por Igor Carvalho
No dia 15 de junho, o ministro da Justiça, André Mendonça, pediu à Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da República que investiguem o jornalista Ricardo Noblat com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), por ter publicado uma charge do cartunista Renato Aroeira. A medida, que foi criticada por diversas entidades, tem sido cada vez mais comum no Brasil.
Dados da Polícia Federal, obtidos através da Lei de Acesso à Informação (LAI), via coletivo Fiquem Sabendo, mostram que nos últimos 18 meses foram abertos 41 inquéritos com base na LSN, 26 em 2019 e 15 no primeiro semestre de 2020. De janeiro de 2000 até 7 de junho de 2020, o Estado brasileiro instaurou 155 processos para investigar possíveis violações da lei. Em 2018, o expediente foi utilizado por 19 vezes, o recorde anterior.
A atribuição de apurar os crimes determinados na LSN é da Polícia Federal, que pode ser provocada pelo Ministério Público Federal, o Supremo Tribunal Federal (STF) ou o ministro da Justiça. Marcelo Uchôa, doutor em Direito Constitucional e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), lembra que a lei foi criada ainda no período militar (1983) e que garante a “blindagem de autoridades públicas.”
“É um absurdo que estejamos naturalizando isso. Do ponto de vista da esquerda, eu vejo muita gente comemorando o enquadramento de deliquentes como a Sara Winter na LSN, isso é um erro. Mais do que nunca, temos que denunciar essa lei. Aliás, uma lei quase morta passou à sobrevida, uma lei que tem em seu DNA a perseguição contra a oposição política”, afirma o jurista.
Na manhã de 15 de junho deste ano, a Polícia Federal fez cumprir um pedido de prisão temporária expedido pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, contra a bolsonarista Sara Fernanda Giromini, também conhecida como Sara Winter, no âmbito do processo que corre na Suprema Corte para apurar a organização de atos antidemocráticos. O magistrado emitiu o mandato com base na LSN.
Em setembro de 2019, o ex-ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro, Sérgio Moro pediu que a Polícia Federal usasse, também, a LSN para abrir um inquérito contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após o petista afirmar, em um vídeo divulgado em suas redes sociais, que o governo atual seria “miliciano”:
“A direita está tentando destruir tudo que fizemos. Aqui no Brasil nós vamos ter de levantar a cabeça e lutar. Não é possível que um país do tamanho do Brasil tenha o desprazer de ter no governo um miliciano responsável direto pela violência contra o povo pobre, responsáveis pela morte da Marielle, responsável pelo impeachment da Dilma, responsáveis por mentirem a meu respeito”, afirmou Lula. A Polícia Federal não aceitou o pedido e afirmou que não houve uma postura que “configure crime previsto na Lei de Segurança Nacional.”
Juristas costumam criticar a lei por ser vaga e passível de interpretações diversas, o que autorizaria o uso de seu texto para “intimidações políticas”. “Ela é muito vaga nos conceitos, então permite que uma expressão contra o presidente da República seja interpretada como uma difamação. Ela permite, por exemplo, que uma manifestação pacífica se torne um crime”, explica Uchôa.
Em seu primeiro artigo, a LSN determina que estão sujeitos à penalidade os que “lesarem” ou expuserem “perigo de lesão” a integridade territorial e a soberania nacional, bem como os chefes dos poderes da União. Para Fernando Hideo, advogado criminalista, a lei deveria ser extinta.
“É uma lei que dá margem para esse tipo de perseguição, pelo caráter aberto dos tipos penais, por não descrever adequadamente as condutas que poderiam atentar contra a existência do Estado de Direito. Essa legislação acaba, naturalmente, sendo manipulada para intimidação política. Ela é incompatível com a Constituição de 1988, ela não pode sobreviver em um Estado democrático de Direito”, explica o defensor.
Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, a advogada Luzia Paula Cantal condena a “vulgarização desta quantidade exagerada de inquéritos” no período da gestão do atual presidente.
“A partir do Governo Bolsonaro, especialmente durante o ano de 2020, presenciamos o uso intenso deste dispositivo legal, na tentativa de calar grupos políticos ou cidadão contrários ao Governo Bolsonaro. A LSN, não estabelece parâmetros precisos capazes de garantir o exercício à liberdade de expressão e a liberdade de manifestação. O Estado não pode utilizar a LSN para impor a restrição da liberdade de expressão ou a censura”, finaliza.
Os dados da Polícia Federal mostram que o número começa a subir em 2015, quando 13 inquéritos foram abertos com base na LSN. Hideo pondera que esse crescimento tem ligação com o animoso clima político do país e as frequentes manifestações de rua.
“Percebemos que desde junho de 2013, com os protestos populares que foram manipulados pelos setores hegemônicos, para desaguar nessa suposta luta contra a corrupção, que resultou na Lava-Jato, no impeachment da Dilma Rousseff e na prisão de Lula, mas fato é que essa crise política instaurada desde 2013 fomentou os protestos populares e a resposta à eles tem sido, frequentemente, a Lei de Segurança Nacional”, explica.
Histórico
Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 2000, nove agricultores do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) do Paraná e outros dois no Mato Grosso, foram enquadrados na LSN, por conta de uma série de ocupações de prédios públicos. O pedido partiu do ministro da Justiça à época, José Gregori.
Mas em 2006 veio o inquérito mais emblemático, quando o Ministério Público Federal propôs um inquérito contra 116 militantes do Movimento pela Libertação dos Sem Terra (MLST), quando o grupo ocupou as galerias da Câmara dos Deputados e entrou em confronto com os seguranças da Casa.