Por Luís Eduardo Gomes.
A primeira vez que a Prefeitura realizou uma reintegração de posse do imóvel abandonado há 12 anos na esquina das ruas Baronesa do Gravataí e 17 de junho foi no início de junho, pouco mais de dois meses depois de um grupo de dez famílias ocupar o local. Sem ter para onde ir e com a forte queda na temperatura em Porto Alegre, as famílias voltaram a ocupar o prédio. No dia 10 de julho, mais uma desocupação. Mas cinco famílias seguiam sem ter para onde ir. Retornaram então para a calçada, onde montaram acampamento na quarta-feira (17). Na madrugada de quinta-feira (18), duas patrolas foram ao local para derrubar do casarão. Em poucas horas, apenas escombros restavam do prédio construído em 1926. Ainda sem ter para onde ir, voltaram ao local no final da tarde, acenderam uma fogueira ao lado dos escombros e se preparam, com um grupo de apoiadores, para passar noite ali.
“Resolvemos fazer a resistência em cima da terra. Reocupamos o terreno pra disputar a terra. As famílias querem permanecer juntas, pois se formou uma comunidade. O projeto da Ocupação Baronesa envolve a questão do pertencimento”, disse Alice de Oliveira Martins, representante do movimento que organiza a ocupação, na noite desta quinta. A história da região da Baronesa do Gravataí é marcada por uma ocupação por escravos libertos a partir do século XIX e, posteriormente, por remoções das populações negras para outras áreas da cidade. “A nossa noite vai ser de muita vigília, muita resistência, porque o Estado, como demonstrou até agora, só sabe agir com muita violência e truculência”, complementou.
Alice conta que, durante a remoção da madrugada de quinta, a Guarda Municipal retirou as barracas e os colchões que compunham o acampamento montado na calçada diante do antigo prédio. O movimento decidiu que as crianças, algumas delas ainda em idade de colo, não deveriam passar a noite no local e foram levadas para a casa de apoiadores.
Após negociação durante a noite, a Guarda Municipal e a Brigada Militar acabaram permitindo que as famílias permanecessem no local. Na manhã desta sexta-feira (19), uma equipe da Guarda foi ao local para efetivar a retirada das famílias e dos apoiadores, o que foi concluído, sem conflitos, por volta das 9h. Alice questiona o fato de que não estavam presentes nem representantes da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), nem do Conselho Tutelar. Ela diz que as famílias irão fazer uma reunião ainda pela manhã para decidir para onde devem ir após a nova remoção.
Para onde ir?
Em nota divulgada na manhã de quinta, a Prefeitura disse que vem acompanhando a situação das famílias da Ocupação Baronesa e que ofereceram os serviços de abrigos, albergues e do Centro Pop, além da possibilidade do aluguel social. “Três famílias já estão usando o benefício em casa alugada. Uma vai ingressar na moradia no próximo mês, e três delas, a Fundação está aguardando a indicação do endereço do imóvel para o aluguel, que deve ser entregue por parte dos usuários para o pagamento. E três famílias não solicitaram o auxílio”, afirmou o Executivo.
Alice argumenta que as opções oferecidas pela Prefeitura não são realistas para as famílias. “O albergue separa as famílias. Os filhos ficam com a mãe e o pai vai dormir em outro espaço. Já o abrigo familiar não existe mais, foi fechado no mês passado. O aluguel social, leva-se de 40 a 60 dias para conseguir acessar e é um auxílio temporário. Para você locar qualquer imóvel em Porto Alegre, você precisa de caução ou fiador. O município não dá a caução. Você vai chegar no proprietário e dizer assim: ‘eu quero locar o seu imóvel, mas a Prefeitura só vai me repassar o dinheiro daqui a 40, 60 dias’. Isso não vai acontecer”, afirma.
Heloísa Helena, 49 anos, é uma das moradoras da ocupação que já sofreu com o aluguel social, com a falta de política habitacional e cuja família tem laços com a região da Cidade Baixa. Quando criança, morou na rua Joaquim Nabuco. Depois, em outras áreas próximas. Mãe de seis filhos, sendo que três a acompanham na Baronesa, ela está em sua quarta reintegração de posse no ano. A primeira foi da casa em que morava em uma ocupação na Rua Professor Freitas e Castro, no bairro Azenha, durante 8 anos, segundo conta. “Eu criei meus filhos praticamente todos ali. Criaram as suas famílias também”, diz.
O aluguel social foi a opção dada pela Prefeitura. Na ocasião, foi atrás. Tentou encaminhar a documentação junto ao Departamento Municipal de Habitação (Demhab), mas não conseguiu. “Eu fiz toda papelada e não foi aceita. Todo locatário quer ter um prazo”, diz. “A única coisa que consegui foi o Bolsa Família, que eu recebo um auxílio de R$ 90”.
Desempregada, Heloísa conta que, naquela ocupação, trabalhava vendendo artesanato, participando de oficinas e como diarista. Com a remoção, perdeu a renda. “Eles sempre vêm e tiram as esperanças da gente”. Conseguiu refúgio no prédio da Ocupação Baronesa, de onde seria removida pela segunda e terceira. A quarta foi a remoção da calçada. “Eles têm a força. Manipulam do jeito que eles querem e fazem com a força que eles têm. Não respeitam o indivíduo, não respeitam o ser humano. Não é só eu, tem filhos, tem famílias, tem mãe, tem pais, tem avós. Maridos e mulheres que estão construindo uma família, construindo uma vida, e simplesmente eles jogam no chão, que nem fizeram”, diz Heloísa, que não passou a noite junto aos escombros do casarão.
Alice diz que o movimento tinha a ideia de apresentar uma proposta para que a ocupação ficasse no prédio de forma permanente. Ela conta, inclusive, que um indicativo de que o prédio pudesse ser destinado para moradia havia sido dado em reunião com a Prefeitura realizada na última sexta-feira (12). Foram pegos de surpresa com a demolição. “A Guarda estar presente aqui era coisa de rotina. Aí veio a Brigada Militar, depois a Defesa Civil. Quando chegou a retroescavadeira eles já disseram que iam demolir o prédio e que, se a gente não saísse da calçada, eles iam passar por cima do acampamento e levar tudo junto”, relata.
A Prefeitura afirma que uma vistoria realizada por técnicos da Secretaria da Infraestrutura e Mobilidade e pela Defesa Civil, no dia 1° de julho, apontou que o teto do prédio e as estruturas internas apresentavam risco de desabamento. “A recomendação dos técnicos do Município foi a demolição dos imóveis, cercamento do terreno e indicação para permuta da área”, disse em nota.
Alice defende que o prédio estava em boas condições. Ela diz que, inclusive, pediram para um arquiteto apoiador fazer um laudo sobre as condições do prédio que apontou que era seguro. “A gente não vai sair por aí colocando pessoas em espaços não seguros”, diz. “No pensamento do governo, acham que vão nos travar e barrar a disputa que está sendo feita judicialmente. Não, não vai nos travar, a gente vai seguir, vamos continuar fazendo o enfrentamento”.
A avaliação dela é que o governo já tem encaminhado um comprador para o terreno e que por isso pressiona para que as famílias deixem o local o mais rápido possível. Alice argumenta que, inclusive, circula pelos movimentos sociais uma lista com 1,4 mil imóveis que pertencem ao poder público municipal e que a gestão Marchezan estaria interessada em alienar. O governo mandou recentemente um projeto para a Câmara dos Vereadores propondo a retirada da necessidade de aprovação pelos vereadores para a alienação de imóveis municipais.
O vereador Marcelo Sgarbossa (PT) visitou as famílias na tarde de quinta e confirma que o projeto esteve para ser votado, mas acrescenta que não foi colocado em pauta porque mesmo vereadores da base governistas estavam aguardando o Executivo encaminhar uma lista dos imóveis que poderiam ser alienados. Ele diz que ficou sabendo da existência de uma lista com mais de mil imóveis, mas que, até o momento, trata-se de um levantamento não oficial. “Mas a gente fica se perguntando se não tem muitos imóveis pela cidade na mesma situação e que poderiam ser parte de uma política habitacional, como é o caso desse aqui, que poderia continuar servindo de moradia. Eu só posso imaginar que tenha alguma coisa por trás para ser destruído assim”, diz o vereador, que acrescenta ainda que não se recorda de nenhum processo de remoção na história recente da cidade em que um imóvel público tenha sido demolido. “Uma coisa é retirar as pessoas, mas demolir é uma medida de força. É uma forma de dizer ‘Saiam, e não tem como voltar porque não vai ter para onde”.