Por Amanda Rossi, BBC Brasil.
O Brasil ainda não estava no mapa do mundo quando, em 1482, uma dúzia de embarcações portuguesas aportou no oeste da África com uma missão dada pelo rei dom João 2º: construir uma fortaleza militar para defender os interesses econômicos de Portugal na região. Os porões dos navios estavam carregados de material de construção e havia na tripulação dezenas de pedreiros e carpinteiros. Era uma empreitada pioneira, já que nenhuma outra nação europeia havia feito nada semelhante.
Meses depois, surgia o Castelo de São Jorge da Mina, na então Costa do Ouro, hoje Gana. Primeiro, foi um local de comércio de ouro. Depois, de escravos – mais de 30 mil foram levados dali para o Brasil, em navios portugueses. O castelo existe até hoje e foi declarado Patrimônio da Humanidade, um monumento “aos horrores do tráfico de escravos”. É um dos resquícios mais antigos da presença dos portugueses na África e de sua participação na escravidão.
A construção do castelo foi só o começo da empreitada de Portugal na África. Em seguida, os portugueses se instalaram em diversos pontos do continente e fizeram do tráfico de escravos a sua principal e mais lucrativa atividade econômica na região. Ao longo de mais de três séculos, navios portugueses ou brasileiros embarcaram escravos em quase 90 portos africanos, fazendo mais de 11,4 mil viagens negreiras. Dessas, 9,2 mil tiveram como destino o Brasil.
Os dados são da The Trans-Atlantic Slave Trade Database, um esforço internacional de catalogação de dados sobre o tráfico de escravos – que inclui, entre outros, a Universidade de Harvard. O levantamento foi possível porque os escravos eram uma mercadoria, registrada na entrada e saída dos portos, sobre a qual incidia cobrança de impostos.
Polêmica sobre a participação de Portugal na escravidão africana
A história de Portugal na África e seu papel na escravidão entrou na pauta política brasileira depois que o candidato à Presidência Jair Bolsonaro declarou que “o português nem pisava na África” e responsabilizou os próprios africanos pela escravidão, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. A afirmação ocorreu após uma pergunta sobre cotas raciais.
“A ideia de que os portugueses nunca estiveram na África é completamente falsa. Na verdade, foram os portugueses que abriram a África para o mundo Atlântico (Europa e América)”, afirma Christopher DeCorse, professor de antropologia da Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos, e autor de livros sobre o Castelo de São Jorge da Mina e o tráfico de escravos.
“Os portugueses são os primeiros a iniciar o comércio de escravos no Atlântico. Durante algumas décadas, são praticamente só eles que fazem esse tipo de comércio. Não é propriamente um pioneirismo honroso, mas é um fato”, completa o historiador Arlindo Manuel Caldeira, investigador da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e autor do livro Escravos e Traficantes no Império Português.
Por outro lado, é fato que algumas sociedades africanas tiveram participação fundamental no tráfico de escravos, capturando outros povos e os vendendo conforme a demanda dos europeus. No entanto, historiadores ressaltam que foi a pressão dos europeus por escravos que exacerbou o tráfico interno africano.
“Apesar de uma elite africana ter se beneficiado diretamente do comércio de escravos, não há dúvidas de que, sem a pressão dos europeus, a escravidão na África teria uma dimensão imensamente menor. Foi o estímulo europeu que levou a um crescimento exponencial da escravidão”, contrapõe Arlindo.
Além disso, independentemente de quem foram os culpados pela escravidão, não há dúvidas de que os 4,9 milhões de africanos trazidos como escravos para o Brasil são as vítimas. Nenhum outro lugar do mundo recebeu tantos escravos. Em comparação, nos Estados Unidos, foram 389 mil.
Escravidão existia na África antes do tráfico europeu
A escravidão existia na África antes mesmo da chegada dos europeus. Os perdedores de um conflito, por exemplo, poderiam se tornar escravos dos vencedores. No entanto, a dimensão dessa prática era limitada.
Quando os portugueses chegaram à África, seu interesse inicial não era em escravos. Logo depois, no entanto, isso mudou.
“As elites africanas facilitaram o comércio de escravos. Elas ficaram muito dependentes da importação de mercadorias europeias – como armas, artigos de consumo e de luxo. O que tinham para dar em troca, e que os europeus aceitavam, era sobretudo mercadoria humana. Isso foi desastroso para a África, porque era uma troca altamente desigual – produtos manufaturados por pessoas”, afirma Arlindo Manuel Caldeira.
Assim, por exemplo, ao comercializar na costa sudoeste da África no início do século 16, os portugueses receberam escravos como pagamento. Depois, trocaram esses escravos por ouro na região do Castelo de São Jorge da Mina.
Em seguida, os portugueses foram pioneiros em adquirir escravos para vendê-los fora da África. Uma das primeiras viagens negreiras registradas, por exemplo, ocorreu em 1514, quando um navio português partiu do Rio Congo com 400 escravos rumo a Lisboa. Posteriormente, Portugal passou a abastecer com escravos seus territórios de São Tomé e Cabo Verde.
Até 1650, dois de cada três navios que comercializavam escravos no mundo eram portugueses.
Portugal e Inglaterra controlaram o tráfico de escravos
O número de viagens negreiras para o Brasil foi crescendo à medida que a exploração econômica baseada no trabalho escravo avançava – o açúcar, no Nordeste, o ouro, em Minas Gerais, e o café, em São Paulo.
O auge ocorreu de 1750 a 1850 (ano em que o tráfico foi finalmente proibido): nesse período, aportaram no Brasil 7 mil navios portugueses ou brasileiros trazendo escravos da África – a partir da independência, em 1822, os brasileiros assumiram protagonismo no tráfico de escravos.
O comércio era altamente lucrativo. Traficantes portugueses fizeram fortunas e, em alguns casos, até ganharam títulos de nobreza em Portugal.
É o caso do Conde Joaquim Ferreira dos Santos. No começo do século 19, ele montou postos de compra de escravos em Angola, que controlava a partir do Rio de Janeiro. Ele próprio foi à África algumas vezes para carregar seus navios de escravos. Calcula-se que tenha vendido 10 mil africanos no Brasil.
Quando o Brasil se tornou independente, Ferreira dos Santos pediu nacionalidade brasileira e continuou traficando escravos.
À época de sua morte, sua fortuna foi avaliada em cerca de 1500 contos, equivalente a muitas dezenas de milhões de euros atuais, segundo Arlindo Manuel Caldeira, que pesquisou a história dos traficantes portugueses. Parte da riqueza foi usada para criar obras de caridade, existentes até hoje em Portugal, como a rede de escolas públicas Conde de Ferreira e o hospital psiquiátrico Conde de Ferreira.
A força negreira de Portugal só foi abalada pela Inglaterra. Apesar de terem entrado no negócio meio século depois dos portugueses, os ingleses fizeram o maior número de viagens negreiras do mundo, 600 a mais que Portugal. O destino era, em primeiro lugar, as colônias inglesas no Caribe e, em seguida, os Estados Unidos.
Já a partir do século 17, a Inglaterra mudou de lado e passou a defender (e exigir) o fim do tráfico de escravos no mundo. Foi por pressão inglesa que o Brasil aboliu o tráfico de escravos.
Além de Portugal e Inglaterra, outros países também traficaram escravos da África para as Américas, como Holanda e França. Nenhum navio negreiro tinha a bandeira de uma nação africana.
Demanda de escravos para as Américas elevou conflitos na África
Além do Brasil, outras colônias americanas foram se tornando economias escravistas e demandando um número cada vez maior de escravos africanos. Do ponto de vista econômico, quando a demanda cresce, a produção também aumenta. É a lei da oferta e da procura. Foi o que ocorreu na África.
“As elites africanas tentaram ter sempre o maior número possível de escravizados para trocar por mercadorias europeias. São desenvolvidas diversas formas de obtenção de escravizados, como medidas fiscais (cobrança de impostos) e de caráter judicial (julgamentos que condenavam o acusado à escravidão). Mas a principal vai ser por força, pela guerra”, explica Arlindo Manuel Caldeira.
Assim, “o comércio negreiro motivou uma série de guerras étnicas e conflitos que tinham como objetivo obter escravos, para que pudessem ser vendidos para comerciantes europeus”, diz Christopher DeCorse.
Algumas mercadorias vendidas pelos europeus, como cavalos e armas, aumentaram o poder de conquista de algumas sociedades africanas – e reduziram a capacidade de resistência de outras. As maiores vítimas foram comunidades camponesas, capturadas por sociedades vizinhas com maior poder bélico.
“Então a culpa é dos africanos? Não, nós devemos apontar o dedo diretamente para os europeus. Foram os europeus que moveram o mercado de escravos. Foram os europeus que foram para a costa africana e disseram para seus líderes: ‘nos deem escravos’”, diz Christopher DeCorse.