Apublicação do livro “Guerras híbridas – das revoluções coloridas aos golpes” (Expressão Popular) no Brasil, de Andrew Korybko, caiu como uma luva – ou como uma bomba? – em amplos setores da esquerda brasileira que, confiantes no triunfo eterno da “normalidade” e na vitória do então candidato Fernando Haddad, procuravam uma fórmula mágica para compreender sua derrota. À medida que foi se massificando, no entanto, o termo deixou de descrever um conjunto de estratégias e táticas específicas, se transformando em uma frase da moda que descreve uma quase-entidade com braços invisíveis e impossível de vencer. O alarmismo e o desespero foram de tal tamanho que, numa espécie de “meta-resposta”, há até quem defenda que se deva responder à guerra híbrida precisamente nos mesmos termos em que o inimigo a opera (ou acham que ele opera).
Um termo novo para coisas velhas
Aqueles mais acostumados com os estudos militares sabem que há neste campo uma miscelânea de termos que por vezes descrevem fenômenos de maneira muito abstrata (“terrorismo” é um exemplo) e noutras descrevem velhos fenômenos de maneira nova (“Fourth Generation Warfare” – “Guerra de Quarta Geração”). Em outros casos, um termo extremamente específico começa a se degenerar para abarcar novos conflitos. Todos estes, em certa medida, parecem ser o caso da “guerra híbrida”.
Nas academias militares há uma ampla discussão sobre o termo. Alguns apontam que seu caráter abstrato faz com que, em verdade, ele não descreva absolutamente nada. Outros dizem que o termo não tem nada de novo, e que a Guerra Total de Luddendorff já é capaz de abarcar os fenômenos sobre os quais ele busca tratar [1].
O que importa saber neste caso é que a terminologia militar, apesar de tudo, também é subjugada à ideologia e aos momentos. “Terrorismo” já foi usado para descrever guerrilhas, insurgências e até mesmo manifestações civis violentas (lembremos que os acontecimentos da Revolta de Haymarket foram descritos na época como “terroristas”, bem como foi a guerrilha urbana no Brasil.) Não é por acaso que, nas discussões sobre guerra híbrida, seja comum que o exemplo Hezbollah-Irã seja usado, bem como Donbass-Rússia. Mais do que perguntar o que o termo descreve, deveríamos perguntar também quem o usa para descrever.
De qualquer maneira, a guerra híbrida seria aquela guerra em que uma força militar convencional (exércitos nacionais, por exemplo) é usada em conjunto com forças irregulares (unidades guerrilheiras, grupos insurgentes, partidos, organizações religiosas) e táticas de ciberguerra. Além disso, as guerras híbridas seriam guerras não-lineares, no sentido de que, nesta guerra, os dois lados não têm necessariamente um plano estratégico bem definido. Por fim, elas abarcariam também uma série de táticas com fins de dissolução psicológica, social, econômica e política, que se moveriam e adaptariam rapidamente, focando no campo da guerra convencional, na população local e na arena internacional. Esticando o termo, organizações como a OTAN falam em “ameaças híbridas”, recorrentemente citando a existência da agência russa de notícias Russia Today como um exemplo.
“A confusão e a desordem acontecem quando a informação armada exacerba a percepção de insegurança na população, à medida que as identidades políticas, sociais e culturais são contrapostas umas às outras”, escreve Joshua Stowell, editor do Global Security Review.
Alex Deep, no Small Wars Journal, nota que o termo poderia muito bem descrever a Guerra da Independência dos EUA (1776), as Guerras Napoleônicas (1803-1815), e a Revolta Árabe (1916-1918). Como o Dr. Damien Van Puyvelde descreve em um artigo no site da OTAN, “na prática, qualquer ameaça pode ser híbrida, desde que não esteja limitada a uma única forma e dimensão de guerra. Quando qualquer ameaça ou uso de força é definido como híbrido, o termo perde seu valor e causa confusão em vez de esclarecer a ‘realidade’ da guerra moderna.” E chegamos, enfim, aos pontos cruciais.
Em busca de culpados
Antes de tudo, é um tanto complicado definir uma plataforma de campanha presidencial como uma unidade de guerra híbrida. Isto porque, não havendo unidades regulares ou irregulares efetivamente em guerra, o que se está descrevendo são somente operações psicológicas, sociais, políticas e informacionais que se definem dentro da política, não da guerra – a guerra híbrida é a guerra com aspectos psicológicos/políticos, não uma disputa política com aspectos… políticos e psicológicos.[2] Dizer que o então candidato à presidência usou “táticas psicológicas” só descreve o uso de táticas psicológicas – não uma guerra híbrida. Dizer que ele se beneficiou de operações de falsa bandeira só descreve operações de falsa bandeira, não uma guerra híbrida. Por fim, poderia-se notar que essas táticas tomadas em conjunto tem um aspecto de hibridismo, portanto se aproximando da guerra híbrida. Mas não tem toda ação política também um aspecto de hibridismo?
Se houve durante as eleições de 2018 uma “guerra híbrida”, é preciso definir ademais quem são seus mandantes, atores e alvos. Qual foi a estrutura capaz de operacionalizar táticas diversas, em múltiplas frentes? Quem foi o ator capaz de financiá-las? Seria o Brasil um alvo – e então é um alvo contínuo – ou somente uma parcela dos eleitores ou até mesmo um candidato? O Exército serviu como unidade regular? Houve financiamento ou operacionalização estrangeira? São perguntas que quem se mete a pensar em estratégia, adotando a última novidade que apareceu, deve se fazer antes de tudo.
Ainda que eu seja reticente em usar o termo “guerra híbrida” – por entender que normalmente ele é usado mais como uma “explicação vinda dos céus” para fenômenos políticos do que como uma análise estratégica das ações do inimigo – há algumas considerações a se fazer:
1 – A campanha de Jair Bolsonaro de fato foi impulsionada por uma série de fenômenos político-psicológicos inexistentes ou pouco relevantes no Brasil pré-2016. Dentre eles: a) o triunfo do antipetismo (já estimulado pela imprensa desde a primeira eleição de Lula e reforçado com a perseguição do Judiciário); b) a ovação de um tipo de moralismo em busca de uma “moralidade” brasileira, em contraponto a uma suposta dissolução total da moral da Nação (globalização, políticas afirmativas, “progressismo” nos costumes). Esses fatores foram bem explorados pelo candidato, que construiu ao longo de anos – não de semanas [3] – uma imagem compatível com essas demandas.
2 – O uso massivo de tecnologias “não-convencionais” (em relação às campanhas de então): a) mensagens disparadas em massa por Whatsapp, em grupos filtrados por tema, região e público; b) uso massivo de bots (robôs) nas redes sociais, que passavam a moldar a discussão e a percepção do público; c) uso de uma infinitude de blogs e vídeos “novos”, alinhados por camadas ao discurso da campanha (alguns mais alinhados, outros menos, para o gosto de toda a freguesia).
3 – A adoção de uma estratégia política e de marketing muito flexível, que se traduziu em táticas audaciosas demais para o candidato comum: a) não-participação nos debates (“se no debate vou mal, simplesmente não vou”); b) “sinceridade” no trato de questões espinhosas (“quem comandará a economia é Paulo Guedes, não sei nada de economia”); c) a aliança com setores que podem acabar tendo mais poder do que o próprio presidente, mas que foram seus garantidores frente aos seus inimigos (os militares, por exemplo).
4 – A aproximação com uma concepção mais real, concreta e definida de política, em que o candidato: a) tratou seus inimigos como inimigos, não como “rivais” ; b) buscou se diferenciar de seus inimigos em todos os sentidos, falando de maneira mais aberta e menos “contida”; c) buscou consolidar sua posição nas bases que poderiam lhe elevar, ao mesmo tempo em que atacava e estimulava os ataques (ainda que meramente verbais, por vezes efetivamente físicos) às bases do inimigo.
Enfim, ao que interessa: como vencer a “guerra híbrida”?
Creio que o capítulo anterior tenha bastado para demonstrar que a formulação de que a esquerda “deve se adaptar à guerra híbrida” ou “tem que aprender a usar Whatsapp” não passe de uma estupidez infantil proferida por impressionados desnorteados. Podemos nós contar com que o Judiciário e a mídia, numa aliança demoníaca, abram o caminho para que nossas posições mais radicais se tornem mundanas e agradem? Temos recursos suficientes para criar redes complexas de disparo de mensagens, blogs, bots? Podemos ter o favor da burguesia e de suas instituições, sejam militares ou juízes? Não. Assim, a tão denunciada “guerra híbrida” se torna uma meta-operação psicológica: reconhecendo-a em todo o ar, pensamos que só dela podemos continuar vivendo; medimos o mundo pela régua do inimigo e, já que sua métrica não nos serve, mais uma vez nos tornamos imóveis. Ela toma nossas mentes ao ponto de não conseguimos pensar em alternativas que não aquelas já oferecidas – e que, já estando oferecidas pelo inimigo, não são alternativas. É possível se eleger como presidente numa plataforma reacionária se negando a falar em público – seria possível mudar os rumos do país sem apresentarmos nossas ideias muito bem ao povo?
Felizmente, há alternativa. Para vencer a “guerra híbrida” não podemos ser “combatentes da guerra híbrida.” Se o inimigo conta com fortes bases que a permitem expandir suas operações psicológicas – o que ocorreria se alguém tentasse impugnar a chapa do presidente, que tinha como vice um general? – devemos nós também, antes de tudo, buscar consolidar as nossas bases. Se o inimigo busca a dissolução social e psicológica do povo via Whatsapp, devemos responder criando coesão e reunindo, esclarecendo o povo quanto às mentiras proferidas. Se o inimigo se comunica “sem rosto”, abstratamente e à distância, devemos dar nossa cara ao tapa do povo, com proximidade, denunciando o inimigo – ele nunca pisará nas vielas de barro em que pisas. Não se constrói hegemonia tentando assaltar e incendiar uma das torres do inimigo; primeiro se constrói sua própria, e ela avança; na retaguarda se fortifica a mais fraca, e elas avançam; depois outras, e todas avançam. Aumentar e resguardar as nossas forças é a chave para a sobrevivência. A lógica da guerra é a da conservação das próprias forças e o enfraquecimento das do inimigo.
Se a chamada guerra híbrida tem um alcance ilimitado, e se busca criar confusão e dissolução social, não é “competindo” com o inimigo nos mesmos termos que responderemos, inclusive porque se o fizermos, estaremos colaborando com a confusão e dissolução social. É preciso buscar neutralizá-lo aos poucos, tomando para nós nossas vantagens e jogando em sua conta os ônus. Se é uma vantagem estratégica que ele tenha alcance ilimitado, e uma desvantagem que esse alcance seja feito à distância, portanto tendo menos peso, não se pode adotar outra linha estratégica que não abdicar do alcance ilimitado para alcançar seus alvos por proximidade, com uma linha clara – em contraponto à confusão – e com núcleos coesos – em contraponto à dissolução.
Aquele que quer lutar contra a “guerra híbrida” deve buscar, portanto:
1 – Priorizar a consolidação de bases que lhe sirvam ao delineamento estratégico geral, em contraponto a outras frentes (se somos alvo de uma guerra híbrida, é mais importante ter força concreta em bases bem organizadas do que conseguir muitos votos na próxima eleição).
2 – Buscar criar coesão nestas bases, criando ambientes físicos – ainda que possam ser organizadas com ferramentas tecnológicas. Criar coesão é criar relações de proximidade social, de confiança, de camaradagem, que mesmo em caso de discordâncias políticas em determinados casos, se mantêm. É mais importante assegurar que sua família ou seus vizinhos te respeitem, entendam suas ideias, e estejam prontos para lhe defender do que, de São Paulo, disparar mensagens por Whatsapp para Camaçari. É ainda mais importante organizá-los.
3 – Priorizar, no trabalho de agitação e propaganda, aquele tipo de trabalho que busque as bases – em contraponto a trabalhos que busquem simplesmente “esticar a corda” com o governo, por exemplo, ou aos trabalhos que busquem criar “base eleitoral” ou “mudar a opinião” das pessoas abstratamente. O foco é criar unidades coesas e organizadas.
Das lições da chamada “guerra híbrida” de Bolsonaro, só podemos beber de uma: aquela que diz respeito a uma concepção real e concreta da política – portanto, precisamente aquela que mais se distancia da lógica da “guerra híbrida” e, ironicamente, aquela com a qual Bolsonaro pessoalmente mais teve problemas, tendo de pedir socorro a outros atores. Nosso inimigo deve ser nosso inimigo; devemos nos diferenciar abertamente dele. Os braços invisíveis e cibernéticos podem destruir uma sociedade e confundir seu povo, mas não podem construir um novo País. Não tendo a mesma moral do inimigo, não podemos adotar sua estratégia, nem buscar suas bases. Não podendo contar com as mesmas bases, não podemos se inspirar em sua estratégia, nem responder mecanicamente bebendo de sua moral. A guerra é um confronto mortífero. A política é um conflito pacífico. Nenhuma delas é um concurso.
Notas:
[1] – A Guerra Total, descrita pelo general prussiano Erich Friedrich Wilhelm Ludendorff em 1936, se refere a um conflito em que o campo militar não é mais a única plataforma da guerra. A população, a propaganda, as linhas de comunicação civis, a logística civil, a alimentação; todos seriam também campos de batalha.
[2] – Me chama atenção que, talvez este termo só tenha se popularizado porque a campanha de Jair Bolsonaro à presidência se aproximou mais de um pensamento estratégico-militar do que poderiam seus concorrentes, envolvidos por completo no discurso liberal-democrático da política como “busca de consenso”, onde há no máximo “rivais” e nunca inimigos. Não é a política por excelência política, e não tem ela também, por excelência, aspectos psicológicos? Mas bastou que um candidato fosse um pouco mais realista para que os sensíveis se pertubassem, logo imaginando uma “guerra” por Whatsapp. O cheiro da pólvora é muito mais forte do que os memes das redes sociais, senhores; se tranquilizem.
[3] – Não foi um “vira-voto” bolsonarista que o levou à presidência, lembremos.
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