Qual a diferença entre um vírus e um protozoário? A farsa dos doutores sem doutorado no Brasil

Ao defenderem medicamentos sem comprovação científica, doutores sem doutorado alinham-se a um sujeito que ignora o sofrimento dos brasileiros

Na CPI, Nise Yamaguchi se viu sem saber o que responder sobre a diferença entre um vírus e um protozoário. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Por Jaqueline Brizola.

Em meio à pior pandemia do último século, que causa estragos há mais de um ano e já levou a óbito quase meio milhão de pessoas no país, a Comissão Parlamentar de Inquérito, instituída no Senado Federal para investigar os supostos crimes praticados pelo governo brasileiro na condução da pandemia, realiza um trabalho de esclarecimento inédito na história do Brasil. Para além de mostrar ao mundo que o presidente Jair Bolsonaro, sem partido, foi negligente ou criminoso e que não realizou aquilo que se espera de alguém que se encontra em sua posição, também podemos presenciar, em tempo real, ao vivo e a cores, a farsa dos doutores(as) sem doutorado no Brasil, sujeitos que se utilizam de um título que não possuem para angariar prestígio e poder frente a uma massa de brasileiros(as) excluídas da educação formal.

Primeiro foi Mayara Pinheiro, conhecida internacionalmente como capitã cloroquina, depois a médica Nise Yamaguchi, duas mulheres formadas em medicina, testemunhando em uma CPI, chamadas de doutoras reiteradas vezes pelos senadores que as interrogavam. Yamaguchi, que admitiu ter prestado consultoria científica ao governo, sem vínculo empregatício, se viu, em vários momentos, sem saber o que responder, principalmente quando o senador Otto Alencar lhe perguntou sobre a diferença entre um vírus e um protozoário. Ora, era de se esperar que uma doutora soubesse responder tal questão, não é mesmo? Mas, antes de estabelecermos conclusões precipitadas, cabe lembrarmos que muitos doutores, de verdade, poderiam não responder com precisão tal pergunta, porque, ao realizar um doutorado, o indivíduo pode se especializar nas mais diferentes áreas do conhecimento; Engenharia da Computação, Economia, Física Nuclear, História da Arte, para citar alguns exemplos, de modo que um doutor ou doutora, por ter o título, não estaria obrigado(a) a conhecer as categorias de seres vivos microscópicos que causam adoecimento em humanos.

Já uma médica, diplomada, deveria ser mais assertiva quanto à diferença entre um vírus e um protozoário, isto porque espera-se que saiba receitar remédios que auxiliem o organismo a combater um ou outro no momento em que causam maiores danos às células, mas, sejamos justos: para distinguir um vírus de um protozoário, ninguém precisa fazer faculdade de medicina, nem mesmo defender um doutorado, basta abrir um bom livro de biologia, ou até procurar no Google, há respostas bem interessantes na internet. Contudo, o que chocou os brasileiros, ou pelo menos uma parte destes, foi uma suposta doutora, cientista, entusiasta de um remédio antiparasitário como tratamento precoce de um vírus, não responder com clareza as perguntas básicas que lhes foram feitas por outro médico, o senador Otto Alencar. Seria a médica uma falsa cientista?

Neste caso, é preciso ressaltar que todo médico ou médica passa por alguns rituais importantes antes de poder vestir um jaleco branco e receitar antibióticos, são anos na faculdade, mais a residência, é um caminho bastante longo. Contudo, um médico não é um cientista, é um sujeito formado em medicina que estudou as teorias científicas e as aplica ou, pelo menos, deveria aplicar. Para tornar-se um cientista, o médico deve continuar os estudos após a graduação, fazer mestrado e doutorado, formular um projeto, ser aprovado em programa de pós-graduação, estabelecer uma hipótese de pesquisa, prová-la, apresentar uma tese, passar por uma banca de doutores. Antes disso, deverá ser proficiente em duas línguas estrangeiras, senão três, cursar as disciplinas da pós, escrever artigos e publicar os resultados em revistas científicas, entre outras demandas.

Por que então é comum chamarmos de doutores(as) pessoas que nunca apresentaram uma tese de doutorado? Para responder essa pergunta devemos olhar para nosso passado colonial. Como tantas outras heranças deste período histórico, o costume de chamar advogado e médico de “doutor” vem do Brasil Colônia, pois entre os séculos 18 e 19, a maioria dos jovens ricos que estudavam fora do país cursavam medicina ou direito em universidades europeias. Na época, era comum a defesa de uma tese na conclusão do curso de medicina em universidades de prestígio, como Coimbra ou Montpellier, o que rendia ao aspirante o título de doutor, ou seja, alguém que poderia curar, mas também ensinar outros médicos; na prática, o médico recém-formado era também um professor. Não por acaso, encontramos na documentação do período referências aos professores da arte.

No caso dos estudos em direito, outro fato ocorrido nos primeiros anos do Brasil Império deve nos ajudar a entender o porquê de os advogados brasileiros serem chamados de doutores. Em 1827, Dom Pedro I, então Imperador, definiu que aqueles que concluíssem os cursos de ciências jurídicas ou sociais no Brasil poderiam ser considerados doutores. Assim, o uso do termo “doutor” como forma de tratamento para os indivíduos que haviam sido diplomados em direito, se tornou cada vez mais popular. Em uma sociedade altamente excludente e hierárquica, obter tal distinção colocava as pessoas no seu devido lugar, garantindo um poder simbólico a quem ostentava esse privilégio, afinal, quem iria discutir com um doutor, não é mesmo? Era uma forma de distanciar as pessoas, o inteligente do ignorante, legitimando a fala do primeiro e impondo determinadas “verdades” ao segundo.

No alvorecer do século 20, outro fenômeno concorreu para a continuidade dessa tradição de desigualdades. Após a universalização do ensino básico, o ensino superior continuou sendo um privilégio de poucos no Brasil, sendo que as carreiras de medicina e direito encontram-se, ainda hoje, entre as mais concorridas. Assim, o conhecimento que cada área produz ficou circunscrito a grupos reduzidos, elitizados, que se encontram distante do povo e de suas mazelas. Os doutores sem doutorado, desta maneira, utilizam o título para perpetuar tal distanciamento, que os mantém em uma posição privilegiada, concedendo-lhes autoridade e status. Sem dúvida, muitos dos que se auto intitulam “doutores” ou “doutoras” sabem que não o são, mas seguem à risca a cultura que lhes garante aquilo que Pierre Bourdieu, o famoso sociólogo francês, chamou de “distinção”. Este conceito, grosso modo, exemplifica as categorias de poder em uma determinada sociedade, suas formas de perpetuação por meio da hierarquia, da coerção e dos valores adquiridos, materiais ou simbólicos.

No caso da suposta doutora Nise Yamaguchi e de tantos outros profissionais brasileiros que carregam o título de doutor sem jamais ter passado por uma banca de doutorado, fica evidente a farsa, a mentira e a triste ignorância de uma elite atrasada, que não lê, não conhece os principais mandamentos do ordenamento científico de sua época e que, diante de uma pandemia, segue os ritos da arrogância e da mediocridade. Ao defenderem medicamentos sem comprovação científica, os doutores(as) sem doutorado, mostram a verdadeira face, alinhando-se a um sujeito torpe, que ignora o sofrimento de milhões de brasileiros, aos quais supostamente deveria oferecer soluções diante de uma crise sanitária e humanitária.

Sem dúvidas, há inúmeros profissionais da medicina que não compactuam com esse cenário caótico e vergonhoso e que desenvolvem um trabalho de excelência no Brasil. Esses, certamente, devem sentir vergonha das colegas que desconhecem questões tão básicas de sua prestigiada área de atuação, como a diferença entre um vírus e um protozoário, mas não se sentem constrangidas em serem chamadas de doutoras. Como se vê, a perpetuação das desigualdades, característica da história do Brasil, não se dá apenas pela manifestação da cultura e do intelecto, que, como quis Bourdieu, confere aos homens e mulheres um poder simbólico diferenciado. O caso das conselheiras científicas do atual governo brasileiro é emblemático neste sentido.

(*) Jaqueline Brizola é doutoranda em Estudos Históricos e sociais da Ciência, Medicina e Comunicação Científica na Universidade de Valência, Espanha, em cotutela com o Programa de Pós-graduação em História da UFRGS

 

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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