presidente, Hamilton Mourão, disse se tratar de “coisa do passado”, que não se pode trazer os mortos de volta para submetê-los a julgamento. Como historiadora e pesquisadora das ditaduras latino-americanas, como a senhora avalia a importância dos documentos desse período e da forma como tratá-los?

Franco – A importância dos áudios é absolutamente crucial em um país onde os processos de memória são limitados. O conhecimento sobre o passado é limitado, e sobre ele ainda se coloca em dúvida que tenha havido tortura e repressão. Esses áudios são provas indiscutíveis de que isso aconteceu.

Me parece fundamental que isso seja divulgado, que circule, que seja discutido. Acredito ainda que ajuda a reduzir o espaço para as vozes negacionistas e as vozes revisionistas.

Um historiador não precisa dessas provas hoje no Brasil [porque as evidências de violações já são claras]. Mas me parece que, socialmente, essas provas têm um impacto importante. Importante para a memória, para que se entenda realmente o que aconteceu.

A verdade histórica não necessita de prova, mas, em um país onde ela é colocada em dúvida, é fundamental que tudo isso fique claro.

Enterro do estudante Edson Luís, assassinado em março de 1968 no Rio por policiais militares no restaurante Calabouço, em 28 de março de 1968: sua morte desencadeou uma série de manifestações contra o regime militar

BBC News Brasil – Que consequências práticas esse processo de memória limitado e a justiça de transição frouxa do Brasil no pós-ditadura têm?

Franco – Em uma palavra, podemos dizer: Bolsonaro. Uma coisa está ligada com a outra. A falta de justiça, de políticas de processamento social e memorial do passado dificultam a criação de consensos sociais massivos pró-democráticos.

Dificultam a criação de mecanismos de controle, mecanismos de vigilância que impeçam que certas coisas sejam admissíveis.

Na Argentina, por exemplo, hoje é inadmissível que as Forças Armadas intervenham em questões de segurança pública [“seguridad interior“], que o Estado seja militarizado, que exista alguém que reivindique publicamente a violência estatal, a repressão, a tortura. Essas vozes podem aparecer, mas são imediatamente rechaçadas – e socialmente rechaçadas.

BBC News Brasil – Outra questão quando se fala em redemocratização são os processos de desmilitarização dos países da região. Na Argentina, os militares parecem ter de fato voltado à caserna, um cenário bastante diferente do Brasil. Aqui, eles não apenas se mantiveram na política, como chegaram ao poder pelas urnas em 2018. Como a senhora analisa esse processo?

Franco – O processo de desmilitarização no Brasil foi muito parcial, muito fragmentado e muito limitado. A eleição de Bolsonaro mostra um pouco isso. O tempo foi passando, foi passando e, de repente, quando Bolsonaro chega ao poder, percebe-se que o Estado ainda estava militarizado.

E não só o Estado, mas também as concepções sobre ordem estavam militarizadas, o que é mais grave. Militarizadas e moralizadas. Bolsonaro reproduziu um discurso sobre a moral que também é profundamente repressivo.

E volto àquele ponto: a grande diferença é a situação em meio à qual as Forças Armadas deixam o poder na Argentina e no Brasil. No Brasil, não saem completamente derrotadas. Deixam a direção do poder Executivo, mas não saem derrotadas.

O mesmo acontece com um outro grande caso, o do Chile, em que as Forças Armadas se retiraram com um nível de presença e controle de peso no jogo político.

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