Por Juliana Arini.
Por quatro dias, a aldeia Piaraçu, na Terra Indígena Capoto Jarina (MT), tornou-se o centro do mundo para 45 povos indígenas. Cerca de 600 lideranças indígenas protagonizaram um evento inédito em todo o país, o Encontro dos Povos Mebengokrê. No final do encontro, após quatro dias e muitos debates, os povos indígenas deram um exemplo a todo Brasil durante a construção de um documento: o Manifesto do Piaraçu das lideranças indígenas e caciques do Brasil, também chamado de Carta de Piaraçu.
O encontro foi idealizado pelo líder Kayapó Raoni, ou Raoni Metukire, em seu idioma materno, que mesmo com quase noventa anos, insiste em convencer os homens a repensarem a ocupação do planeta. “Não vou desistir, vou continuar até quando o meu corpo resistir. Se o homem branco insistir em cortar floresta, fazer barragem em rio, garimpo e destruir tudo, vou continuar aqui, lutando”, disse ele à agência Amazônia Real. Raoni respondeu às indagações da reportagem com uma resolução que, por trás de sua pintura tradicional, camufla o peso da idade.
Os olhos lacrimejam, não há mais a agilidade do guerreiro alto e esguio que começou a lutar pelo povo Kayapó nos anos de 1970, mas a sua determinação causa espanto. O líder permaneceu até o último momento de votação do documento, que envolveu discussões sobre os direitos das mulheres, o respeito aos jovens e, principalmente, como os povos indígenas vão enfrentar um grande desafio: as políticas anti-indígenas do atual governo brasileiro.
Os demais povos da floresta – representados pela filha do líder seringueiro e ambientalista Chico Mendes (1944-1988), Angela Mendes, que atua na coordenação do Comitê Chico Mendes -, também participaram das discussões do documento.
“Desde o ano passado percebemos que precisávamos nos unir, pois os tempos atuais pedem que estejamos todos juntos. Temos um governo literalmente fascista”, afirmou Angela, muito emocionada, após reencenar um momento protagonizado por seu o pai nos anos de 1980 ao se reunir com povos indígenas para firmar uma Aliança dos Povos da Floresta.
O encontro na terra indígena Kayapó foi um sucesso. Eram esperadas 450 pessoas, mas o evento reuniu 600 participantes. Alguns convidados – e mais de 200 visitantes extras, bem recebidos -, viajaram por até cinco dias, dormiram em barracas, redes e em alojamentos improvisados para atender o chamado de Raoni. A grande maioria das pessoas era indígenas, somados a jornalistas nacionais e internacionais, e amigos de longa data do cacique.
O clima era de alegria, com os representantes de 45 povos vestidos com as cores de suas culturas originais.
A reunião final, no centro da aldeia, com todas as lideranças e seus representantes que participaram da luta pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988, foi um dos momentos mais emocionantes.
As discussões do evento apontaram o governo do presidente Jair Bolsonaro como um dos principais inimigos dos povos indígenas hoje.
“Queríamos que a Funai (Fundação Nacional do Índio) voltasse aos bons tempos. Estivesse fortalecida e com estrutura para ajudar os povos indígenas como nos tempos de Olímpio Serra, Sidney Possuelo, Claudio Romero e os outros presidentes que realmente pensavam nos povos indígenas”, conta Megaron Txucarramãe, tradutor, sobrinho e cotado para ser um dos possíveis sucessores de Raoni.
O retorno ao Xingu
Em sua casa, Megaron explicou como a trajetória de Raoni forjou o líder atual. “Crescemos no Xingu. O povo Kayapó fez parte da diáspora dos povos que perderam o seu território com a abertura das estradas que cortaram a Amazônia a partir da década de 1950. Fomos levados para lá e por lá ficamos um tempo, até que decidimos voltar aqui para às margens do Xingu”, diz.
Raoni nasceu na aldeia Krajmopyjakare, hoje chamada Kapôt – filho do líder Umoro, uma grande liderança de seu povo. Apesar de só conhecer o “homem branco”, em 1954, seu povo já sofria há décadas com os ataques.
“Não gostei quando conheci o homem branco. Tive medo, minha avó, de quem herdei o meu nome, sempre contava das histórias de ataques e mortes. Eles (brancos) no encurralaram aqui. Antes nosso povo andava por tudo. Goiás, Tocantins, até beira do Rio de Janeiro era nosso território de andar e migrar. Agora, só conseguimos mudar um pouco aqui em nossa terra”, conta Tuíra Kayapó, prima consanguínea, mas ao mesmo tempo neta de Raoni, segundo a estrutura de parentesco dos Kayapó.
O evento na Terra Indígena Capoto Jarina foi marcado de simbolismo. Além de um documento conciso, o encontro promoveu o diálogo entre os povos de todas as regiões do país.
“Cresci com Raoni no Xingu, e vou estar sempre ao lado dele. Nossa luta é igual, pelo território e cultura do povo indígena”, explica Afukaka Kuikuro, um dos grandes líderes do Parque Nacional do Xingu, uma das maiores terras indígenas do país.
“Precisamos nos unir não só para defender território, mas para cuidar que os jovens tenham orgulho de ser indígenas e vejam futuro dentro de nossa cultura”, conclui o líder xinguano.
O encontro também resgatou a visibilidade de lideranças Kaypó históricas. É o caso de Paulinho Paikan, voz atuante entre seu povo no contexto político. “Não vou me calar quando for para defender a natureza. Esse é o meu direito a vida e as ameaças cresceram muito”, disse.
“Pensei muito sobre isso tudo que tem nos cercado. Cheguei à conclusão que a soja é a ilusão do dinheiro. A dependência do dinheiro é algo que não tem fim, não se esgota; se entrarmos nesse caminho vamos nos devorar, não terá fim”, explicou Paulinho Paiakan.
Ameaças vizinhas
Capoto Jarina é um exemplo dos novos tempos entre os Kayapó. A terra indígena é cortada por uma estrada por onde trafegam inúmeras carretas de soja e gado. A estrada é o marco físico de dois territórios indígenas, o mundo Kayapó e o Parque Nacional do Xingu, mas em ambos os lados é possível perceber o quanto a floresta já sucumbiu ao corte de madeira. Uma franja de floresta rala e cercada do “mato-bravo”, trepadeira espinhosa também conhecida como “juquira”, toma conta do horizonte em ambos os lados.
No passado, conforme lembra Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), os próprios Kayapó chegaram a se envolver com corte de madeira e com garimpo, atividade que causava divisão entre eles. Santilli é reconhecido por sua atuação no indigenismo brasileiro, e foi presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) de 1995 a 1996.
“Por um tempo, os Kayapó estiveram envolvidos com o corte de madeira e garimpo, ainda nos anos de 1990. Eu me desentendi com muitas lideranças daqui para tentar mudar o pensamento deles. Mas Raoni nunca apoiou essa conduta e sua postura foi fundamental para que passassem a evitar o assédio do homem branco sobre suas riquezas”, contou.
No Encontro na aldeia Piaraçu, Santilli contribuiu repassando informações aos indígenas sobre as atuais propostas do governo federal que envolvem o arrendamento de terras indígenas para não-indígenas e a regulamentação da mineração, na qual um dos pontos mais controversos é a proposta do governo de não dar poder de veto aos povos indígenas.
Jovens lideranças e o futuro
A formação de jovens lideranças também se mostrou um tema crucial para o futuro. As filhas de Paulinho Paiakan são exemplos desse novo modo de vida indígena.
“Meu pai lutou muito para estudarmos, chegou a se desentender com os familiares, mas nós conseguimos. Minhas irmãs são enfermeiras, eu sou advogada e todas nós estudamos inglês. Sempre participamos do movimento indígena”, explica O.é Paiakan Kayapó, que é vista como uma liderança pelo próprio Raoni.
“Precisamos dos jovens para manter a nossa luta. Eles são fundamentais”, afirma Aritana Yalapiti, um dos caciques xinguanos presentes à reunião. “Raoni, desde muito cedo, sempre foi esse líder, os jovens precisam buscar essa postura”, afirma.
A sucessão de Raoni também terá a presença feminina
A delicada questão da sucessão do cacique Kayapó, é um tema pouco discutido. Nas terras indígenas poucos se habilitam a se candidatarem ou lutar pelo reconhecimento necessário para tornarem-se uma liderança.
Pai de dez filhos, Raoni perdeu em dois acidentes os herdeiros naturais. Seu primogênito morreu em um acidente pouco esclarecido nos anos de 1990, quando seu povo ainda vivia no Parque Nacional do Xingu. Após o incidente, Raoni migrou para dentro do território Kayapó, abandonando de vez o local para onde foram levados pelos sertanistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas, à época do contato, em 1954.
A aldeia de Raoni é tão reservada quanto a possibilidade de manter um contato mais próximo com ele. Apesar de ser uma figura pública, Raoni é quase sempre esquivo ao assédio de quem o admira. A aldeia isolada é uma proteção ao cacique. O único caminho é o rio Xingu em uma viagem de mais de duas horas. Foi para lá que ele convidou o seu sobrinho Bepkmro Metuktire – e atual tradutor – para morar.
“Ele já expôs o seu desejo de me transmitir a liderança e pediu para eu estudar e me preparar”, explica Bepkamro, ou Ta-ú como é conhecido.
Bepkamro é vice-presidente do Instituto Raoni, a associação que o povo Kayapó utiliza para captar recursos para projetos de economia sustentável, como atividades agroflorestais nas aldeias e para fazer eventos como os dessa semana. O cargo é outro símbolo de proximidade com Raoni. Antes dele, o segundo filho do cacique, Tedje Metukitire, falecido em um acidente de carro em 2004, ocupava o cargo.
Mas a sucessão do cacique para as lutas futuras também envolverá uma figura feminina, com já anunciou o próprio Raoni, quebrando a tradição de transmissão da chefia apenas aos homens. O nome dessa figura segue sem ser definido.
Hoje, a mulher mais respeitada entre os Kayapó é Tuíra Kayapó. Para ela, a figura de Raoni foi fundamental para tornar-se uma líder. “Desde jovem ele sempre vem lutando, e me vez ver o sonho da luta e segui-lo, mas a liderança é dos jovens. Daqui em diante nosso futuro está com as jovens mulheres”, explicou.
Militância pacífica
Enquanto não há ainda a previsão de um sucessor, o cacique viaja para repetir a mesma mensagem em inúmeras entrevistas e discursos. “Enquanto o indígena tiver ameaçado, eu vou pedir a paz”, ressalta Raoni.
O início de sua cruzada envolveu encontros com vários presidentes brasileiros e estrangeiros. O primeiro deles foi Juscelino Kubitschek, nos anos 1950, e o último foi o francês Emanuel Macron, em 2019. Raoni apenas não se encontrou ainda com o atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, com quem vive uma história mútua de aversão.
O discurso anti-indígena do presidente foi uma das razões do sucesso do encontro na Aldeia Piaraçu. O documento pode ser considerado símbolo da resistência indígena e dos povos tradicionais contra velhos inimigos dessas nações, como na abertura de novas áreas de floresta, a mineração e a disputa pela terra.
“Essa reunião não veio para fazermos guerra. Estamos unidos para defender o povo e a terra. Quero que todo mundo respeite os indígenas e nos deixe viver paz”, concluiu Raoni, que na semana que vem estará em Oxford, no Reino Unido, em um seminário sobre meio ambiente e direitos sociais.
Em 2019, Raoni foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 2020, mas, em Oslo, na sede do conselho do Nobel, a expectativa era de que o comitê de avaliação incluísse o nome do líder indígena ainda no passado. E foi incluído. Ele e a ativista Greta Thunberg “disputaram” a honraria, mas quem ganhou o primeiro-ministro da Etiópia e a indicação de Raoni, feita pelo Instituto Darcy Ribeiro, permanece em 2020 (este texto foi editado pela redação do Conexão Planeta para incluir outras informações).