Por Margarida Cordão.
Quando os repasses de recursos que deveriam abastecer os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) de todo o País foram suspensos, no começo do ano, o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta alegou que se tratava de uma medida de combate à corrupção.
“O setor vem sofrendo com esquemas de fraudes endêmicas, por exemplo em licitações de aeronaves, helicópteros, aviões, planos de voo… A saúde indígena como um todo sofre uma perigosa associação entre ONGs, seus funcionários e prestação de contas”, disse o ministro, durante audiência pública na Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal.
A implementação da Política Nacional de Saúde Indígena enfrenta problemas — confirmados em relatório do Tribunal de Contas da União(TCU). Porém, das 13 recomendações dadas pelo TCU para o controle dos gastos, nenhuma propõe a suspensão dos pagamentos de salários dos cerca de 15 mil funcionários em todo o país.
Armadilha
Para Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o discurso da corrupção é uma armadilha.
“Se você for a fundo, em toda administração pública vai encontrar problema. E o que eles fazem? Fazem uma armadilha dizendo que tem corrupção para desmontar o sistema, em vez de fortalecer e identificar onde tem problema e corrigir”.
O cacique Yssó Truká, um dos representantes indígenas no Conselho Nacional de Saúde (CNS), também criticou a decisão. “O filho da gente erra, a gente tem que matar ele pra corrigir o erro? Se a SESAI tem problema de corrupção, cabe ao ministro que é titular da pasta, mandar apurar. Não fechar a SESAI e nem paralisar as ações”.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) é a única do Ministério da Saúde que presta serviços diretos a uma população inteira. Para atender mais de 770 mil indígenas nas quase 5.600 aldeias espalhadas pelo território nacional, o orçamento previsto para esse ano é de R$ 1,4 bilhão.
Perfil dos coordenadores de DISEI
Para operacionalizar esse sistema, o ministério firma convênios com Organizações Sociais (OS), ou entidades beneficentes, como algumas preferem ser identificadas. A gestão desses contratos é feita através dos 34 DSEI, que estão subordinados à SESAI, mas incluem transporte, recursos humanos e toda a estrutura necessária para cada aldeia. Até o ano passado, quando venceu o prazo dos contratos assinados em 2013, três entidades conveniadas podiam executar os recursos da Saúde Indígena.
Uma das conveniadas chama a atenção. Mais de 60% do montante destinado a custear as atividades nos DSEI iam para a Missão Evangélica Caiuá. O grupo religioso chegou ao Brasil pelas mãos de pastores presbiterianos dos Estados Unidos, no começo do século passado, com a missão de converter indígenas e se desdobrou em serviço hospitalar e depois de quase um século de atuação no Brasil, construiu conexões com políticos de renome nacional.
Atualmente, a Caiuá tem laços estreitos com o senador Romero Jucá, como contou o jornalista Maurício Angêlo para o Intercept Brasil.
Para o cacique Yssó, se o governo tivesse mesmo interesse em mudar o cenário da saúde indígena, deveria começar estabelecendo critérios para nomeação dos coordenadores dos DSEI.
“Os coordenadores distritais têm ligações político-partidárias. Eles não são servidores de carreira. Nós, no controle social, queremos critérios para que esses – que são políticos – passem a vir oriundos de serviços públicos, sejam profissionais de saúde pública. A gente traçou um perfil [para escolha dos coordenadores] e o ministério da saúde não aceitou”.
Uma olhada rápida nos nomes dos coordenadores chama atenção. À frente dos cuidados de mais de 12 mil indígenas no DSEI Alagoas-Sergipe, está Ivana Fortes Peixoto Toledo, empresária e esposa de Alexandre Toledo, usineiro e ex-deputado federal pelo Partido Republicano da Ordem Social (PROS). Para assumir o posto, ela teve como padrinho o deputado federal Arthur lira (PP-AL), integrante da tropa de choque do ex-presidente Michel Temer no Congresso.
Já o DSEI Interior Sul, responsável por coordenar a estrutura de saúde para 63 mil indígenas que vivem em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, é comandado por Gaspar Luis Paschoal. O jovem advogado foi nomeado para o cargo em 2016, quando tinha 23 anos. É filho do ex-prefeito de Redentora, Adelar Paschoal (PMDB).
Em 2017, indígenas pediram a saída de Gaspar que foi acusado de assédio moral, sexual e má gestão de recursos. Quando o pai de Paschoal foi prefeito de redentora, crianças indígenas morreram desnutridas. À época, a saúde indígena ainda ficava sob a responsabilidade dos municípios que recebiam suporte técnico da Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
No Mato Grosso do Sul, onde os guarani Kaiowá são marcados pela violência de fazendeiros em um conflito fundiário que dura décadas, o coordenador é Edemilson Canale, ex-prefeito de Seara (SC) que assumiu o posto com as bênçãos da bancada ruralista no Congresso Nacional.
Já o DSEI Yanomami é território restrito, mas de fácil trânsito para o ex-senador Romero Jucá. O distrito é um entre os 19 contratos firmados com a Missão Evangélica Cauiá.
Outro lado
A reportagem do Saúde Popular questionou o Ministério da Saúde sobre os critérios adotados para a nomeação dos coordenadores dos 34 DSEI e, especificamente, sobre as habilidades de cada um dos coordenadores aqui citados. Não houve resposta.
Mas questionado sobre o que está sendo feito para combater a corrupção na saúde indígena, o ministério diz que “ficou acordado entre a pasta e lideranças indígenas, após reunião no dia 28 de março, a manutenção da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI)”.
Ainda de acordo com a pasta, “no mesmo encontro, foi definida a criação de um Grupo de Trabalho para discutir a melhoria e os avanços na assistência à saúde indígena e a fiscalização dos recursos”.