O estado do Amapá está desde 03 de novembro sem o fornecimento regular de energia elétrica, em função de um apagão generalizado. São 19 dias desde o incêndio em uma subestação da Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), em que foram danificados 2 de 3 transformadores responsáveis pela distribuição da energia elétrica em 13 das 16 cidades do estado, atingindo mais de 730 mil pessoas. Dos três transformadores existentes no estado um já estava estragado há quase um ano. Somente agora, depois da tragédia, é que a empresa privada responsável (LMTE) está providenciando o seu conserto.
A população do Amapá passa por um completo abandono do Estado. Está faltando energia, água e combustível. As famílias perdem alimentos em decorrência da falta de refrigeração e todos os serviços de que dependem de eletricidade foram interrompidos. A LMTE pertence majoritariamente ao grupo Gemini Energy, que é controlado por um fundo de investimentos chamado Starboard Asset. A Gemini Energy possui 85,04% do controle da Linhas de Macapá Transmissora de Energia, enquanto a SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), uma autarquia vinculada ao Ministério da Integração Nacional, é responsável por 14,96%.
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Desde o início do apagão, foram registradas mais de 80 manifestações de moradores de bairros e cidades por todo o estado. Desde que restabelecido parte do sistema o funcionamento é muito precário (houve inclusive novo apagão em 17 de novembro). A interrupção de energia várias vezes ao dia, provoca inúmeros problemas, como danificação dos equipamentos elétrico-eletrônicos, em decorrência da irregularidade da transmissão da energia.
Longe de ser uma “fatalidade” esses apagões são consequência do processo de privatização do fornecimento de energia no Amapá, ocorrido em 2008. Segundo os relatórios da fiscalização pública do Amapá, onde opera, a LMTE apresenta problemas. No Pará, estado onde opera a Subestação Oriximiná, em município de mesmo nome, a empresa tomou multa de R$ 460 mil em outubro do ano passado por falta de manutenção e uso inadequado dos equipamentos. Como a Gemini Energy, empresa estrangeira que atua nos 13 municípios amapaenses atingidos pelo problema, e que controla a LMTE, não conseguiu resolver o apagão, a Eletrobras foi chamada para socorrer o estado. A Eletrobrás acionou sua subsidiária, a Eletronorte, que contratou unidades termoelétricas para reabastecer o estado. Foi essa ação que permitiu que, até o momento, o serviço seja fornecido, pelo menos parcialmente.
Não é novidade que a Eletrobras está na alça de mira dos golpistas, para ser privatizada. Ela começou a ser fatiada e entregue já durante o governo golpista de Temer (2016-2018). Atualmente um projeto de lei para sua privatização está parado no Congresso em função da pandemia e da resistência dos parlamentares do estado e da região. Tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado é grande a resistência dos políticos em permitir a privatização da Eletrobrás. O acontecido no Amapá certamente irá atrapalhar os planos de Paulo Guedes, de entregar a Eletrobrás na bacia das almas. O que está acontecendo no Amapá é um exemplo didático do significado da privatização do setor. É um exemplo prático recente do que tem sido a privatização historicamente no Brasil: descaso com a população, falta de investimentos e manutenção, e piora nos serviços.
A privatização do setor elétrico no Brasil sempre rimou com apagão. No início dos anos 2000, no Governo Fernando Henrique Cardoso, que patrocinou a chamada “privataria tucana”, o país sofreu um problema imenso de apagão de energia por falta de investimentos. As empresas que compraram os ativos não investiram, e as empresas públicas foram proibidas de investir. A maioria das pessoas não sabe, mas o setor elétrico brasileiro já é majoritariamente privado. A grande maioria das distribuidoras de energia elétrica no Brasil já é privada. Entre mais de 50 distribuidoras, somente seis são estatais. No sistema de geração de energia, 61% já é privado, na transmissão cerca de 40% também é privado.
O processo de privatizações no Brasil que começou no governo Collor, e que foi muito aprofundado no governo FHC, trouxe uma série de problemas. O país perdeu em parte sua segurança energética, passando a depender crescentemente do setor privado, eventualmente de empresas privadas estrangeiras (como no caso do Amapá). Além de tudo, as empresas privadas não investem, as grandes obras no setor foram sempre realizadas pelo Estado. O apagão do governo FHC decorreu da ausência de investimentos. O Brasil é um país subdesenvolvido que precisa aumentar significativamente o uso de energia elétrica, comparativamente aos países desenvolvidos. Portanto precisa investir ainda muito no potencial hidroelétrico existente no país.
Uma empresa privada, isolada, para ganhar a concorrência de exploração da região, muitas vezes tem que fazer proposta financeira irrealista para levar a concessão. Ganha a concorrência, mas não consegue suprir o atendimento com qualidade, não faz manutenção para economizar e garantir margens de lucros. Além disso, super explora os trabalhadores com equipes mínimas e salários miseráveis. Mantém, além disso, equipamento velhos e estragados como constatado agora no caso do Amapá.
Diferentemente de uma empresa como a Eletronorte (estatal que foi chamada para resolver o problema), uma empresa privada, dependendo do porte, tem dificuldades de manter equipes maiores, e sustentar equipamentos caríssimos. O transformador que estava “encostado” há um ano no Amapá, da LMTE, pesa 200 toneladas e precisou agora ser desmontado e transportado até Santa Catarina, para consertado. Isso tudo exige um ganho de escala, que não é fácil para uma empresa média privada, manter.
Energia elétrica não é um produto qualquer. Um dos fundamentos da sustentabilidade econômica de um país é a sua capacidade de prover logística e energia para o desenvolvimento de sua produção, com segurança e em condições competitivas e ambientalmente sustentáveis. Sem energia, não existe nação. Não é por caso que os golpes de Estado na América Latina têm sido perpetrados também para apropriação das fontes de matérias-primas, como no Brasil (petróleo) e mais recentemente, Bolívia, cuja motivação central (do aspecto de matérias-primas) foram as imensas reservas de Lítio.
Uma usina hidrelétrica jamais deveria ser privada porque, como defendem os estudiosos no assunto, ela possui a “chave das águas”. Em época de seca armazena água para transformar em energia. Mas, ao mesmo tempo, cada litro utilizado para a produção de energia, atrapalha o abastecimento e a produção de alimentos. Há toda uma relação com esse tipo de produção energética e as reservas de água do país, tema que certamente se encontra na galeria dos problemas “mega estratégicos” de qualquer país.
A energia elétrica é tão importante, que alguns países centrais a tratam como um assunto de segurança nacional. Nos EUA o Corpo de Engenheiros do Exército é o maior operador de energia elétrica do país, controlando as grandes barragens de John Day, The Dalles e Bonneville. Na China, a estatal Three Gorges Corporation controla a maior hidrelétrica do mundo, a Três Gargantas. No Canadá, o setor é controlado por companhias dos governos provinciais, semelhantes aos governos estaduais brasileiros.
No Brasil a Eletrobras tem 47 usinas hidrelétricas responsáveis por 52% de toda a água armazenada no Brasil, sendo que 70% dessa água são utilizados para a irrigação da agricultura. Imagine tudo isso nas mãos de uma empresa privada que só se interessa pelo lucro, como a que acabou de deixar o Amapá às escuras. O caso do Amapá teria que servir para a população brasileira entender a imensa cilada que significa a privatização do setor elétrico no Brasil.
José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
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