A ironia da conquista: a perda. Por Carlos Weinman.

Foto: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

A partida sempre apresenta dificuldades, principalmente quando amigos e pessoas amadas ficam ou fazem outra jornada, ao mesmo tempo, caminhar é preciso, para tanto, é impreterível desapegar e percorrer, o que costuma ser difícil quando temos, nas relações, um valor inestimável. Por outro lado, o viajante sempre tem a possibilidade do encontro, o que não ameniza a dor da despedida e o sentimento de saudade que passa acompanhar o ser. Por esse motivo, quanto maior a capacidade de sentir, ou como dizem: quanto maior o coração, maior será a intensidade desse sentimento.

O movimento é inerente ao humano, que é um viajante de um mundo que não é seu, embora muitos tenham a falsa impressão de serem conquistadores, desbravadores, o que cai por terra no ciclo da vida e do movimento, tudo que foi conquistado fica para os próximos viajantes, ou seja, toda conquista se converte em uma perda para aquele que está apegado, por sua vez o que foi perdido será de outro, que poderá ou não  ser iludido pelo desejo de posse e de poder.

A história dos viajantes humanos é, infelizmente, marcada pelo esquecimento da passagem, havendo a necessidade de serem sacudidos, muitas vezes no fim do percurso, por um “senhor” que é impiedoso, conhecido como Tempo, que com suas garras, descortina e revela que tudo o que fora considerado sólido é frágil, limitado, efêmero. Essa postura humana produz as relações de estranheza, de negação da vida em nome de conquistas, de buscas intermináveis, que fazem esquecer o quanto são importantes as pessoas que, como dizia o filósofo Kant, devem ser vistas como um fim em si mesmas, jamais  como um meio para outra coisa, para conquistar, lucrar, ter sucesso, tudo que é construído pela genialidade deve servir para a dignidade do humano e não produzir olhares de negação e estranhamento.

Os sentimentos de Roberto e dos viajantes da ferrugem dos esperançosos estavam divididos entre a tristeza de partir e deixar seus amigos, em Cuiabá e, ao mesmo tempo, alegres por terem condições de procurar pelos irmãos. A amizade e a solidariedade se apresentaram como fatores para superação da estranheza, talvez o sentimento pelo próximo, a maneira de sentir seja a chave para superação da negação. Era sobre isso que Inaiê estava pensando, enquanto entrava na ferrugem dos esperançosos.  Ulisses ligou a Combi, partiram, visualizando, no retrovisor, o adeus dos amigos, foi quando Inaiê resolveu falar:

A saudade já é grande, são pessoas extraordinárias, vejo que o sentimento de bem querer ao próximo pode ser a condição necessária para superarmos a estranheza tão presente no mundo.

Roberto – Concordo contigo, acredito que a razão deve ser orientada pelo sentimento.

Ulisses – Aqui surge a questão: todos os sentimentos são bons? A estranheza, não se apresenta como uma forma de sentir, de perceber os nossos semelhantes?

Inaiê – Nesse sentido, concordo contigo, porém existe determinados sentimentos que são propícios para uma sociedade melhor.

Deméter – Quais?

Inaiê – O amor, por exemplo.

Deméter – Quem disse que o amor não pode ser egoísta? Algumas pessoas amam de forma possessiva ao ponto de não deixar o outro existir. Além disso, tem aqueles que em nome do amor pelos seus filhos vão buscar acumular, por poder a qualquer custo, dizem que objetivo é garantir um futuro para seus filhos.

Ulisses – Quando falamos do amor possessivo, não se trata de uma visão egoísta de querer o outro para si, como uma posse?

Inaiê – De fato, concordo contigo, temos uma experiência individual, o amor é uma forma nossa de sentir em relação ao outro, pessoas e seres em geral, alguns chegam amar objetos!

Perséfone – Isso é muito complexo, difícil encontrar a verdade sobre isso!

Roberto – Agora você trouxe mais um problema, já que a verdade corresponde a uma forma de percebermos as coisas, é o nosso modo de enxergar o mundo, o que pode ser em um determinado momento correto poderá ser em outro errado. Por isso, é que existe o desafio humano de fazer uso do exercício do pensamento, que não para, quando isso acontece não é mais um pensamento, apenas um princípio dado como verdadeiro ou falso.

Inaiê – Em relação ao amor possessivo, poderíamos dizer que o problema corresponde ao fato de colocar a minha forma de sentir como soberana, ignorando o outro, o que talvez não seja amor, mas um sentido doentio de posse, como alguém que diz que ama demais seu carro ou um determinado objeto, nesse caso, o pensamento não ganha espaço, pois o que vale é apenas um único princípio de sentir e agir.

Roberto – Algumas pessoas agem de uma forma muito estranha, louca, em nome do amor, o que não constitui em uma demonstração de afeto, corresponde a revelação doentia de uma ideia fixada no imaginário, no sentir e no pensar do indivíduo, o que evidencia uma situação muito problemática, no mínimo!

Inaiê – Do mesmo modo, justificar ações em nome do futuro dos filhos ou do progresso é equivocado, pois essa ideia vai colonizar o espírito, que imbuído por esse valor nunca dará chance em viver com os filhos e com as demais pessoas. Assim, a vida pode sucumbir diante de uma ideia ou de uma forma de sentir questionável.

Ulisses – Quando falamos dos seres humanos e sua relação com o planeta, vemos essa contradição, visto que buscamos o progresso para garantir o nosso futuro e dos nossos filhos, mas contaminamos e retiramos as possibilidades deles viverem nesse amanhã que ainda está por vir, sem contar que perdemos a oportunidade de viver com eles.

Deméter – Esse é o problema do paradigma da conquista!

Perséfone- Mamãe, o que é paradigma?

Deméter – Paradigma corresponde a um padrão, a um conjunto de ideias que nos dizem como agir e pensar, muitas vezes não percebemos que estamos sendo influenciados por um paradigma, um determinado valor, por assumir de maneira inconsciente e não questionarmos.

Perséfone – Quando surgiu ou o que é esse paradigma da conquista?

Deméter – Podemos dizer que ele surgiu quando a humanidade esqueceu que faz parte da natureza e começou a querer dominar, buscar conhecimento para manipular a seu favor todos os demais seres e até mesmo o seu próprio semelhante.

Inaiê – Nesse sentido, podemos dizer que o filósofo Francis Bacon (1561-1626), que viveu no século XVII, trouxe uma frase que parece relatar muito bem isso, ele dizia que o saber é poder, ou melhor dizendo, deve ser um meio para conquistar a natureza,  o conhecimento não deve ser visto sobre uma perspectiva meramente entusiasta, mas como um meio para dominar.

Roberto – Então, somos herdeiros dessa mentalidade, embora Francis Bacon tenha sido um importante filósofo para a ciência da época, esse princípio na atualidade é um problema, talvez naquele contexto, as suas indagações tenham sido muito relevantes para o avanço do conhecimento científico. Porém, aqui aparecem alguns dilemas éticos: quem disse que a natureza, o cosmos, os seres em geral devam estar meramente a disposição das vontades humanas?

Ulisses – Sem contar que se continuarmos com essa mentalidade, com um grande número de pessoas sendo educadas para a busca do sucesso, do poder e da conquista a qualquer custo,  teremos o cultivo de sentimentos possessivos, os quais poderão levar a ruína da humanidade e a destruição de muitos recursos naturais.

Inaiê – Outro aspecto importante, está no fato que essa perspectiva do paradigma da conquista, desenvolve nas pessoas um sentimento de individualidade e não de humanidade.

Perséfone – Como assim? O indivíduo não é um humano?

Inaiê – De fato, todas as pessoas pertencem à humanidade, a questão é que com essa mentalidade desaprendemos a pensar no conjunto, nos vemos apenas como indivíduos, cheios de sonhos, de perspectivas, de desejos e não nos importamos com os demais, até buscamos a nossa salvação, em termos de alma, de forma individual ou restrita, perdemos o sentido de solidariedade, o homem moderno aprendeu a servir aos seus desejos, pois visualizou a possibilidade de realizá-los não se importando com o outro.

Deméter – Somos herdeiros de uma visão que não vê o outro como sentido de alteridade, de vivência, de aprendizado, apenas reduzimos tudo a uma questão de realização pessoal, que para algumas pessoas chega ao extremo de dizer que ama o outro, mas se trata apenas de um sentimento de autossatisfação. Do mesmo modo, se alguém tiver o poder de fazer a diferença para uma sociedade mais justa, como era o debate dos filósofos antigos, deixa de lado, para fazer uso das suas vontades, dos seus desejos, o que pode levar a afirmação que um tirano, ou grupo de assassinos não são tão ruins, visto que servem ao propósito individual ou, simplesmente, para não admitir que determinado princípio é um engano.  

Inaiê – Podemos dizer que os homens e mulheres agem em favor dos seus desejos e vaidades pessoais. Além do mais,  enquanto não conseguimos superar esse paradigma da conquista, temos a evidência que o exercício do pensamento parou, havendo apenas o princípio de uma verdade que não nos serve mais e que continua sendo usado apenas acrescentando um número cada vez maior de tecnologias, que apenas servem para a busca de domínio e de poder. Infelizmente, o paradigma se converteu em um sentimento com uma intensidade nunca vista antes.

Roberto – Em relação a sociedade, poderíamos dizer que ela manipula ou educa a nossa forma de sentir?

Deméter – Até um certo ponto sim, dado que a sociedade determina os valores, o que é considerado como meta a ser buscada, o que é sucesso ou não, a apercepção disso tudo corresponde a experiência em que cada indivíduo fará no interior dela, vejo que isso acontece de maneira dialética, as ações dos indivíduos estão interligadas com a soma de pensamentos, de valores,  por mais individual que uma determinada escolha seja.

Inaiê – Realmente, se for em uma loja, as opções em relação as roupas, por exemplo, estão interligadas a determinados conceitos, padrões, faço uma escolha, digo que é o meu estilo, quando saio para a rua, vejo outras pessoas com o mesmo estilo, fiz uma escolha, que está atrelada a imensidão de elementos sociais.

Roberto – Dessa forma, a sociedade moderna impulsionou o desenvolvimento de sentimentos, de valores em prol de uma individualidade, cada vez somos mais solitários, mas no final sonhamos com as mesmas coisas, o paradigma da conquista envolve sentimentos e uma razão técnica, que relaciona meios e fins, ou seja, havendo um objetivo, a razão apresenta os meios necessários para conquistar, mesmo que seja em detrimento da própria humanidade.

Assim que Roberto terminou de falar, Ulisses mencionou que já estava na hora de acharem um lugar para almoçar. Enquanto procuravam, um pensamento sobre o mito de Prometeu invadiu o espírito de Inaiê que não se conteve e falou:

Podemos fazer uma atualização do mito de Prometeu,  que teve a condenação de ficar preso em uma colina e  ter seu fígado devorado por uma ave de rapina durante o dia, no período da noite o fígado era restabelecido para no dia seguinte ser devorado novamente, uma condenação por ter levado a técnica do fogo aos homens. Por sua vez, o homem moderno tem muitas tecnologias para se comunicar e conhecer outros povos, outras pessoas, entretanto, todos os dias se vê perdido, tem o sentimento de ser condenado em estar no universo público, no meio da  multidão, sofrendo, sentindo na sua alma a experiência da solidão, do isolamento, chegando a sonhar com o paraíso celestial para encontrar pessoas, amigos, amor e até mesmo a vida, já que, ironicamente, na condição de ser vivente, tem um corpo destituído da experiência do outro, que se apresenta como um estranho, a vida do organismo não é suficiente para um ser dotado de espírito, dado que esse, também precisa ser alimentado para não sucumbir, o que leva a humanidade ser percebida em uma grande miséria, pois enquanto há produção do estranho, a humanidade perece.

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Carlos WeinmanPossui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do Estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

 

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