O Trabalhador, o Político e o Jornalista

Reforma da Previdência: “Para os trabalhadores, isso significa o aumento da idade mínima e do tempo de contribuição para uma aposentadoria com salário mais baixo, para os políticos, é mais um passo para a privatização do Estado”. Imagem: Pixabay.

Por Julia Andrade, para Desacato. info.

“De volta aqui ao jornal da CBN, temos a oportunidade de conversar agora com o senador Esperidião Amin, senador pelo estado de Santa Catarina, integrante da comissão especial da previdência do Senado. É para lá que o texto que for aprovado na Câmara dos Deputados vai, para tramitar depois no Senado, onde terá de passar também por duas votações…”

O aroma de café daquela manhã de quinta-feira se mistura com o odor forte de peixe vindo do mercado público. Por volta das oito da manhã do dia onze de julho, o comércio começa a agitar e alguns trabalhadores, que já estão há horas acordados, se juntam em volta de um rádio velho. Ouvem sempre os mesmos programas e, desta vez, é uma entrevista da CBN com o senador Esperidião Amin, um velho político, branco e empresário, que persiste, desde 1975, no governo catarinense.

O tema do programa é: Reforma da Previdência. Prestes a ser aprovada, para combater os supostos déficits da previdência social, a proposta já de longa data vem sendo fortemente divulgada pela imprensa. Para os trabalhadores, isso significa o aumento da idade mínima e do tempo de contribuição para uma aposentadoria com salário mais baixo, para os políticos, é mais um passo para a privatização do Estado. Pelas informações divulgadas, a Reforma da Previdência é mais uma das medidas do governo para acabar com os ditos privilégios.

Enquanto o senador fala sobre a Reforma, o locutor de rádio mantém sua postura atenta. Está no estúdio desde as seis da manhã, e mesmo depois de um café forte, a cada palavra do velho político, vem junto uma vontade absurda de bocejar. Arruma a gravata e disfarça com um sorrisinho. Acorda cara! Lembra do texto, das perguntas! Todas as perguntas prontas, entregues assim que ele chegou no estúdio. “Texto feito, emprego estável e profissional” vai repetindo para si mesmo, até que consegue focar na entrevista, e a voz desanimada do senador Amin se torna quase agradável.

Logo que começa o programa, uma discussão surge na rua. No meio do grupo que se reunira para ouvir ao rádio, João, que trabalha numa lanchonete no centro da cidade, conta para todos o que ouviu falar sobre a Reforma: “Agora que a medicina tá melhor, o pessoal vive mais e pode trabalhar mais. É muita gente aposentada e por isso essa crise toda, com esse bando de jovem desempregado. Essa reforma tá vindo para ajudar todo mundo e, ainda, acabar com os privilégios.”

Uns que já sabiam sobre a Reforma, outros que só tinham escutado as palavras de passagem; a maioria confirma o que João fala. O que faz Roberto, um vendedor ambulante que ouvia a conversa de longe, intervir no meio de tanto argumento absurdo: “Essa tal de Reforma”, diz ele se metendo no grupo, “é só mais uma forma de explorarem os pobres. Quem é rico mesmo nunca nem trabalhou e vão ser os primeiros a se aposentar. Essa história de acabar com os privilégios é tudo mentira para o povo não se revoltar. O governo não quer ajudar com a aposentadoria de ninguém, e se essa reforma passar, vai todo mundo aqui morrer trabalhando antes de ter o direito de se aposentar.”

Silêncio. Foi só falar nessa ideia de trabalhar até morrer que todo mundo ficou mudo, com medo. Estabilidade; se tem algo em comum entre todos os trabalhadores é a preocupação do que para alguns é o bem-estar e, para outros, a sobrevivência. Ninguém ali pensava em aposentadoria, pensava só no amanhã, em sustentar a família naquele mês ou, no máximo, naquele ano. Mas depois que Roberto se manifesta, a preocupação é geral. Naquele silencio tão anormal para o grupo, cada um pensa no seu desejo de envelhecer junto da família, com um dinheirinho a mais de segurança e no descanso merecido despois de tantos anos trabalhando.

João é um cara muito informado, sabe? Sempre ouvindo as notícias do rádio, da TV… E mesmo assim, ele se sente um tanso, um desinformado. João é quem mais conhece aquelas ruas, já panfletou para tudo que é loja, trabalhou para tudo que é gente, se preocupou sempre com o jantar da família, com a saúde dos filhos e, agora, tem que se preocupar também com sua aposentadoria? Para que isso tudo? Por que querem tirar o dinheiro deles, que nem conseguem comprar um rádio novo? Ele olha para os amigos e se sente consolado. Todos traídos e ouvindo a esses programas mentirosos. João fica puto. Se aquele rádio fosse seu, já tinha jogado longe.

Mas como todos permaneceram parados, escutam a voz, agora animada e confiante, do senador Espiridião Amin fazendo suas considerações finais: “Eu quero estender meu agradecimento à vocês e aos seus colegas de todos os meios de comunicação e veículos que fizeram plantão esse tempo todo e estão trabalhando no mínimo mais do que os próprios parlamentares nesse assunto (risadas do jornalista constrangido). Parabéns a todos e acho que esse é um grande momento para a democracia, para o estado de direito e para a representação política nacional. Grande abraço.”

Jornalista e político, escancaradamente, lado a lado. De um lado, todos os interesses da burguesia escondidos no sorriso torto e no aperto de mão que fazem grandes promessas, nunca cumpridas. Do outro, um porta voz de empresários guiado pelo senso comum de uma sociedade que lhe parece justa, se esforçando dia e noite para manter-se como máquina, objetivo e imparcial.

Sobre o agradecimento, o que foi aquilo? O jornalista é tomado de surpresa e fica até constrangido. Que coragem desse político, escancarar a relação dos dois daquela forma. Sim, eles se ajudavam, mas o Amin fez parecer que seu trabalho era comprado. Não é esta sua intenção, o jornalista quer apenas instruir a população para estarem a par dos acontecimentos e se inserirem na sociedade. Sim, é tudo legítimo; e mesmo o que não for, um profissional deve fazer o que precisa pelo bem das relações com os políticos e pelo financiamento que vai lhe pagar o salário.

Discretamente, os dois trocam olhares; assim, controlam um ao outro, não permitindo nenhum deslize ou questionamento sobre o trabalho sendo feito. Conformam-se um com o outro e confirmam suas ideologias. Os dois estão juntos, mas vivem em mundos diferentes. Enquanto o político vai embora orgulhoso, com seu motorista particular, o Jornalista anda até o terminal, onde espera seu busão chegar.

Sentado, o jornalista. Em pé, de frente para ele, conversam João, Roberto e todos os outros que estavam ouvindo ao rádio.

“Taí, o jogo dos dois se abriu para todo mundo, não foi?”, fala Roberto, “Eles devem pensar que somos tudo uns idiotas para acreditar nas suas baboseiras. Na TV e no rádio só se ouve a visão dos políticos, mas quem vêm aqui falar com a gente, quem vêm perguntar o que a gente acha disso? Pra quem não sabe, o Amin já tem a aposentadoria, e faz é tempo. São vários como ele, são vários empresários endividados que nem sequer pagam seus impostos. Enquanto o povo paga por tudo e agora vai ter que pagar sozinho pela aposentadoria também.”

Um depois do outro vão se levantando: “Esses jornalistas são uns mesquinhos né, fazendo acordo com político pra se beneficiar.” “Quando vão fazer matéria com pobre, só mostram caridade e se fazem de bonzinho.” “Quando mostram isso até que é bom né, porque na maioria das vezes só mostram bandido, como se todo mundo fosse traficante.” “Mas eles são uns idiotas, ou o que? Tipo, não são políticos nem empresários, esqueceram que também precisam se aposentar?”

O resto da conversa, o jornalista não ouviu. Chegou seu ônibus e ele foi pegar um lugar. Sim, ele fazia tudo que mandavam. Seguia um roteiro, fazia propagandas e até nas piadas do rádio tinha que cuidar para não ofender alguém de cargo importante. Claro que ele não falava o que pensava, pois isso não seria imparcial e, logo, não seria o justo, certo?

Mas ver aquele grupo conversando… Era para essa gente que ele fazia suas notícias. Sempre se preocupa tanto com a opinião dos políticos, mas é esse povo que está lhe ouvindo. Esse povo que quer se aposentar.

Ignorar seu público foi preciso, mas no momento que o fez, sua profissão perdeu todo o sentido. Gilberto se vê no reflexo da janela; um homem nos seus 50 anos. Trabalha desde os 18 anos e como jornalista desde os 24. No desenrolar da vida moldou-se completamente para se encaixar nos padrões do mercado de trabalho do jornalismo. De vez em quando, no meio de uma notícia, Gilberto ainda lembra que é gente, com ideia e com vontade, que já trabalhou demais nessa vida e que logo também quer se aposentar.

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Julia Andrade é estudante secundarista.

1 COMENTÁRIO

  1. Nossa a matéria mostra o dia a dia da classe trabalhadora e lados opostos de cada um. Muito boa percepção. Parabéns adorei a matéria.

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