O perigo da religião na política: uma reflexão necessária e urgente

Brasilia DF 06 12 2018 i.O futuro ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anuncia a futura ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Ela também ficará responsável pela Funai.Valter Campanato/Ag. Brasil

 “A igreja evangélica perdeu espaço na história. Nós perdemos um espaço na ciência, quando deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas. Quando nós não questionamos, quando nós não fomos ocupar a ciência. A igreja evangélica deixou a ciência sozinha, caminhar sozinha, e aí cientistas tomaram conta desta área e nós nos afastamos”.

“As raras vezes onde nós utilizamos nossa crença teológica ou religiosa, o direito à liberdade de expressão é um direito maravilhoso o qual nós dispomos neste país. Sabendo que estão presentes membros do clero entre os membros deste painel, eu vou então começar com Gênese 8, versículo 21 e 22. “Eu não mais amaldiçoarei a terra por causa do homem porque os pensamentos do coração do homem são ruins desde a infância, e doravante eu não baterei mais todo o ser vivo, como eu fiz. Doravante, enquanto a terra durar, as sementes, as colheitas, o frio, o quente, o verão, o inverno, o dia e a noite não cessarão mais.” Eu acredito que é a infalível palavra de Deus, e que é assim que ela será para a sua criação. (…) A terra terá seu fim somente quando Deus declarar que seu tempo chegou. O homem não destruirá a terra. Esta terra não será destruída por um dilúvio. E eu aprecio que tenha aqui homens de fé entre os participantes, nós poderemos assim aprofundar o discurso teológico desta posição, mas eu creio que a palavra de Deus é infalível, incorruptível e perfeita”.

 Por Evânia Reich, para Desacato.info.

A primeira citação é da nossa ministra da Mulher, Família e direitos Humanos, Damares Alves, quando foi questionada sobre o papel da igreja na política. Já no seu discurso de posse, no último dia 2, citou Deus em mais de um momento e disse que vai governar com princípios cristãos. “O Estado é laico, mas essa ministra é terrivelmente cristã.” Afirmou Damares.

A segunda citação é do representante republicano de Illinois, EUA, John Shimkus, em uma reunião do comitê de energia e meio-ambiente.

As palavras de John Shimkus e as declarações da ministra Dalamares mostram claramente um discurso na esfera política que se utiliza de argumentos religiosos para desmontar e pôr em dúvida o trabalho e a importância da ciência como um todo. Em ambos os casos o que se quer é substituir o Darwinismo pelo criacionismo. O criacionismo vem se tornando um veículo apologético, um meio de conversão, e um instrumento de uma fundamentalização da religião. Tem como objetivo a completa dessecularização não somente da sociedade, mas da política. Através do movimento criacionista, seus zeladores querem trazer o mundo a seus dogmas, combatendo e enfraquecendo os registros de descrições e de explicações formuladas pelas disciplinas científicas e os saberes seculares. O alcance do criacionismo não é somente teológico e sua destinação não é apenas eclesiástica, mas também um modo de politização, instaurando uma divisão conflituosa na sociedade, semeando um impulso à mobilização coletiva, e apelando à reconfiguração política.

Os autores da corrente fundamentalista cristão-protestante americana da primeira metade do século XX encontraram na teoria antievolucionista a base para a formação de um movimento social, mas também desde o início possuíam uma dimensão política. Os conservadores queriam proteger a igreja e a escola, duas instituições responsáveis pela preservação social. Com este mesmo intuito que devemos interpretar as declarações da nossa ministra. A teoria da Evolução, citada pela ministra é reconhecida mundialmente, ao menos em todos os países Ocidentais, e ensinada nas escolas, mesmo naquelas de confissão católica.

Não é nova essa incursão do fundamentalismo religioso na política. A partir de 1970, o fundamentalismo cristão, nos EUA, começou a obter cada vez mais espaço na sociedade, com um público dedicado e devoto, até se tornar umas das principais forças políticas nos anos 80. Eles constituem a mais sólida facção do partido republicano, constituindo a base de seu eleitorado, e inúmeros militantes e representantes.  No Brasil, apesar de sermos oficialmente um país laico, o nome de Deus é citado corriqueiramente por políticos. Até nossas cédulas são inscritas com a menção “Deus seja louvado”. Mas, há uma grande diferença entre essa tendência religiosa, quase cultural de colocar o nome de Deus em tudo, e querer fazer modificações na educação, e nas leis de nosso Estado em nome do código moral divino, retrocedendo direitos adquiridos através de muitas lutas e freando pautas extremamente importantes, como a legalização do aborto.

O criacionismo defendido pelos membros ativos do fundamentalismo cristão é mais do que um sintoma isolado da desssecularização do âmbito público e da vida política americana. Esta dessecularização constitui uma das principais matrizes e base da direita americana. Foi no âmbito antievolucionista e no meio fundamentalista e evangélico que se inventou um conjunto de estratégias retóricas, de manipulação de regras jurídicas e de engenharia dos debates públicos. Essas estratégias possuem objetivos políticos bem específicos e trazem questões como a negação do aquecimento global, a luta antiaborto, a negação dos direitos civis das pessoas LGTB, o aniquilamento do que sobrou do “welfare state”, como a educação pública, o ataque ao sindicalismo e aos direitos trabalhistas, etc. Como espelho do que acontece nos EUA, devemos pensar no grande perigo que surge na arena brasileira. A bancada evangélica conta com mais de 90 parlamentares no nosso Congresso, e os neopentecostais ocupam o maior espaço na televisão brasileira, como proprietária e difusora de programas evangélicos. Algumas prefeituras ou Estados no Brasil foram ou estão sendo lideradas por bispos da Igreja Universal. A própria Ministra Damares é pastora evangélica. Embora possamos pensar que não seja expressiva em números, a bancada evangélica é forte em votos. Lembrando que o deputado reeleito Eduardo Bolsonaro teve 1.843.735 votos. A maior votação nominal registrada no país.

Essa relação estreita e a infiltração nas instituições liberais e seculares esconde o contrassenso do conteúdo do discurso religioso e legitimam feitos e atos religiosos, dentro das instituições públicas e esfera público-política, como se eles não estivessem em dissonância com os princípios do liberalismo e do secularismo. Utilizando com muita propriedade o direito da liberdade de expressão, e mesmo o princípio da tolerância, os defensores do criacionismo e os fundamentalistas impõe uma visão que eles chamam de alternativa.

O criacionismo tornou-se, portanto um veículo apologético, um meio de conversão, e um instrumento de uma fundamentalização da religião. Tem como objetivo a completa dessecularização não somente da sociedade, mas da política. Através do movimento criacionista, seus zeladores querem trazer o mundo a seus dogmas, combatendo e enfraquecendo os registros de descrições e de explicações formuladas pelas disciplinas científicas e os saberes seculares. O alcance do criacionismo não é somente teológico e sua destinação não é apenas eclesiástica, mas também um modo de politização, instaurando uma divisão conflituosa na sociedade, semeando um impulso à mobilização coletiva, e apelando à reconfiguração política.

Uma das facetas mais perigosas do fundamentalismo é a utilização dos princípios do liberalismo em prol de seu antiliberalismo. Combatente acirrado do secularismo e do liberalismo, o fundamentalismo não hesita em instrumentalizar as virtudes e os princípios mais elevados e nobres deste último para avançar sua agenda política e confundir um público que teria boas razões de se opor às suas posições e exigências. O discurso do político John Shimkus demonstra claramente tal façanha. A introdução apologética de um dos princípios mais caros do liberalismo, a liberdade de expressão, libera o representante para utilizar a palavra de Deus, a fim de fundamentar a negação do aquecimento global, sem adentrar no campo das ciências e nas suas pesquisas seriamente realizadas. Utilizando-se, portanto, do direito à liberdade de expressão, os defensores do criacionismo impõem sua visão que eles chamam de uma legítima alternativa.

Os fundamentalistas cristãos procuram a base dos princípios liberais para inserir suas ideias e doutrinas no espaço público e influenciar as decisões políticas com pautas bem contrárias ao requisito do espaço público, pluralista, liberal e secular das sociedades democráticas. Um desses requisitos, extremamente importante e que oportunizou ao longo da história a convivência de diferentes religiões em um mesmo espaço, e apaziguar as guerras, é a tolerância. Um dos maiores problemas do fundamentalismo cristão, e dos defensores do criacionismo é a sua convivência conflituosa com a tolerância. Ao mesmo tempo em que eles podem utilizar o princípio como fundamento para introduzir uma alternativa diferente à teoria da evolução, eles a negam na violência de suas convicções. A tolerância lhes serve apenas como porta de entrada, como princípio introdutório, mas não é levada a sério no prosseguimento de suas ações. O que os fundamentalistas no fundo mais repugnam é a tolerância, porque é esta que consiste em preservar uma sociedade pluralista e a evitar os conflitos que podem surgir nesta sociedade composta por diferentes visões de mundo. Ora os criacionistas e aqueles que estão em guerra contra os direitos e princípios das sociedades democráticas modernas pensam que o liberalismo e suas instituições seculares encontram-se do lado errado e que devem ser combatidos e não tolerados. Portanto, na realidade o princípio da tolerância é algo que lhes causa ojeriza, e sua violência de convicção não lhes deixam aceitar tal princípio.

Cada indivíduo, cada comunidade, cada coletividade nacional possui o seu intolerável. Parece, por exemplo, haver um consenso que o antissemitismo, o apartheid, a exploração sexual das crianças, a escravidão, não podem ser tolerados. Mas também parece ser plausível afirmar que em nossas sociedades modernas liberais, fundada na defesa dos direitos humanos, seria intolerável a exploração das mulheres, o seu confinamento nas tarefas do lar sem lhes dar alternativas, a privação da liberdade de escolha de seu parceiro, a humilhação aos negros e aos pobres, a discriminação contra homossexuais ou contra LGBT, em outro campo, a negação das ciências, da medicina, por exemplo. O intolerável significa que o consenso conflituoso de minha cultura o tem por inaceitável, abjeto, indigno de respeito. Portanto, se uma das partes neste acordo defende o intolerável e o faz a base de seus mandamentos doutrinários, o consenso conflituoso necessário para a convivência é completamente aniquilado. O que ocorre justamente no fundamentalismo religioso é essa vontade de introduzir e impor o intolerável. A partir do momento em que os valores e ditames religiosos adentram no campo do intolerável a luta pela manutenção dos princípios do secularismo deve ser travada por todos nós que somos defensores de um Estado liberal de direito.  A luz da tolerância à religião ascende o seu sinal de alerta, e algo necessita ser feito em defesa da sociedade pluralista e dos seus valores. O sinal de alerta da tolerância religiosa no Brasil foi ligado na incursão de discursos políticos com cunho moral-religioso. Não devemos e não podemos tolerar o discurso religioso dentro da esfera público-política que deve permanecer absolutamente laica. A religião deve permanecer na esfera estritamente privada, como um valor e uma escolha individual a ser respeitado.

É neste sentido que as instituições liberais devem intervir diante de demandas de derrogação e mudanças de programas educacionais e sociais em geral.

O problema justamente com o fundamentalismo é a sua negação a uma comunidade política que seja superior a sua própria comunidade de fé. Os movimentos criacionistas, os evangélicos, os fundamentalistas e os católicos conservadores de direita cristã não abandonaram sua pretensão de moldar a vida da sociedade política à sua própria maneira de compreender o mundo. Como deixa claro Rawls, filósofo americano, originariamente toda religião é uma visão de mundo. Diante de sociedades pluralistas, a vida da comunidade religiosa necessariamente se diferencia da sociedade em seu conjunto, por isso a religião é obrigada a abandonar a sua pretensão de moldar toda a sociedade segundo sua própria visão de mundo. Evidentemente para os fundamentalistas é difícil deter a sua verdade porque ela é inspirada da única, absoluta e indiscutível verdade que é aquela advinda de Deus e revelada na Bíblia. Fazer desta convicção uma simples opinião entre tantas outras, eis que não é uma tarefa possível aos fundamentalistas. Por isso para eles a política acaba sendo uma luta implacável para conquistar o mundo com a sua única verdade.

Invocar a Bíblia como argumento para contrapor as pesquisas científicas sobre o aquecimento global e suas consequências para o futuro de novas gerações é um retrocesso tão perigoso que não pode ser negligenciado sob a afirmação que são apenas alguns loucos fundamentalistas que o defendem.  Querer se imiscuir na ciência, substituir o darwinismo pelo criacionismo é voltar à idade média.

Portanto, devemos fazer a seguinte questão: o que torna o retorno do discurso religioso, nas sociedades contemporâneas ocidentais, entre as quais a sociedade brasileira atual, tão preocupante? A minha hipótese principal, pelos acontecimentos que saltam aos nossos olhos, é a de que esse retorno causa dois males à sociedade que devem ser objetos de nossas profundas preocupações: um deles é a desagregação social e o outro é a pretensão de investidura da religião no poder político.

 

Evânia Reich é Doutora em Filosofia Politica e Pesquisadora em Pós-doutorado pela UFSC.

 

 

 

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

 

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