Por Vanessa Nicolav.
Na última sexta-feira (17), o Ministério da Saúde emitiu documento recomendando à Fiocruz o uso da cloroquina no tratamento precoce da covid-19. A medida, que contraria as orientações da Organização Mundial de Saúde, foi, entretanto, comemorada por vários grupos na internet como uma vitória histórica.
Esses grupos, são fáceis de encontrar em redes como o Facebook. Eles possuem milhares de participantes e compartilham diariamente publicações sobre curas encontradas em outros cantos do mundo, lives sobre como o vírus foi fabricado em laboratório chinês e vídeos com médicos orientando sobre a dosagem de medicamentos para a covid. A maioria dos conteúdos é de fake news.
A difusão de conteúdos falsos é tamanha que motivou um grupo de pesquisadores e profissionais da saúde a lançarem uma campanha contra os riscos das informações falsas durante a pandemia, fenômeno que chamaram de infodemia.
Segundo o manifesto, assinado por centenas de profissionais dos Estados Unidos, Itália e Brasil, e apoiado por entidades de classe como o Conselho Federal de Enfermagem, a infodemia estaria impedindo que as pessoas encontrassem informação confiáveis sobre a nova doença. Ela pode,por consequência,causar ainda mais mortes.
Uma pesquisa realizada pelo Centro de Direito Sanitário da USP (Cepedisa), em parceria com o Instituto Nacional de Ciências da Tecnologia e Democracia Digital e o Laut, grupo de estudo sobre autoritarismo, monitorou a produção de vídeos com conteúdos falsos durante a primeira etapa da pandemia e chegou a conclusões preocupantes.
“Vimos que os vídeos que circulavam desinformação tinham mais visualização do que os vídeos oficiais. Muito mais, tinham até três vezes mais engajamento do que vídeos do Ministério da Saúde, por exemplo.” relata Daniel Dourado, pesquisador da USP que integrou elaboração do estudo.
Para o pesquisador, que também é médico e advogado sanitarista, a infodemia é realmente preocupante, principalmente nesse momento.
“Ainda não existe nenhuma droga, uma vacina, um tratamento específico que mude a história natural da evolução da doença viral. A principal ferramenta de enfrentamento da pandemia é a comunicação, a possibilidade de as autoridades mostrarem a importância de certas medidas.”
Ele lembra que os protocolos mais eficazes conhecidos até agora para a contenção do vírus são os recomendados pela OMS: uso de máscara, higienização das mãos e distanciamento social.
“Essas medidas todas são medidas comportamentais. A população precisa entender sua importância, de solidariedade social. A importância de saber que estou tomando uma medida que vai me proteger e proteger a comunidade como um todo.” afirma Dourado.
Órgãos de controle social, como o Conselho Nacional de Saúde (CNS) também advertem sobre os riscos desse tipo de publicação, principalmente os que incentivam a automedicação. Em nota, a entidade lembrou que o uso irracional de medicamentos, inclusive, é um dos motivos que mais causam intoxicação em nosso país.
A farmacêutica e coordenadora do CNS, Débora Werneck,diz que a entidade é “totalmente contra” o uso ou divulgação de medicamentos “que não têm nenhum tipo de confirmação da sua efetividade para tratar a doença”.
E os médicos com a cloroquina?
Mas em relação aos profissionais de saúde que tomam a frente a defesa de orientações anti-científicas? Qual a responsabilidade que recai sobre eles, do ponto de vista jurídico e médico?
“Os médicos têm responsabilidade nos termos do código de ética deles. Não podem divulgar informação sensacionalista, com conteúdo inverídico porque acabam gerando uma outra crise na saúde pública. E eles podem ser passíveis de responsabilização.” explica Evelyn Melo Silva, especialista em direito à informação.
Os processos contra médicos podem ser abertos nos Conselhos Regionais de Medicina, conforme a localização do registro do médico e correm em sigilo. Na pesquisa para a reportagem, diversos vídeos de médicos foram identificados propagando informações inverídicas, mas em consulta online nesses órgãos, nenhum dos profissionais estava com o registro cancelado.
A divulgação de propaganda e conteúdo sensacionalista é vedado ao profissional da saúde, porém, conforme lembra Nunes, a prescrição de medicamentos para tratamentos fora da bula, os chamados off labels, é permitida mediante consentimento dos riscos por parte do paciente. Inclusive, o parecer 04 de 2020 do Conselho Federal de Medicina, reafirma a autonomia dos médicos em relação ao uso da cloroquina. “Apesar do medicamento não ter nenhuma evidência científica de que seja capaz de tratar, curar ou prevenir a covid-19, ele pode ser usado em pacientes que consintam com o tratamento”. afirma o documento.
Porém, para além das infrações aos códigos de éticas passíveis de responsabilização, a divulgação de informações falsas é um desvio da própria conduta do médico, que é salvar vidas. É o que afirma Mérces da Silva Nunes, advogada especialista em direito médico.
“Eu acho que pessoas como essas depõem contra a própria classe, não contribuem para a manutenção da imagem de respeito que o profissional médico teve por séculos. Contribui para a perda de confiança, porque já não podemos saber se aquela conduta é a melhor ser adotada, ou se ele está te falando porque ele vai ganhar mais um procedimento.” afirma Nunes.
A médica da família e comunidade e integrante da Rede de Médicos e Médicas populares Lílian Gonçalves concorda que tais práticas não condizem com os princípios da ética médica. “É uma é uma postura narcisista de muitos profissionais médicos que acham que são detentores da vida das pessoas. Eu acho que é uma é uma alimentação do superego desses profissionais que estão diretamente ligados com uma uma vertente política ideológica mesmo no sentido de intervenção de não respeito à vida das pessoas.”
Sobre como proceder no mar de infodemia, os especialistas lembram: sempre desconfiar e checar informações, principalmente as mais espetaculares. E se encontrar conteúdos suspeitos, fazer as denúncias nos órgãos específicos.
“O que as pessoas podem fazer é denunciar na própria plataforma, YouTube, Facebook, Twitter, todos possuem canais de denúncia e podem verificar se o conteúdo divulgado contém desinformação ou não. Até mesmo excluir. Essa tem sido uma política das redes sociais de derrubar os conteúdos com a desinformação para evitar que se propague ” afirma Melo.
“Se a pessoa se sentir lesada, ela sempre pode se direcionar ao órgão de classe e levar a notícia e o órgão vai tomar as providências que entender necessárias” conclui Nunes.
Edição: Rodrigo Durão Coelho.
Fonte: Brasil de Fato.