O sul do Brasil também é negro: conheça territórios produtores de cultura no passado e presente

Por Cecília Garcia.

O Parque da Redenção, um dos espaços públicos mais visitados no centro de Porto Alegre (RS), é um território de culturas negras. Em meados do século XIX, a várzea que agora dá lugar ao cartão postal era espaço de batuques, e o próprio nome do parque – ainda que depois tenham tentado mudá-lo para Parque Farroupilha, nome que não se popularizou – tem a ver com o fim do processo escravagista no Brasil.

Mas essa história não está sinalizada em nenhum lugar do espaço. Só é possível saber dela analisando documentos antigos ou trabalhos como o da geógrafa Daniele Vieira, que mapeia territórios negros na capital gaúcha.

Nos tempos presentes, o sarau Sopapo Poético é um território negro que continua a ocupar espaços centrais de Porto Alegre. O evento cultural marca a resistência de práticas de cultura e sociabilidades negras a despeito do deslocamento forçado imposto a essas populações para as bordas da cidade, e reúne uma geração nova de artistas, além de homenagear a velha guarda negra de movimentos artísticos e sociais.

A duradoura e nítida produção de conhecimento negra não é referenciada quando se conta a história do sul do Brasil e especificamente do Rio Grande do Sul. O historiador Jorge Euzébio Assumpção, autor do livro ‘Pelotas: Escravidão e Charqueada’, afirmou em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos“Não há nenhum símbolo que demonstre a presença negra no estado. Essa invisibilidade faz parte do racismo sulino, ou seja, ao negar e sonegar o papel dos negros no estado, estamos praticando um ato de racismo, porque se está, inclusive, escondendo as fontes históricas.”

A presença negra no Estado data de meados de 1700, que é quando começa o desterro de milhares de populações africanas para o país. A população negra já chegou a perfazer a maioria do Estado, segundo censo de 1814.

O que aconteceu no sul do Brasil com o fim da escravidão e a vinda da imigração europeia é metonímia do resto do país. Enquanto a população negra responsável pela cultura e economia do Estado foram por ele abandonados, imigrantes de origem italiana e alemã receberam terras, puderam manter seus sobrenomes e núcleos familiares. Na capital, bairros centrais com forte presença negra foram desapropriados e estas populações foram forçadas para as margens da cidade.

Mas a despeito de um de racismo estrutural permanente que continua a deslocar e sujeitar a população negra da capital gaúcha à todo tipo de vulnerabilidade, os territórios negros continuam existindo e produzindo conhecimento. É o que contam a geógrafa Daniele Vieira e o produtor cultural Vladimir Rodrigues para a plataforma Educação e Território.

O escritor Ale Santos produziu um conteúdo sobre a presença negra na Revolução Farroupilha, um dos movimentos históricos mais celebrados dentro da cultura gaúcha, e como o exército farroupilha aproveitou-se da participação de homens negros nos campos de batalha e depois os perseguiu.

Mapeamento dos territórios negros em Porto Alegre

Quando a geógrafa e educadora Daniele Vieira começou a dissertação de mestrado Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800 – 1970): Geografia histórica da presença negra no espaço urbano, o desejo era entender quais territórios existiam no centro da capital gaúcha antes do processo de urbanização e segregação social territorial.

Era uma “busca identitária minha como porto-alegrense negra”, como ela mesma nomeia, mas que se provou difícil. A memória destes territórios não estavam demarcadas fisicamente. Havia uma produção acadêmica, porém ela falava mais dos deslocamentos do que da produção de vida destas localidades.

Sua dissertação se converteu então em uma cartografia do centro da cidade reconhecendo territórios e saberes produzidos por populações negras que ali habitaram durante o século XIX. “Não queria apenas os mapas, queria falar do espaço a partir dos sujeitos, homens e mulheres, que os compunham, residiam e trabalhavam neles”, adiciona Daniele.

Foram quatro territórios centrais mapeados por Daniele: O areal da Baronesa, a Ilhota, a Colônia Africana e a Bacia de Mont’Serrat. A geógrafa e hoje doutoranda também investigou movimentos que aconteciam dentro deles e em seus arredores, como a Irmandade do Rosário, mercados como o Largo da Quitanda e espaços de batuque como o Candombe da Mãe Rita.

Daniele queria falar sobre os espaços a partir das narrativas produzidas por pessoas que neles habitaram. Na foto, quintandeiras fotografadas em 1901 / Crédito: Prati Fotos antigas

“Estes territórios negros são do final do século 19 e da primeira metade do século 20. As áreas que eles ocupavam mudaram completamente, e não são mais áreas de presença negra, são bairros super elitizados. Além do processo de segregação que a cidade sofre, existe a perda da memória e da importância desses espaços no contexto urbano. Isso se deve ao racismo estrutural e institucional, que varia de governo em governo, mas que nunca deu atenção ao processo de consolidação da memória desses espaços”, conta a geógrafa.

Um caso emblemático é o do território Colônia Africana. Correspondendo hoje ao Bairro Rio Branco, este território foi uma pulsão de vida negra entre 1880 e 1940. O território era notoriamente conhecido pela sua produção cultural, com festas, carnavais e batuques. Existia uma sociedade cultural chamada Orgulho da Colônia, que promovia encontros abertos ao público.

É possível acessar a tese de Daniele nos materiais do site Educação e Território. 

“Enquanto a imprensa e o estado relacionavam este espaços a criminalidade e a outros adjetivos pejorativos, homens e mulheres da Colônia Africana demarcavam com o nome o orgulho que sentiam de seu território. Eles faziam anúncios de seus bailes, fabulosamente ornamentados, com bandas de jazz compostas somente por músicos negros. A leitura que faço é que esta população já estava pautando como ser vista e narrada, para além das imagens externas racistas.”

Outra dimensão determinante do território da Colônia era seu caráter educativo. A professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, referência na educação brasileira, nasceu neste território e relatou a Daniele as práticas de sociabilidade que aconteciam para garantir o acesso à educação dos jovens e adolescentes.

“Compartilhar progresso era norma”, como relata a professora Petronilha. Ela conta que o primeiro vizinho de Colônia que conseguiu comprar um rádio, cada vez que chegava em casa do trabalho, o colocava na janela, para que toda a vizinhança pudesse ouvir as novelas e as notícias. Perceba a dimensão de coletividade que se produzia neste espaço!”, finaliza a geógrafa.

O carnaval sempre foi uma manifestação cultural negra que disputou espaços públicos de cidades no sul do Brasil. Na foto, seu Lelé, rei momo no carnaval do Areal da Baronesa / Foto: Santos

A continuidade dos territórios negros no sul do Brasil: o sarau Sopapo Poético

É de Porto Alegre que vem a primeira convocação de celebração do Dia da Consciência Negra (20 de novembro). Foram figuras como o escritor Oliveira Silveira e outros representantes do movimento negro que sugeriam a data da morte do quilombola Zumbi dos Palmares como representativa da contribuição afro-brasileira e africana na construção do Brasil.

O que Vladimir Rodrigues, um dos criadores do sarau Sopapo Poético, delimita, é que muitos desses atores que lutaram pelos direitos civis negros são também produtores de cultura negra, pouco reconhecida no estado sulino. Inspirados tanto na vanguarda artística como em sarais negros espalhados pelo Brasil, Vladimir e outros integrantes da Associação Negra de Cultura criaram o sarau Sopapo Poético.

“A cidade tinha muitos movimentos culturais, intelectuais, feitos por pessoas brancas. E nestes lugares nós, enquanto população negra, não nos sentíamos à vontade de chegar ali, ler nossa poesia em pé. Criamos o sarau em 2012 para nos sentir acolhidos e preencher essa lacuna referencial.”

O sarau é realizado na última terça-feira do mês no Centro de Referência do Negro Nilo Feijó (CRN) e, em 2020, aconteceu de forma digital. A ideia é que seja um espaço de trocas de artes e saberes intergeracionais, como complementa Daniele, frequentadora do sarau.

“Esse território é um espaço físico mas também simbólico, cheio de significados relacionados à presença negra. Tem crianças ali e pessoas de gerações além da minha. É um ambiente para encontrar, falar de poesia. Uma sensação de estar entre os seus, relaxado. Onde um um jovem de periferia vai com seu boné, sua calça larga, seu black, sem que estes símbolos sejam encarados de nenhuma forma como além de mais uma pessoa presente.”

Também estudioso da musicalidade gaúcha, Vladimir sugere que o sarau demarca uma cultura negra frequentemente esquecida quando se pensa nas tradições culturais gaúchas. Mesmo sendo terra de compositores como Lupicínio Rodrigues e lar de mais 130 quilombos e todos os seus modos de vida, o Estado do sul do Brasil se auto referencia a partir de uma estética de imigração europeia, celebrando símbolos como o homem branco do campo.

“O elemento negro foi excluído de determinados espaços culturais, mesmo que sua cultura ainda esteja ali. A música gaúcha, se você for ver os ritmos que são cultuados como ritmos tradicionais, quase todos têm origem negra ou indígena. Tocamos o vanerão, por exemplo, que é um ritmo bem característico nosso, do sul. É um ritmo que tem uma célula negra”, determina Vladimir.

Apesar da apropriação cultural, grupos musicais negros continuaram a celebrar os ritmos de origem afro-brasileira. O sopapo, que empresta o nome ao sarau, é um tambor de imensas proporções usado em práticas percussivas — desde ritos religiosos de candomblé até sambas-enredo para as escolas de samba do carnaval porto-alegrense.

 

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