MasculinidadeS. E se no caminho faltava algo? E mesmo assim… Chegamos até aqui!

Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.

A história, de forma bem resumida, se constitui por dois tipos de gestos: fatos e narrativas. Perdoem o resumo simplista, pra iniciar esse texto. O faço por que o creio fundamental, para o diálogo que iniciamos.

A história da humanidade foi explicada pelos vencedores, em todos os aspectos sociais dos processos de dominação. Todas as tentativas de construir uma nova hegemonia na hora de explicar a história de um modo diferente são muito (muito!) recentes.

O patriarcado, por exemplo, é uma construção milenar. Tão milenar quanto o cristianismo, por usar mais um exemplo – somente para ficarmos em um referente associado. Analisá-lo, ao patriarcado, falando de Masculinidade, por exemplo, acontece há pouco mais de cem anos: Ronald Levant, Jack Sawyer… Raewyn Conell! Colocar uma letra S, no final da palavra, MasculinidadeS, ganhou força há uma ou duas décadas. “Ontem”, em perspectiva histórica. Pluralizar o debate é fazer com que seja ainda mais complexo. Seria mais fácil não complicar? Não nos serviria; lamento!

Porque, então, algo que incomodou – em maior ou menor grau – durante séculos, metade da população do mundo (as mulheres, diretamente ou indiretamente, fazendo esforço de voltar ao mundo binário que divide a existência em somente dois sexos), só agora passa a ser repensado? Será pelo mesmo motivo que oS feminismoS, por seus avanços, recebem ataques de todos os lados, direita, ultradireita e esquerda incluídos?

Não é um debate menor.

Mas o desafio das pessoas que querem aprofundar esse debate não é ficar lá, por cima, no debate maior: por onde deveria passar, prioritariamente, a transformação das formas de viver em sociedades que não nos agradam? O caminho esquemático das lutas de classes sociais não foi o vencedor, mas o que predomina ainda em todas as análises dos movimentos sociais de esquerda. Tem mérito. São argumentos tão fortes que merecem o máximo dos respeitos. Mas não vencemos. Disso não restam dúvidas. Nem sequer nos permitimos estarmos de acordo sobre as formas de experimentar. Está aí o capitalismo, cada vez mais selvagem a nos jogar na cara suas mazelas crescentes. E agora, com o luxuoso auxílio da Pandemia.

São argumentos, insisto, tão fortes, que a ortodoxia “de esquerda” chamará de traidor da causa, a quem ousar perguntar-se, por dentro e por fora: por quê? Porque não me abro a outras categorias analíticas que antes eram subalternas e que podem ser eixos igualmente estruturais? Permito-me pensar fora dos “velhos esquemas”, por mais atuais que sejam?

Estamos todas sucumbindo a uma nova crise de valores. Há um grito, não novo, nas ruas, que invade nossas casas, computadores, telefones celulares e mentes – tudo junto.

E se o que eram questões transversais (tão transversais que se diluíam) ocupassem lugar central ao não sairmos da mesma convergência de objetivos: enfrentar o tal capitalismo selvagem e seu sócio principal, o fascismo. Ou a luta estrutural contra o sócio, o fascismo, esconde o que deveria ser luta central e não subalterna: racismo e machismo?

A primeira questão, a luta antirracista é pano pra manga. Defendo olhar pra ela com novos e valiosos olhos, com unhas e dentes. Compro briga. Quero debater. Aceitei mudar o meu pensar. Acho que é por aí. No Brasil, principalmente. Quem vem comigo?

Acho tão possível não admitir retrocessos em matéria de direitos humanos, quanto ao mesmo tempo não aceito mais discutir direitos humanos como um conceito etéreo, sem objetividades urgentes. A pressa é inimiga da perfeição? Concordo. Mas e os pretos mortos por racismo a cada vinte e três minutos, num país como o Brasil?

Não quero esperar outro George Floyd. Eu quero é esse mesmo. Aquele…

Mas, aqui, neste texto, insisto em enfocar também nas lutas do movimento feminista, se realmente acredito nas possibilidades de mudar o mundo em que vivo, as perspectivas feministas são muito mais importantes do que efetivamente eu pensava, anos atrás. Antes tarde do que nunca. Pau que não nasceu torto – FICOU torto – então será capaz de desentortar-se. Melhor mais cedo que mais tarde. Sou feliz em me sentir progredindo. Se me iludo, pelo menos me permito ser um pouco mais feliz. E isso não é pouco para mim.

Mas também sei que não há tempo a perder. E persisto.

Por isso, gastei já metade desse texto em começar pelas questões macroestruturais, quando o que eu quero é chegar no micro. Esse é o meu alvo, atualmente. Porque eu acho que é aí que o porco torce o rabo. É aqui que eu acho que esse mundo começa se descontruir.

Por isso mesmo, a crise de valores das tais novas masculinidades é nada mais que uma feliz oportunidade de fazermos nosso debate, em paralelo, sobre as efetivas possibilidades que abre o movimento feminista em nossas vidas.

Se me fiz bem entendido, acredito no poder da palavra equilíbrio, tanto quanto no poder semântico da palavra “radical”. Não há revolução sem mudanças de posturas e de questionamento dos próprios privilégios. Por mais dados, construídos, “naturalizados”…

Se os mecanismos da atual dominação social, a que oprime, passam pelos mínimos gestos cotidianos, como os famosos micromachismos, estou de acordo que os alicerces dos mecanismos de dominação podem ser destruídos como água que goteja na pedra. O problema é que já não há tempo de esperar gota a gota. A pedra exige mais água. A água cansou.

Eu quero é abrir mais essa torneira. Dinamitar as represas. Não somente abrir comportas.

Brecht dizia que é tão forte o poder da correnteza quanto as margens que oprimem o rio. O mesmo rio de sempre, no seu curso dialético, infinito… Águas haverão de rolar!

Cheguei até aqui somente para dizer: é disso que eu quero falar com vocês.

Vamos lá?

Ficou com gostinho de quero mais?

Fiz de propósito… Até a próxima.

E aquele abraço.

Puigdàlber, verão de dois mil e vinte. Como se fosse em Piaçabuçu.

@1flaviocarvalho é sociólogo e escritor.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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