Por Jotabê Medeiros.
São Paulo (SP) – Daniel Munduruku começou a publicar livros há 33 anos, e já tem 56 obras editadas – o que dá uma média espantosa de quase dois livros por ano. Ao todo, calcula que seus livros já venderam cerca de 5 milhões de cópias, o que o coloca num exclusivíssimo círculo de autores brasileiros que não comporta atualmente mais do que 10 “associados”. E é um clube espremido por um perverso funil de mercado e um lilliputiano universo de leitores. Seu primeiro livro foi Histórias de Índio (Companhia das Letrinhas, 1997), que já tem mais de 25 edições e aproximadamente 100 mil cópias vendidas.
Do ponto de vista dos números, Daniel Munduruku seria hoje a maior “barbada” caso alguém (apoiado somente em estatísticas) quisesse apostar em sua eleição para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). Não há, do ponto de vista do êxito editorial, muita gente capaz de rivalizar com ele no horizonte.
Mas, é notório, a ABL não segue critérios bem definidos de mérito literário ou pertinência social – nesta quinta-feira, 18 de novembro, quando a Academia deve anunciar um novo imortal para habitar seu bureau, Munduruku está no páreo, mas seus concorrentes têm provavelmente o perfil histórico mais aceito na Academia: homens brancos, ricos, de livre trânsito em altas esferas sociais e com restrito alcance literário.
Mas sempre se pode sonhar alto. As recentes eleições do músico baiano Gilberto Gil, aos 79 anos, e da atriz carioca Fernanda Montenegro, aos 92 anos, dois totens da cultura brasileira, mostram que a ABL começa a se abrir para um princípio de excelência e representatividade, o que permite que se sonhe com a entrada de um escritor originário em seus salões.
Na semana passada, começou a circular um manifesto de mais de 100 autores nacionais em apoio à candidatura de Daniel, que saudou a manifestação como um belo sintoma de reconhecimento. Entre os signatários, estão Chico Buarque, Luiz Ruffato, Pedro Bandeira, Alice Ruiz, Lygia Bojunga, Ruy Castro, Marcelo Rubens Paiva. “Num momento de destruição intencional da cultura brasileira em todas as suas formas de manifestação, é importante poder contar com instituições da sociedade civil que nos sirvam de luz e resistência”, diz o manifesto.
“As primeiras assinaturas são todas de autores ligados à literatura chamada adulta. Estão apontando a qualidade literária do meu trabalho. É um reconhecimento de que a literatura de qualidade não se pode desprezar”, avaliou Munduruku, em entrevista à Amazônia Real, que na noite de terça-feira se tornou ainda um dos 5 finalistas do Prêmio Jabuti de Literatura na categoria Infanto-Juvenil com o livro Redondeza, da Cirandeira Livros, em parceria com Roberta Asse (Daniel já ganhou dois prêmios Jabuti em 2017). A categoria infanto-juvenil é o estrato no qual toda sua obra é enquadrada, mas o rótulo não o satisfaz.
“Eu não escrevo para crianças. Costumo dizer que escrevo para as infâncias, nas quais todos estamos imersos até o final da vida”, conceitua. “Os indígenas não fazemos muito essa distinção entre jovens e adultos. Isso é uma coisa do mercado editorial, é um formato de mercado”, afirma o escritor e educador. A sua atividade literária se confunde com a de professor – mestre e doutor pela Universidade de São Paulo, Munduruku ensina desde os 22 anos e conta que foi no esforço de educar que passou a escrever livros, porque via nas obras com as quais tinha de lidar nas aulas uma predominância de um universo simbólico que não lhe dizia respeito, no qual não se reconhecia.
Jovens escritores indígenas
“Os autores indígenas já trazem as histórias consigo. Então, a minha tarefa sempre foi a de tentar aproximar a sociedade brasileira da compreensão do que somos, do que nos constitui”. Nessa seara, Munduruku vê como destaques da nova literatura nacional uma legião de jovens escritores indígenas da atualidade, apontando os talentos de Cristino Wapichana, Eliane Potiguara, Tiago Hakiy, Graça Graúna, Yaguarê Yamã, Julie Dorrico e Jaider Esbell (morto precocemente há alguns dias).
Daniel Munduruku discorda da afirmação de que, por ter sido um dos primeiros autores indígenas a ganhar projeção escrevendo para o mercado nacional de forma ampla e massiva, tenha aberto uma estrada para todos esses novos autores. “A escrita para mim foi um aprendizado. Se foi para mim, pode ser para os outros. A literatura indígena é algo relativamente novo, pouco mais de duas décadas. Mas tudo que eu escrevo, os indígenas já conhecem, o que muda é a abordagem, o jeito de contar as histórias, o estilo”, diz.
Caso seja eleito, Daniel Munduruku será o primeiro cidadão indígena a integrar a ABL em seus 124 anos de existência. Além disso, um representante dos 15 mil remanescentes do povo originário Munduruku, etnia guerreira que habitou a confluência entre o que hoje é o Pará, a Amazônia e o Mato Grosso e foi contatada pela primeira vez pelo colonizador no século 18.
Carreira política
Nascido Daniel Monteiro Costa na aldeia Munduruku de Jacareacanga, no Pará (atualmente acossada por garimpeiros ilegais), ele foi educado por salesianos, uma congregação católica missionária. Por intermédio deles, o escritor intensificou os estudos, mudando-se para as metrópoles para buscar aprimoramento. Hoje, vive em Lorena, no interior de São Paulo, onde se casou e constituiu família.
“Primeiro, devo dizer que a candidatura à ABL foi uma iniciativa de um grupo, não tive ingerência nisso”, diz Munduruku. Não que ele rejeite a ideia. “Pela obra que já tenho, e pelo fato de que sou indígena, considero uma iniciativa importante”, ele considera. “Escrevo para crianças e jovens exatamente para tentar diminuir essa visão estereotipada que se tem dos indígenas.”
O outro plano de voo de Daniel Munduruku para as próximas estações não será menos ambicioso e controverso: ele deve se lançar candidato a deputado federal nas eleições de 2022. Deverá sair pelo PDT. “Me coloquei isso como uma missão”, afirmou. “O que me motivou a sair candidato foi constatar que todo o trabalho que empreendi até agora, boa parte dele, emperrou por causa das políticas públicas”, explica. “Quero ajudar a visibilizar melhor as culturas indígenas”.
O escritor crê que a representatividade dos in´dígenas na política pode aumentar, e se queixa de todos os últimos governos do País, que podiam ter acelerado esse movimento. “Já deveríamos ter tido um presidente indígena na Funai. Por que não tivemos?”, questiona e deixa a incômoda pergunta no ar.