Por Felipe Mascari.
O chacina no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), ocorrida no último sábado (20), é a crônica de uma tragédia anunciada, repetida em outros momentos e bairros fluminenses, resultado de uma “estrutura podre” de segurança pública no Rio de Janeiro. A afirmação é de Jacqueline Muniz, professora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (DSP/IAC/UFFF).
Integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ex-diretora da Secretaria de Segurança Pública do Rio em 1999, a especialista afirma que há um projeto político baseado no medo e na insegurança, e que também é lucrativo financeiramente e politicamente. Os tiroteios, segundo ela, tornaram-se peças publicitárias e as mortes ocorridas endossam argumentos moralistas para a continuidade dessas ações repressivas intermináveis e sem resultados práticos. Diante disso, chacinas como a no Salgueiro e também no Jacarezinho, em maio, continuarão se repetindo anualmente.
“Enquanto a política organizacional for do tiro, porrada e bomba, nada adiantará ensinar direitos humanos. A lambança do Jacarezinho continuará se replicando, porque o tiroteio é necessário para quem manda”, afirmou Jacquline Muniz à RBA.
Política da insegurança e medo
No Rio, ao contrário de uma política de segurança pública e bem-estar social, o plano é instaurar a insegurança pública para fortalecer um projeto de poder. A especialista relata que, há 35 anos, inaugurou-se uma guerra contra o crime e com uma elevada rentabilidade político-eleitoral. A partir disso, as operações policiais se tornaram peças publicitárias numa guerra comercial contra o tráfico.
“A insegurança é a síntese de todos os nossos medos. E quando instrumentalizamos esse medo, a primeira coisa que acontece é o encolhimento de direitos. Diante do medo, nós abrimos mãos de garantias individuais e coletivas, em favor do primeiro ‘fortão’ que nos prometer proteção, que pode ser um miliciano ou político. Esse libertador de hoje será o tirano de amanhã”, afirmoa Jacqueline.
Com o medo instaurado, a guerra contra o crime deixa de ser racional e bem feita, tornando-se apenas teatral. De acordo com Jacqueline, enquanto a lógica organizacional das polícias for do “tiro, porrada e bomba”, nada adiantará ensinar direitos humanos aos agentes. E essa política do tiroteio seguirá forte, pois é necessária para quem manda.
“A partir disso, cria-se o marketing político através do tiro, porrada e bomba. Eu, sentada no Leblon, assisto o espetáculo da guerra contra o crime. Por isso, o tiroteio é rentável. O medo é instrumentalizado através desse espetáculo. Esses tiroteios mantêm um sentimento de permanente risco, que podem ser ouvidos à distância. Ou seja, nós, reféns do medo, assinamos um cheque em branco para o ‘fortão’ ir lá resolver. Quando se fala “alguma coisa precisa ser feita”, leia-se “qualquer coisa” e de “qualquer maneira”. Por isso o medo encolhe direitos. Em nome da vida, as pessoas abrem mão de suas garantias. Portanto, o marketing do terror tem dado certo”, acrescenta a professora da UFF.
Salgueiro, chacina e o ‘day-after’
O caso no Complexo do Salgueiro se soma a outras 43 chacinas, somente neste ano, provocadas por operações policias, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Nove pessoas foram torturadas, assassinadas e tiveram seus corpos jogados num manguezal, no bairro das Palmeiras.
De acordo com dados do Instituto Fogo Cruzado, em 2021 já houve 59 chacinas, resultando em 246 mortos. Somente em São Gonçalo, a organização mapeou, desde julho de 2016, 48 chacinas, com 168 mortos. No Complexo do Salgueiro, foram 12 chacinas em pouco mais de cinco anos, e metade somente em 2021.
Um dos fatores que chamou a atenção de Jacqueline no caso foram os corpos atirados no mangue, segundo ela, como estratégia de prejudicar a perícia. “É uma maneira de ocultar os corpos e destruir evidências. No Rio, tem a prática de entregar corpos para jacarés e porcos. Ao mesmo tempo, o mangue tem vários microrganismos, onde vários bichos vão ficar comendo o corpo, exposto à decomposição acelerada. Portanto, você descaracteriza a cena do crime, prejudica a perícia e coloca o morto em situação de humilhação.”
Além da violação de direitos dos mortos, a especialista afirma que as operações policias também ferem os direitos dos cidadãos da comunidade, que têm suas vidas afetadas diretamente. “Se você tem uma operação a cada sete dias, isso quer dizer que a cada semana, em três dias você não pode sair para trabalhar, nem voltar pra casa. No Palmeiras, onde encontraram os corpos, são cinco quilômetros a pé até a rodoviária. Isso suspende transporte e atrapalha a mobilidade das pessoas.”
“Se você tem toda semana um tiro, porrada e bomba, você não tem vida. Você acha que uma operação que para a vida de 66 mil pessoas produz segurança? Não. Você precisa criar uma operação cirúrgica que não inviabiliza a vida dos cidadãos. É uma repressão burra”, criticou ela.
Protocolos policiais não cumpridos
A ex-diretora da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro é enfática em lembrar que a Polícia Civil, a Polícia Militar e até a secretaria estadual responsável possuem protocolos que definem as diretrizes das operações.
No protocolo das polícias, há 12 variáveis que as ações precisam seguir. Entre os itens, estão: a legalidade da ação; o conhecimento do terreno; superioridade numérica; conhecimento das técnicas policias; capacidade de comando; necessidade de apoio.
O problema, segundo a especialista, é que as diretrizes não são seguidas e, ao mesmo tempo, as corporações não prestam conta de como exercem esses compromissos. “As chacinas do Jacarezinho e do Salgueiro não obedeceram as ideias práticas, logísticas e estratégicas. Ou seja, não obedeceram a própria doutrina policial”, criticou.
“Operação policial pode ser um churrasco onde você chama qualquer pessoal. É feito a partir de perfil, capacidade e competência, principalmente para aplicar os direitos humanos. Isso tudo é para criar uma operação, então quero que prestem contas de como foi o planejamento e se o resultado da operação se explica. É preciso colocar luz sobre isso, porque a melhor maneira de controlar a Polícia é através da transparência e controle social. Quando as operações são programadas, a polícia tem a prerrogativa do “agir”. Ela tem que montar oito variáveis táticas para planejar, o que dá superioridade de meios e métodos para reduzir a letalidade. Portanto, uma operação programada terminar em matança é porque houve essa intenção”, disse.
Autonomia e falsos problemas
Outro problema levantado por Jacqueline Muniz e que se reflete nas chacinas do Rio de Janeiro, como ocorreu no Salgueiro, é a autonomia policial e corporativismo nas investigações. De acordo com ela, uma polícia sem comando algema o governante eleito, silencia a justiça e acua a sociedade.
“Se não controlar a espada, a faca vai definir a intensidade do próprio corte. A arma está desenhando a mão, e a mão desenha o pensamento. A polícia age a partir de seus interesses políticos e corporativistas, onde todos fecham os olhos, porque é importante a polícia no pé dos outros”, afirma, criticando o desrespeito à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635. “Quando construímos a ADPF 635, nós apertamos os únicos parafusos que precisam ser apertados: lembrar a polícia que ela não é um bando armado e é administrada pelo Estado. E isso tem sido sabotado e violado, com os olhos fechados do Ministério Público, que é cúmplice desses resultados”, acrescentou.
A antropóloga critica também as falsas justificativas dadas para os erros policiais. Ela lembra que sempre após ocorrer uma tragédia, é repetido que há falta de preparo, inteligência e tecnologia da polícia do Rio de Janeiro.
“É um discurso de meia verdade. A Polícia é um preparo continuado, ruim ou bom, ainda é um preparo. Quando se entra nesse tema, transforma o problema em algo individual. Enquanto, na verdade, ele pode ser preparado pra matar. Porém, quando apresentam esse tripé argumentativo, é uma maneira de desresponsabilizar os políticos”, argumentou.
Segundo ela, o problema não é inteligência e tecnologia. “Vale lembrar que Amarildo morreu numa UPP que tinha câmera de vídeo. A população pobre, preta e periférica está morrendo. Então, quando ela ouve isso, pensa: preparo? O preparo é pra me matar. Inteligência? Ele sabe sempre onde eu estou para me dar porrada. Tecnologia? Eles desligam a câmera pra me dar porrada.”
Crime organizado e o Estado
No Rio de Janeiro, governa-se com o crime e não contra ele, segundo a entrevistada. Na leitura dela, o Estado tornou-se uma agência reguladora do crime, distribuindo concessões criminais nos territórios populares. Ela classifica o caso como uma “economia política e itinerante”.
Ela lembra que parte do dinheiro que financia campanhas eleitorais vem com a compra e venda de imóveis, que começou com as rachadinhas parlamentares. Além da venda paralela de luz, gás, internet e tevê a cabo, e do transporte alternativo.
“O dinheiro do crime é o principal recurso para investimento em carreiras eleitorais, tornando-se lavanderias. E é um dinheiro que vem da exploração da população, por isso a precariedade dos serviços básicos. Isso tudo facilita a exploração da população. Ou seja, são governos autônomos e criminais. Em muitas operações, quem está na linha de frente é a milícia, pois vê a oportunidade de ocupação territorial. O Salgueiro é um exemplo disso”, afirmou.
A partir disso tudo, o caso do Salgueiro era uma crônica da tragédia anunciada. “As pessoas ficam assustadas, mas a estrutura é a mesma há bastante tempo, e a última chacina é só uma reestreia de algo que já ocorreu. O resto é papel de bala com recheio podre”, concluiu.