A alma e o jeito do poeta nunca abandonam o proseador. Seus textos são fotografias, fragmentos, frases que, ao parecerem soltas, prendem a história, arrematam tudo lá na frente. O tal Beco Afro “são duas carreiras de barracos enfileirados num longo corredor sem saída. no final, uma praça. uma armadilha rastafári”
Lembro bem, era começo dos anos 80. Fausto José passava pelos corredores da antiga Faculdade de Comunicação de Santos e arrancava suspiros. Era um dos dois únicos negros que estudavam por lá na época. Alto, com andar de malandro, porte atlético e terrivelmente simpático, como se não bastasse ainda era (e é até hoje) poeta.
Eu, filho de vendedor com dona de casa, morava com muito custo no bairro do Boqueirão, em Santos (SP), um local classe média, próximo da praia. Numa manhã de sábado, o Fausto passava por lá, provavelmente pra ir me visitar, quando uma viatura da polícia o parou e prendeu. A vizinha havia visto ele passar e, imediatamente, o acusou de um roubo no seu comércio.
Por um daqueles golpes do destino, a Dona Mila, minha mãe, passava e viu a confusão. Imediatamente se colocou aos gritos e arrancou o Fausto de dentro da viatura. Ela se dirigiu ao policial, perplexo diante daquela dona de casa franzina, e disse: “Este menino é amigo do meu filho, estudante de jornalismo e nunca roubou nada de ninguém”. Passou uma descompostura na vizinha racista e trouxe o Fausto para a nossa casa.
Naquele dia, nunca esqueci, nos olhamos entre orgulhosos com a mãe e indignados com o racismo da vizinha corroborado pela polícia. E nos tornamos um tanto mais irmãos, protegidos pela mesma figura materna.
Anos mais tarde, no dia da morte da minha mãe, o Fausto, que estava longe, me ligou e a única coisa que conseguiu balbuciar em prantos foi: “A nossa Mila!”.
Este nariz de cera é só pra contar que, décadas mais tarde, neste mês de agosto, ainda em Santos, encontro na caixa do correio um pacote vindo do Distrito Federal com um livro dentro. Constato emocionado que é um exemplar de “Beco Afro – Ficção Quilombola Urbana”, de Fausto José.
Sobrevoo o livro, com ótima capa de Osvaldo da Costa, em impressão simples, e leio uma sequência de textos lindos, ora em versos, ora em prosa. São palavras repletas da sabedoria acumulada por uma vida a sofrer e observar atitudes racistas, como aquela de tantos anos antes. E outras tantas muito piores.
A alma e o jeito do poeta não abandonam o proseador. Seus textos são fotografias, fragmentos, frases que, ao parecerem soltas, prendem a história, arrematam tudo lá na frente. O tal Beco Afro, como o próprio autor avisa, “são duas carreiras de barracos enfileirados num longo corredor sem saída. no final, uma praça. uma armadilha rastafári”, tudo assim mesmo, em letras miúdas que o corretor insiste em querer mudar, mas que a vida de seus personagens persiste em se apresentar. “um pedacinho d’áfrica no coração de cada brasileiro”.
A ironia das minúsculas, no entanto, se mostra cada vez maior à medida do texto e seus heróis, expandindo enormes em uma quase “utopia criada por uma mulher negra, mãe solteira, regueira, filha de santo, pandeirista, bandida… uma heroína”.
Poderia falar dias do Fausto e seu livro, da vontade de abraçar a Iris, ver suas meninas crescidas, beijar o neto deles e, sobretudo, contar do orgulho que tive ao ler o Beco Afro.
Tomara que não tarde. Enquanto isso não se dá, compartilho com vocês. Fica aqui, ó: https://www.facebook.com/becoafro/.
Tenho certeza que ele, como sempre, vai abrir pra vocês todas as portas e janelas da sua vida e sorrir feliz.