Por Roberto Antônio Liebgott.
Neste breve ensaio, registro sentimentos e impressões de quem colaborou na sistematização, organização e análise de dados de violências contra os povos indígenas, registrados ao longo do ano de 2019. Nós, que trabalhamos com comunidades indígenas e acompanhamos suas lutas, seus sofrimentos e suas cotidianas e contínuas formas de resistência, sentimos o coração estraçalhado ao lidar com o volume de dados e com as crescentes formas de agressão praticadas contra eles. Não sistematizamos e organizamos números, e sim informações sobre vidas, sobre pessoas e coletividades com histórias, a quem um Estado negligente e, por vezes, conivente, impinge tamanha dor, angústia, sofrimento e morte.
Quando avaliamos os dados, vemos neles os sujeitos que têm suas terras devastadas pelas chamas do fogo provocado por invasores sedentos pelo lucro farto e fácil; vemos as faces de desespero daquelas comunidades que entendem a dimensão destruidora dos incêndios e o desequilíbrio provocado quando o meio ambiente – com suas diversificadas formas de vida e de seres – é reduzido a cinzas. Os dados sobre incêndios criminosos mostram faces de povos da Amazônia (Acre, Amazonas, Pará, Amapá, Maranhão, Roraima, Rondônia, Mato Grosso) povos do Cerrado (Tocantins, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Maranhão, Piauí, Mato Grosso do Sul, Bahia), povos do Pantanal (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) que tiveram suas terras e vidas devastadas.
Quando avaliamos os dados deste relatório – em seu conjunto – vemos famílias obrigadas a migrar de um lugar para outro, porque a terra está sendo escavada e aniquilada pela ação de milhares de garimpeiros que, além dos riscos a que submetem as comunidades Yanomami, Munduruku, Makuxi, Surui, por exemplo, contaminam o ar, as águas e comprometem a qualidade de vida.
Quando avaliamos os dados, sentimos, com os Karipuna de Rondônia, a dor ao ouvir, de suas aldeias, o ronco das motosserras, metáforas de destruição de uma natureza sagrada para os povos que nela habitam. São vidas ameaçadas de morte pelos grileiros e loteadores de terras que estão nos registros deste relatório. Sentimos, com os Guajajara, a dor de ver assassinado Paulinho Paulino, um dos Guardiões da Floresta, no Maranhão.
Ao analisarmos os dados, não é possível conter a emoção diante do sofrimento de tantas comunidades ameaçadas, pensamos na angústia das noites mal dormidas pelo medo de ataques e dos disparos de armas de fogo. Lembramos dos Mbya Guarani da Ponta do Arado e de Terra de Areia, no Rio Grande do Sul, que foram agredidos diversas vezes por homens armados durante as noites e as madrugadas. Lembramos, ainda, dos Guajajara, Apurinã, Kayapó, Kanamari, Mayoruna, Korubo, Tupinambá, Pataxó, Ava Guarani, Mbya Guarani, Terena, Kaingang e tantos outros povos, vítimas de ameaças cotidianas. Os dados contêm histórias das feridas nos corpos agredidos, do choro sentido e silencioso de pessoas que resistem e defendem os últimos redutos de natureza preservada.
Quando avaliamos os dados, enxergamos neles as vidas assassinadas por homicidas mandantes e seus capangas, vemos o choro dos Kaiowá Guarani, dos Yanomami diante dos corpos daqueles que morreram lutando.
Quando olhamos o conjunto de todos os dados, observamos que há neles uma ação de governo premeditada e planejada para o extermínio, que se implementa pelo incentivo à invasão e ao desrespeito aos direitos constitucionais indígenas. Não vemos apenas percentuais de áreas desmatadas, mas vidas existentes sob o risco de destruição, vemos as centenárias árvores sendo abatidas e, com elas, inúmeros seres.
Quando analisamos os dados, vemos a angústia daqueles que perderam as terras para invasores e, apesar das denúncias e reivindicações constantes, o poder público nada fez ou fará para ampara-los. Ao contrário, os deixa às margens de rodovias ou em áreas degradadas, submetidos ao calor escaldante ou ao frio que torna a vida insuportável. Vemos a dor dos Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, dos Kaingang, Mbya e Ava Guarani, no Sul do Brasil.
Nos dados, vemos centenas de famílias indígenas sem terras, vivendo nas periferias de cidades ou em margens de rodovias. E, nesses lugares, quando existe alimentação, ela provém do esforço das próprias comunidades e ou de doações feitas por pessoas ou organizações da sociedade civil. Os dados retratam rostos de crianças subnutridas, porque não há alimentação adequada, uma vez que estão alijados do direito à terra e o Estado brasileiro, que deveria proteger suas vidas, suspendeu até mesmo as poucas cestas básicas que lhes seriam destinadas. Quando analisamos os dados, enxergamos neles centenas de famílias Mbya, Ava, Kaiowá Guarani e Kaingang e suas crianças com feridas ao redor da cabeça, dos olhos e orelhas, porque não têm acesso à água potável para beber, banhar-se e lavar as roupas.
Quando analisamos os dados, vemos neles os rostos cansados de pessoas que nasceram, cresceram, construíram famílias e permanecem sob as lonas de acampamentos às margens das rodovias. Vemos, assim, a dor e o desamparo dos Mbya, Ava, Kaiowá e Kaingang.
Quando vemos os dados, enxergamos neles as mulheres que acolhem seus filhos com febre em seus braços e sabem que não haverá tratamento médico, porque as equipes de saúde passam por lá de forma esporádica e o atendimento é paliativo. Sofremos com as comunidades indígenas de áreas remotas, em cidades e periferias ou em áreas degradadas que não recebem assistência adequada.
Quando olhamos os dados, neles estão a morte por suicídios provocados pela desesperança na vida, quando há a crença de que, nessa dimensão, só existe sofrimento, desespero e morte e, assim, parece não haver saída. Vemos também a precarização crescente dos ambientes que asseguram a um povo a coesão, a esperança e a força para viver.
Quando vemos os dados lá estão o Estado e suas estruturas inócuas, omissas e negligentes que geram inseguranças e incertezas. Vemos ações que que visam a desconstitucionalização dos direitos, em especial o da demarcação e garantia das terras indígenas. Vemos, ainda, servidores públicos exonerados por cumprirem seu dever de fiscalizar e promover a proteção dos territórios.
Quando vemos os dados, lá estão os ruralistas, os madeireiros, as mineradoras e garimpeiros pressionando para que os direitos indígenas sejam suprimidos da nossa Lei Maior. Eles não medem esforços no sentido de forjar teses jurídicas, como a do marco temporal, e, com elas, pôr um fim às demarcações de terras no Brasil.
Os dados, em síntese, dão conta da existência programada da desconstitucionalização dos direitos, da desterritorializaç?o dos povos e da tentativa de integração dos indígenas à sociedade majoritária. Os dados são reveladores de uma ação genocida do governo federal em curso.
Contudo, os dados também explicitam múltiplas formas de resistência e de ações dos povos, de suas comunidades e organizações, bem como de todos aqueles que não admitem o genocídio, a omissão e a imposição de uma antipolítica para os povos indígenas.
Seguimos, na luta e na esperança, ao lado dos povos originários, das comunidades tradicionais, dos quilombolas, e de todos os setores engajados na luta pela defesa dos direitos humanos, construindo caminhos do Bem Viver.
Porto Alegre, RS, 30 de setembro de 2020.
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Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.