Não tem coisa pior do que dormir com fome, relata moradora da periferia de Belém (PA)

Na Vila da Barca, além de serem privadas de água, esgoto e energia elétrica, as pessoas passam fome na pandemia

Dona Cleonice diz que, muitas vezes, prefere comprar o gás de cozinha do que comida. Se conseguir uma farinha, ela faz um mingau para enganar a fome – Foto: Catarina Barbosa/Brasil de Fato

Por Catarina Barbosa.

A vida do povo brasileiro, sem dúvida, mudou para pior. Com a crise sanitária do novo coronavírus, as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social foram ainda mais afetadas. Na região Norte do país, 67% viveram a dor de saber se teriam ou não comida no prato. Em uma das maiores favelas de palafitas do Brasil, a Vila da Barca, localizada próximo a um dos bairros mais caros da cidades, diversas famílias vivem essa dor e também a privação de direitos pela falta de água, esgoto e energia elétrica.

Palafitas são habitações sustentadas por estacas às margens de um rio ou área alagadiça. A desempregada Mariele Souza do Socorro é uma das moradoras do espaço. Na casa de apenas três cômodos, ela mora com seis pessoas e diz que além dos problemas já citados, os tempos têm sido ainda mais difíceis com o aumento do preço dos alimentos, até a sopa ela não tem mais condições de fazer.

“Se tem farinha, a gente faz um mingau, já chegou a ter comida no almoço, mas no jantar não, porque a sopa que comíamos antigamente também não dá para a fazer. Já pensou pagar R$ 11 no quilo do osso? É isso que estamos pagando. O feijão, a gente só joga no fogo com tempero, porque não tem condições de jogar um charque dentro ou uma carne para dar um gosto é só o feijão temperado”.

Além de integrar a estatística de pessoas que sofrem com a insegurança alimentar, ela integra também o desalentados, que são as pessoas que desistiram de procurar trabalho: 5,952 milhões em 2021, com um acréscimo de 26,8%, ou seja, 1,259 milhão pessoas entre de 2020 para 2021, segundo dados do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, divulgada em abril deste ano.

Entre as mulheres, o desemprego aumentou de 13,9% para 16,8% em 2021. Para Mariele Souza, que trabalhava como doméstica e costureira além da dificuldade de comprar alimentos, procurar emprego e não encontrar é muito difícil.

“É uma sensação de tristeza. É muito triste a gente abrir a geladeira e não ter nada e mais triste ainda quando a gente sai a procura de alguma atividade, de algum emprego, de algum bico e não encontra. A gente volta para casa ainda mais triste olhando para os netos, olhando para os filhos, olhando para a mãe, para família e para os amigos e saber que está todo mundo está na mesma situação”.

O racionamento de alimentos

Para driblar o fato de não ter comida e emprego, Mariele diz que quando consegue algum dinheiro divide o pouco que tem em pequenas refeições, tudo para que seja possível dar ao menos uma colher de comida para cada membro da casa.

“Uma, duas colheres para cada um para não deixar a barriga vazia, mas que dê para encher mesmo ou dizer: – Eu jantei, não. É só um pouquinho para cada, só para não dizer que não comeu”.

O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA – a inflação oficial do país) subiu de 7,11% para 7,27% em 2021, sendo a 21ª elevação consecutiva na projeção e o cenário para o futuro não melhora: para 2022, a estimativa de inflação é de 3,95%. Para 2023 e 2024, as previsões são de 3,25% e 3%, respectivamente.

Saindo das porcentagens do mercado e sentindo na prática o que isso significa, Dona Maria Madalena traduz o aumento da inflação no Brasil.

“Antigamente você ia com R$100 na feira, trazia um monte de coisa. Agora é troco, tu já pensastes a gente dar R$30 no quilo de carne em uma casa onde tem muitas pessoas, só dá para provar”, conta ela.

Gás ou comida?

A partir desta quarta-feira (1), o gás de cozinha já está custando 7% mais caro para os consumidores brasileiros devido a um ajuste feito pelas distribuidoras do produto. Em Belém do Pará, o preço do gás custa, em média, R$ 116,00, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese-Julho-2021).

Na casa da aposentada Cleonice da Silva, de 80 anos, a precariedade chegou ao ponto de se ter que escolher entre comprar gás e comprar comida.

“Tem dias em que dizem assim: – Só tem o do gás. Eu respondo: – Então, vamos comprar o gás, porque a gente compra o gás, depois aparece uma farinha, a gente faz um mingau e toma, porque se arrumar uma farinha e tiver o gás, nós não temos nada”.

A senhora que é cega, vive no espaço com o marido, dois filhos e sete animais de estimação que abriga no local. Questionada se passou fome durante a pandemia, Dona Cleonice conta que, infelizmente, já precisou dormir para enganar a fome.

“Já pensou a gente querer comer e não ter? Quando tem, tem aquele pouquinho para não dormir com fome. Quando não tem a gente vai para a cama e dorme. Não tem coisa mais ruim no mundo do que dormir com fome”.

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