A data de 25 de janeiro marca os 187 anos da revolução conduzida por negros escravizados que sacudiu a cidade Salvador na madrugada do último dia do mês sagrado do Ramadan de 1835, dirigida por negros escravizados de origem Haussá, Fulani, Yorubá, Aio Quija e Nagô, chamados de Malês, devido ao fato de que, em ioruba, Imalê é a designação para muçulmano. A revolta ficou conhecida na historiografia brasileira como a Revolta dos Malês.
Embora não representassem a hegemonia religiosa das pessoas africanas escravizadas, os Malês tinham um peso significativo por serem uma população que sabia ler, escrever e eram dotados de uma cultura bem mais larga do que muitos senhores de escravos.
Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, afirma que o Islam se ramificou e floresceu no escuro das senzalas, dotando aquelas pessoas escravizadas de um espírito de resistência no qual não se conformavam com o papel de “manés-gostoso” dos portugueses e nem seria a água benta dos batismos cristãos, que lhes apagaria “o fogo maometano” da busca por liberdade.
A revolta foi preparada e planejada para a eliminação do regime local português e as injustiças praticadas contra os negros, a emancipação dos escravizados e a liberdade para exercer os rituais religiosos, pois aquelas pessoas escravizadas viviam à margem da lei, já que a Constituição brasileira de 1824 estabelecia no art. 5º que o catolicismo era a religião do Estado, a única com direito a celebrar cerimônias públicas e construir e manter templos, enquanto as religiões africanas eram perseguidas e tratadas como caso de polícia.
Reuniões passaram a ser realizadas nas casas dos escravos libertos, nas senzalas, nas mesquitas e terreiros para planejar e mobilizar os rebeldes onde, no caso dos Malês, se misturavam as orações islâmicas, as aulas de religião e de escrita e recitação dos versos do Alcorão, e de onde o imam Mala Mubakar fez o chamado ao Jihad (resistência), escrito na forma de um documento em árabe em que pedia aos muçulmanos e às demais pessoas escravizadas que se preparassem para a revolta.
As reuniões e encontros eram realizadas com a presença basicamente dos negros islâmicos, embora os Malês se esforçassem em convidar escravos libertos de diferentes grupos étnicos e religiosos para o levante. Nem todos os africanos muçulmanos existentes na Bahia naquela ocasião, tomaram parte na revolta.
No entanto, o plano não foi rigorosamente aplicado, talvez em decorrência dos rumos que tomaram os acontecimentos e a antecipação do início da revolta, em face da delação da negra nagô emancipada Guilhermina Roza de Souza, companheira de um dos líderes do movimento, o nagô Domingos Fortunato, e do ataque surpresa das forças policiais ao local onde estavam reunidos para compartilharem o ifhtar, a refeição comunitária ingerida após o por do sol com a qual se quebra o jejum diário durante o mês do Ramadan, momento em que as tropas governamentais cercaram a casa de Manuel Calafate, na Ladeira da Praça, na madrugada de 24 para 25 de janeiro.
Ali se encontravam cerca de 60 homens armados com espadas, lanças, pistolas e espingardas, que reagiram ao cerco policial e começaram a atirar. Pegos de surpresa, os rebeldes se dividiram e se espalharam pela cidade. Muitos deles se vestiam com roupas típicas islâmicas, uma espécie de abadá branco, que as autoridades policiais definiram como “vestimenta de guerra”, além do takia, o gorro islâmico, semelhante ao turbante usado no candomblé e na umbanda.
Após o confronto inicial, os revolucionários saíram pelas ruas, becos e vielas de Salvador, batendo nas janelas das casas e convocando os escravizados e os libertos a se unirem à revolução. Atacaram o palácio do Presidente da província, invadiram quartéis, enfrentaram tropas e fragatas de guerra ancoradas no porto de salvador. Boa parte do grupo marchou para a Ajuda, em direção à Câmara Municipal, com a intenção de arrombar a cadeia e libertar os líderes que haviam sido presos, principalmente Pacífico Licutã.
Deu-se uma verdadeira carnificina, pois era evidente a superioridade dos armamentos das forças oficiais, pois enquanto os Malês estavam armados com lanças, espadas, porretes e algumas poucas pistolas e espingardas, os policiais portavam pistolas, baionetas e farta munição. Os revoltosos foram encurralados no Quartel da Cavalaria, localizado em Água de Meninos onde se deu a batalha final e antes do nascer do sol daquele domingo de 25 de janeiro, 73 rebeldes tinham tombado e seus corpos foram jogados em uma cova comum no cemitério de Salvador.
Mais de 500 foram presos. No confronto morreram 14 soldados das forças oficiais e um indefinido número de feridos. Houve também civis que foram atingidos mortalmente, mas não há registro oficial do número total e dos nomes dos mortos. Estava sufocada a grande revolta dos escravos, uma ação revolucionária de grande heroísmo de negros e negras contra a escravidão e os maus tratos.
Após os confrontos, deu-se início a uma verdadeira caçada aos revoltosos. O chefe da Polícia baiana, Francisco Gonçalves Martins, baixou uma Portaria que autorizava uma devassa completa em todas as casas pertencentes a negros africanos. A mesma ordem autorizava a que qualquer cidadão dar voz de prisão a pessoas escravizados muçulmanos ou não, que estivessem reunidos em número de quatro ou mais.
Os escravos só podiam circular pelas ruas de Salvador com ordem escrita dos seus senhores, detalhando para onde iam e o que fariam. Além disso, os senhores de escravos foram obrigados, sob pena de elevadas multas, a forçar a conversão de seus escravos ao catolicismo.
Naquela época, os negros muçulmanos já eram uma forte referência para a comunidade negra de Salvador. Os escravizados libertos recorriam às diversas religiões em busca de conforto espiritual e esperança, e para por dignidade em suas vidas. No caso dos Malês, os textos e a pregação corânica davam esperança e inspiração para a resistência das mulheres e homens discriminados, exilados, perseguidos e escravizados através da sua mensagem libertadora, e porque era uma religião atraente para os subalternos sociais, devido à sua mensagem fortemente crítica das injustiças sofridas pelos seus seguidores.
Clóvis Moura escreveu que a revolta dos escravos baianos de 1835, não foi uma eclosão violenta e espetacular surgida espontaneamente ou de um incidente qualquer e sem plano preestabelecido, “mas uma revolta planejada nos seus detalhes, precedida de todo um período organizativo – fase obscura de aliciamento e preparação – sem a qual não se poderá compreender as proporções que alcançou em uma das principais províncias do Império”. (Moura, 1988, p. 174)
Para se dimensionar a importância do episódio, a Revolta dos Malês mobilizou entre 600 e 1000 homens, o que equivale a aproximadamente 50 mil pessoas, comparando-se proporcionalmente com a população da cidade de Salvador nos dias de hoje. A revolução que não foi uma simples insubordinação de escravizados, mas uma ação de homens e mulheres bravas, de muito valor e admirável coragem e lealdade com os seus princípios islâmicos de luta por liberdade e justiça.
A Revolta dos Malês foi um importante movimento antiescravidão, que deu uma grande lição de garra e luta pela liberdade que engrandece a história das lutas sociais no Brasil, com seus feitos praticamente omitidos pela historiografia oficial, como de resto as diversas lutas e revoltas contra a escravidão, sem que tenham o merecido registro nos livros de história e no currículo das escolas brasileiras.
A revolta de 1835 se soma a movimentos decisivos, entre eles, as associações, clubes e grêmios abolicionistas para a libertação dos escravizados e a eliminação do tráfico de pessoas escravizadas, e de conquistas como a Lei do Ventre Livre e a “Lei Áurea”, assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888.
Glória eterna à memória dos homens e mulheres, de todas as raças e credos religiosos, que se uniram e lutaram no Ramadã de 1835 contra as injustiças e ousaram tomar o céu de assalto, para pôr fim a escravidão e conquistar a liberdade.
REFERÊNCIAS:
CALMON, Pedro. Malês: a insurreição das senzalas. Assembleia Legislativa da Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2002.
FREITAS, Décio. A revolução dos malês – Insurreições escravas. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006.
LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1988.
MONTEIRO, Antônio. Notas sobre os negros malês de Bahia. Salvador: Ianamá, 1987.
MOURA, Clovis. Rebeliões da Senzala; quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi cooedição com a Fundação Maurício Grabois, 2014.
NINA RODRIGUES, Raymundo. Os africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008.
OLIVEIRA, Maria Inês C. de. Quem eram os ‘negros da Guiné’? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, nº 19-20. 1997.
REIS, João José; Rebelião Escrava no Brasil: a História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. Negros islâmicos no Brasil escravocrata. Revista USP, nº 91, setembro/novembro 2011.SALINAS, Samuel Sérgio. Islam: esse desconhecido – séculos VII-XIII. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.
SCHINDLER, Rex. O massacre dos malês. Salvador: R.B Agência de Notícias e Publicidade, 2006.
VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo – Do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos. São Paulo : Corrupio, 1987.
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Sayid Marcos Tenório é historiador e especialista em Relações Internacionais. É vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal) e autor do livro Palestina: do mito da terra prometida à terra da resistência (Anita Garibaldi/Ibraspal, 2019. 412 p). E-mail: [email protected] Twitter: @HajjSayid
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