Ação contra fabricantes do Agente Laranja atinge poder militar dos EUA

Para o ativista francês André Bouny, Exército dos Estados Unidos comprou herbicidas contaminados com dioxina altamente tóxica da Monsanto (atual Bayer) e da Dow, entre outros fabricantes

US Government/Domínio Público

Por Cida de Oliveira.

O julgamento dos responsáveis pelo crime do Agente Laranja na Guerra do Vietnã pode afetar o poder militar dos EUA. Com isso entra para a história o processo movido na França pela ativista franco-vietnamita Tran To Nga, de 78 anos, que pede a responsabilização da Bayer, dona da Monsanto, da Dow Química e de outros 12 fabricantes de agrotóxicos pelos efeitos nefastos. Mesmo após 50 anos do fim das pulverizações, é comum o nascimento de crianças com deformidades graves no Vietnã.

“Há nos Estados Unidos processos por indenizações, movidos contra o Roundup, da Bayer, de uso civil. Já a ação movida no tribunal da França é contra um veneno de uso militar, o que muda tudo. O que temos aqui é um julgamento histórico, porque atinge também a esfera do poder militar dos Estados Unidos”, disse o ativista francês André Bouny em entrevista por e-mail à RBA.

Fundador e líder do Comitê Internacional de Apoio às Vítimas Vietnamitas do Agente Laranja, autor de Agente LaranjaApocalypse VietnãCem anos no VietnãVietnã, viagens pós-guerra e de Enquanto se aguarda o veredicto do julgamento do agente laranja na França, entre outros, Bouny acompanha bem de perto o assunto.

Conforme explicou, a ativista e ex-jornalista Tran To Nga não quer dinheiro. Em vez disso, reivindica à Justiça que a reconheça como uma das vítimas do Agente Laranja. Tanto que sustenta – e apresenta laudos comprobatórios – o acometimento por diversas doenças reconhecidamente associadas ao chamado Agente Laranja.

Tran To Nga, à esquerda, em ato contra os fabricantes do agente laranja. (Foto: Reproução)
Arma química dos EUA

A arma química utilizada pelo Exército dos Estados Unidos de 1962 até o final da guerra, em 1973, era composta de dois herbicidas. O conhecido 2,4-D, atualmente o segundo mais vendido no Brasil, que só perde para o glifosato. E o 2,4,5-T, cuja reação entre duas de suas moléculas, por negligencia no processo produtivo, produz o 2,3,7,8-tetraclorodibenzo-p-dioxina. Conhecido pela sigla TCDD, é o mais tóxico entre todos os compostos no grupo das dioxinas.

Segundo destacou Bouny, foi a ganância por lucros que acelerou a produção do Agente Laranja pela Monsanto, Dow Química e outras fabricantes menores.

Considerado o pior veneno existente, a dioxina TCDD possui grande atividade biológica. É classificada como reconhecidamente cancerígena para humanos pela Agência Internacional de Pesquisas do Câncer (IARC, da sigla em inglês International Agency for Research on Cancer) e pelo Departamento de Saúde dos Estados Unidos.

Além disso, é um agente teratogênico, capaz de produzir alterações embrionárias e anomalias no desenvolvimento fetal. E também mutagênico, podendo danificar o DNA das células, o que não é reparado no momento da replicação celular e é transmitido para as próximas gerações. Para complicar, é de difícil degradação ambiental. Pode persistir no ambiente por mais de cem anos.

É por isso que todos os anos se repetem milhares de casos de doenças e anomalias relacionadas a esses venenos. Os “recém-nascidos vêm ao mundo em formas que escapam à morfologia genérica da espécie humana”, segundo Bouny. O ativista afirma que, mesmo depois de décadas do fim das pulverizações, a dioxina TCDD continua a fazer vítimas.

“Bebês nascem com espinha bífida, às vezes sem cérebro, sem olhos, ou com embriões de braços e pernas, como minúsculas barbatanas. Estes últimos são chamados de ‘crianças focomele’. A lista é cruel e interminável. Nas cidades, geralmente são registradas crianças com deformidades. Nas províncias, às vezes estão escondidos.”

Hospital Tu Du Hospital, em Ho Chi Minh. Dezembro/2004 (Foto: Alexis DUCLOS)
Deficiências graves

O sofrimento encontrou terreno fértil no Vietnã, onde há mais de 50 grupos étnicos, com diferentes dialetos, culturas e vertentes religiosas. Nem falam a língua nacional. Bouny disse que a maioria deles vive nas terras altas da cordilheira Trong Son, ao longo da Trilha Ho-Chi-Minh abundantemente pulverizada pelo Agente Laranja.

“Eles são animistas caçadores e extrativistas. E acreditam ter cometido um erro na vida passada quando sua descendência ganha vida de uma forma monstruosa. É muito complicado. Há um pouco de ajuda financeira estatal para as vítimas, mas é muito, muito pouco. São as pessoas que cuidam dia e noite de seus muitos filhos com deficiência grave. Portanto, não podem atender às suas necessidades”, disse Bouny. “E esse auxílio não permite o acesso à saúde a quem mora tão longe.”

Em meio a tanta dificuldade, resta o sonho de uma solução vinda dos governos estaduais, federal e dos Estados Unidos. “Mas temos de voltar à realidade. Há missões do governo, a Cruz Vermelha vietnamita e muitas pequenas organizações não-governamentais internacionais que vêm em seu auxílio. Oferecem microcréditos na forma de doações de animais para produção rural. Assim eles podem ter acesso a uma força de trabalho, ao leite, a um pouco de carne.”

O Comitê Internacional de Apoio às Vítimas Vietnamitas do Agente Laranja estima em até 4,8 milhões o número de expostos durante as pulverizações. Não estão incluídas contaminações subsequentes por contato, inalação e ingestão, uma vez que o veneno passa pela cadeia alimentar até causar alterações no DNA.

Ao todo, a guerra do Vietnã matou 5 milhões de pessoas, incluindo 1 milhão de soldados e 4 milhões de civis. Segundo Bouny, é difícil estimar a população vietnamita antes do início dos ataques dos Estados Unidos. Sabe-se apenas que em 1975 eram 47,63 milhões de habitantes. “Não se trata de uma simples guerra assimétrica, mas de um verdadeiro extermínio, já que para cada soldado americano morto, foram mortos 100 vietnamitas, 80% dos quais civis.”

Não há dados quanto a vítimas no Laos e Camboja, apenas estimativas. As guerras nesses pequenos países foram marcadas pelo uso de bombas em quantidade seis vezes maior do que durante toda a Segunda Guerra Mundial. Não havia como fazer uma contagem. No Vietnã, por exemplo, quase metade da população tinha menos de 15 anos.

Durante a guerra, o Vietnã recebeu três vezes e meia a quantidade de bombas lançadas durante toda a Segunda Guerra Mundial e usou massivamente armas químicas. Estimativas apontam que foram derramados sobre o país 346,5 milhões de litros de agentes químicos, dos quais 62% eram o Agente Laranja contendo dioxina.

Julgamento histórico

“A responsabilização das empresas que forneceram herbicidas para o Exército, por meio de um tribunal de um país independente, que não era parte neste conflito, significa o reconhecimento da responsabilidade dos Estados Unidos em relação às vítimas vietnamitas do Agente Laranja, o que nunca foi feito”, disse Bouny. “Não podemos presumir qual será o veredicto. A resposta está nas mãos dos juízes. De qualquer forma, acreditamos que haverá um recurso.”

Outro aspecto que o torna o julgamento histórico é que, embora diga respeito apenas a Tran To Nga, eventual condenação das empresas químicas de origem estadunidense abrirá um precedente. Com isso vai desencadear iniciativas semelhantes no Vietnã e em outros países.

Além disso, no contexto da construção do direito internacional, pode ser que um veredito favorável às vítima encoraje outros juízes que lutam com processos semelhantes ou comparáveis a dizer e julgar da mesma forma em favor das vítimas. “Seria mais um passo à grande escadaria do Direito Internacional que ainda está por construir. Nós confiamos nos juízes.”

Afinal, os herbicidas componentes do Agente Laranja têm sido utilizados de diversas maneiras, seja no manejo de florestas ou por grandes empresas ferroviárias. Já foi usado também em parques infantis contra ervas daninhas nos jardins em diversas localidades do mundo.

Estoque de Agente Laranja em Johnston Atoll durante a guerra. (Foto: Governo dos EUA)
Tribunal de Évry

Os advogados das empresas começaram a ser atuar no julgamento em 25 de janeiro, quando as empresas começaram a ser ouvidas pelo Tribunal de Évry, a 25 quilômetros de Paris. Para fugir da responsabilização pelas mortes e danos à saúde dos vietnamitas, os fabricantes de agrotóxicos contam com um grande número de advogados dos maiores escritórios dos Estados Unidos e de Paris. Passam de 30. A autora da ação é defendida por William Bourdon, Amélie Lefébvre e Bertrand Repolt.

Nesses seis anos de julgamento, as empresas tentaram de tudo para tentar reverter o processo. Criaram incidentes legais, chegando a afirmar que estavam sendo alvo de difamação, o que justificaria um processo. Mas o juiz se manteve longe das manipulações, contou Bouny. Os fabricantes de agrotóxicos chegaram ao ponto de exigir holerites de Tran To Nga, que foi jornalista.

O processo de responsabilização dos fabricantes do Agente Laranja em curso na França não é o primeiro da história. Nos Estados Unidos houve tentativas semelhantes, por parte de veteranos do Exército, contaminados enquanto pulverizavam os produtos sobre as matas e lavouras do Vietnã. Mas não prosperaram. “Nos Estados Unidos a Justiça é, acima de tudo jurisprudencial. Portanto, se uma vítima ganhasse, acionaria o reconhecimento de todos os outros procedimentos. As empresas não querem isso.”

Há mais de 14.000 ações contra essas empresas somente os tribunais dos Estados Unidos, fora outras ao redor do mundo.

Houve também um processo na Coréia do Sul, no Supremo Tribunal de Seul, que determinou que a Monsanto e a Dow indenizassem seus veteranos. Os soldados coreanos lutaram ao lado dos do Exército estadunidense, assim como os neozelandeses, australianos, tailandeses e canadenses. Porém, manobras diplomáticas impediram que as vítimas sequer ouvissem falar em indenização.

A diplomacia a serviço de interesses comerciais e não da garantia dos direitos humanos também pode conspirar contra as vítimas vietnamitas do Agente Laranja. O governo do Vietnã não deve apoiar eventuais futuros recursos. É cada vez maior a reaproximação diplomática com os Estados Unidos. A razão é a busca de proteção contra o expansionismo chinês.

Criança vietnamita na floresta devastada pelos venenos. (Foto: Garth e Claire Ewert Fischer)

O povo contra o Agente Laranja

Os seis anos de julgamento no tribunal francês, a luta de Tran To Nga pelo reconhecimento das vítimas do Agente Laranja e o legado de morte, deformidade e invalidez pela terceira geração seguida são o pano de fundo do documentário que deverá ser lançado no início de março.

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