São Paulo – A grande constatação sobre toda a crise sanitária que ocorreu no Brasil durante a pandemia sob Jair Bolsonaro é que ela foi “explicita e especificamente estimulada pelo governo federal”. “O grande mérito da CPI da Covid até o momento foi mostrar que isso foi deliberado. É isso que deixa todos nós horrorizados. Deliberado pelo próprio governo federal. Ou planejou em determinado momento o desastre no Amazonas (em janeiro de 2021), e a imunidade de rebanho. Havia uma teoria e uma logística por trás disso tudo.” A opinião é da presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Rosana Onocko Campos. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), tem insistido que a população amazonense foi usada como cobaia durante a pandemia.
Esta semana, há muita expectativa no meio médico e entre profissionais de saúde pelo depoimento à CPI da Covid da advogada Bruna Morato, nesta terça-feira (28). Ela representa o grupo de ex-médicos da Prevent Senior que denunciaram supostas práticas da operadora de saúde classificadas como “estarrecedoras” pelos senadores.
“Não se trata de uma coisa banal. Se as coisas aventadas na CPI forem verdadeiras, estamos falando quase de crime de lesa-humanidade. Estamos falando de pesquisas não autorizadas com seres humanos. Acho que depois de (Josef) Mengele não se tinha outra situação como essa”, diz Rosana, em referência ao médico nazista responsável por realizar experimentos em humanos na Segunda Guerra.
Corrupção em plena pandemia
Outro fato inclassificável, para Rosana, é a corrupção ou a tentativa de corrupção, inclusive dentro do governo Bolsonaro, em plena pandemia. Membro do Movimento Frente Pela Vida, a Abrasco enviou no início do mês uma carta à CPI da Covid expressando sua confiança “no rigor factual e na consistência jurídica na elaboração do relatório final” da comissão. No manifesto, a frente pede “punição do governo federal” (leia a íntegra aqui).
Um dos argumentos repetidos na comissão por senadores governistas e depoentes negacionistas, para defender suas práticas, é a chamada autonomia médica. Assim como a liberdade de expressão, esse é um conceito deturpado pelo bolsonarismo. “O médico tem autonomia, quando fecha a porta do consultório e prescreve. Mas é muito difícil que alguém te obrigue a prescrever alguma coisa”, diz Rosana, médica sanitarista especializada em saúde pública.
Da mesma maneira, apoiadores do governo Bolsonaro deturpam em meio à pandemia o que chamam de “liberdade de expressão” para defender ataques à democracia, instituições e pessoas, até com ameaça de morte.
Usar pessoas como cobaias sem passar pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), sem as próprias pessoas saberem que estão sendo cobaias de experimentos, inclusive o uso de medicamentos ineficazes, está muito longe da chamada autonomia. “É criminoso. Insisto, se isso se comprovar, não tem como negligenciar crimes”, diz a presidente da Abrasco.
“Tratamento paliativo”
Para ela, também é “estarrecedor”, caso comprovado, o chamado “tratamento paliativo”. O representante da operadora, Pedro Benedito Batista Júnior, admitiu à CPI que, depois de 14 dias de internação ou 21 de terapia intensiva, as orientações nas unidades da operadora eram para mudar o diagnóstico de covid para outra doença. Os pacientes eram então transferidos para enfermarias ou quartos para esse “tratamento paliativo”, e a CID (classificação internacional de doença) seria alterada.
“Trata-se de uma coisa premeditada, manipulação de estatísticas públicas, alteração de atestado de óbito, utilização de medicação não comprovada, como aplicação retal de ozônio. Enfim, coisas inenarráveis”, diz Rosana. Na quarta-feira (29), a CPI ouve o empresário bolsonarista Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan. Ele foi um dos mais atuantes defensores do chamado tratamento precoce.