Por Márcia Bechara.
Quando a revolução eclodiu na praça Tahrir, no Egito, ecoando o sucesso da Primavera Árabe na Tunísia, houve um momento em que a derrubada de Hosni Mubarak parecia anunciar um horizonte mais límpido, igualitário e menos corrupto, especialmente para as jovens gerações de uma das civilizações mais antigas do mundo. O Cairo foi cenário da explosão dessa esperança que durou pouco na sociedade egípcia, com a chegada ao poder da Irmandade Muçulmana e o recrudescimento causado pelo fanatismo religioso e o ultranacionalismo, como posteriormente aconteceria em outras regiões do globo, disfarçados de outros credos, nomes e bandeiras.
Nessa escalada feroz e delirante em direção ao conservadorismo, ao nacionalismo e ao monopólio do patriarcado, um grupo de pessoas foi especialmente prejudicado no Egito: as mulheres. Em 25 de janeiro de 2013, dezenas delas foram estupradas, assediadas, sexualmente atacadas e depois humilhadas e agredidas nos hospitais e dentro de suas próprias famílias. “Acho que eles queriam calar os manifestantes e decidiram atacar as mulheres. Acharam que atacar as mulheres seria o suficiente. Não foi. Saímos de volta às ruas”, resume a cineasta Samaher Alqadi, que documentou em “As I Want” não apenas as cenas de violência, como a reação do levante feminista no Cairo, tudo isso costurado pela narrativa construída em forma de diálogo com sua mãe, em Ramallah, na Palestina.
Samaher Alqadi nos catapulta e nos provoca do foro íntimo à praça pública, como numa emulação do caminho da libertação feminina e feminista – do doméstico ao desconhecido, “do privado ao público”, como diz a historiadora francesa Michelle Perrot. E a diretora não se intimida ao usar o dispositivo reverso para, no meio de cenas inéditas e bastidores da revolução das mulheres no Cairo, trazer relatos de sua história pessoal, marcada pela violência e pela ruptura. Como na noite em que sua melhor amiga foi estuprada por um bando de homens no meio de uma plateia masculina que não levantou um dedo para ajudá-la. Alqadi filma a amiga no hospital.
A narrativa, embora corajosa, pode parecer ingênua para as moças “ocidentais” que não precisam disputar cada centímetro da sua liberdade na rua usando facas de cozinha, ou temendo que “um dia, sem perceber”, comecem a usar os hijabs [véus islâmicos]. “Há coisas proibidas de serem ditas. Coisas que não são permitidas de serem abordadas. E é sobre essas coisas que eu tenho vontade de conversar”, diz a diretora. “Por que mulheres precisam se cobrir? Por que as mulheres precisam se envergonhar delas mesmas? Por que as mulheres andam na rua com a sensação de estarem numa zona de guerra?”, diz.
O rosto feminino escondido durante a revolução
“As mulheres, no Egito, correspondem a 60% dos eleitores. Como querem que votemos, se não podemos nos candidatar?”, questiona uma das militantes feministas egípcias do documentário de Alqadi, de 42 anos, hoje radicada na França. “O que mais me agradou ao fazer esse filme foi constatar a emergência dessas novas vozes [de mulheres], vindas de todas as classes da sociedade [egípcia]. Em países árabes – e até na Europa, eu acho -, não é fácil falar sobre o momento em que você foi atacada. Foi muito forte para mim o testemunho delas – meninas falando na TV era uma coisa nova, nunca antes mulheres tinham falado sobre estupro, sobre serem estupradas ou sexualmente assediadas e atacadas no Egito”, diz.
“A situação hoje no Egito não é melhor, mas diferente. As mulheres agora conhecem sua força, seus direitos, e não estão mais envergonhadas em falar. Posso dizer que esse enorme movimento chamado #MeToo começou no Egito, anos antes de explodir nos Estados Unidos”, contextualiza. “As mulheres estiveram e estão na linha de frente da luta pelos Direitos Humanos, embora sua grande participação tenha sido menosprezada durante a revolução no Egito”, testemunha.
As cenas do documentário de Samaher Alqafi mostram a força das manifestações de mulheres no Cairo, de todas as idades, crentes ou não, de tecidos sociais diferentes, mas carregando, punho ereto, enormes facões de cozinha, para “cortar as mãos dos agressores”, em plena praça Tahrir. O filme traz também depoimento emocionados recolhidos logo após os ataques de 2013, assim como as humilhações sofridas pelas mulheres agredidas nos hospitais do Cairo, onde milícias religiosas foram criadas para verificar a “virgindade” das mulheres atacadas. Uma humilhação a mais para quem vive em pleno século 21 sob a ameaça da “desonra masculina”.
No meio do documentário, o slogan repetido na TV egípcia – “O Corão é nossa Constituição” – não deixa dúvidas sobre as semelhanças ideológicas de setores da Irmandade Muçulmana com a estranha e delirante corrente fundamentalista evangélica que, no Brasil prega que “a Bíblia é a nossa Constituição” em todas as redes sociais. “Penso que a religião vem sendo instrumentalizada para dominar as sociedades. Sei que as pessoas precisam de religião, é como uma safe zone [região segura] para elas. É claro que a religião é pura ‘Pátria Power’, feita por homens, para homens, para tornar tudo melhor e mais simples para eles”, analisa.
“Foi interessante porque o Egito é um país liberal, apesar da religião. Eles não são extremistas. Eles adoram viver, dançar, festejar. Quando a Irmandade Muçulmana tomou o poder, eles quiseram mudar tudo, mas, no fim do dia, nunca chegaram a realmente controlar a sociedade egípcia, apesar do recrudescimento. Os fundamentalistas religiosos operam em todo o mundo neste momento. É por isso que escrevi os versos do Corão no meu ventre quando estava grávida no início do filme, para lembrá-los de onde vieram”, diz. “Eles não seguem a religião deles. A religião islâmica diz que, no fim do mundo, se houver um, os homens serão chamados pelo nome de suas mães, porque as mulheres são a origem de tudo”, afirma.
Alqadi, que sonha em conhecer “o Brasil e a América Latina”, ainda não teve autorização para mostrar seu filme no Egito, um de seus grandes sonhos. A diretora não possui o status de refugiada política na França, onde mora com o marido e os filhos. “Depois do que houve no Egito, ficou muito difícil até caminhar nas ruas, ou mesmo filmar. Tudo ficou muito diferente, a vida não era fácil. Vim editar meu filme na França e decidi educar meus filhos aqui, eu queria que eles tivessem uma experiência diferente, retomar um pouco o contato com a vida normal”, afirma a diretora, que recebeu uma residência artística para trabalhar no país.
“Fiquei aliviada ao fazer esse filme”, responde Alqadi quando perguntada se o documentário a transformou de alguma maneira. “Não foi fácil fazer esse filme, foi um processo de cura. Fiquei aliviada de dar projeção àquelas vozes, testemunhei como as mulheres [egípcias] lutaram pelos seus direitos. Fiquei aliviada também de ter escrito essa carta para minha mãe, de ter podido dizer no filme coisas que eu não pude falar quando ela estava viva”, conclui a cineasta palestina, que conversou com a RFI em um café em Berlim, durante a programação da edição de verão da Berlinale 2021. O festival termina no dia 20 de junho, quando será projetado o longa brasileiro “A Última Floresta”, de Luiz Bolognesi, que concorre ao grande prêmio do público na Mostra Panorama.