Por Douglas Kovaleski, para Desacato. info.
Será realidade a privatização do SUS ou trata-se apenas de mais um alarde para criar pânico na população? Não raro as tendências políticas de direita e esquerda trazem notícias com a clara intenção de mobilização, nem que para isso seja incorram um algum exagero. Escrevo isso porque na semana passada anunciei as ações da Federação Brasileira dos Planos Privados de Saúde e suas intenções de privatização do SUS.
Em primeiro lugar, precisamos ser fiéis aos termos, por exemplo, quando se fala que a entrada de Organizações Sociais na gestão do município são a privatização do setor saúde, isso não é bem verdade, pois o serviço sob a gestão das OS se mantém público, financiado pelos recursos estatais e gratuito para a população. Caracterizando então um serviço público. Este serviço sob a gestão de uma organização privada sem fins lucrativos, localizada teoricamente no chamado terceiro setor, não é da esfera do mercado e também não é do Estado. Trabalha, no entanto regulada, tanto no regime de contratação dos seus trabalhadores, como na compra dos materiais, equipamentos e estrutura sob a lógica privada. Nessa lógica as OS concorrem no mercado, não estão subordinadas aos preceitos da administração pública, compram sem licitações e contratam sem concurso público, ou seja, via a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Há que se considerar que essa forma de atuação das OS se assemelha mais ao mercado e constitui-se em uma forma indireta de privatização, mas categoricamente não é privatização. A privatização pura seria a venda das unidades de saúde e o controle exclusivo do mercado nessas ações. Mas seria interessante aos grupos empresariais da área da saúde comprar o SUS? Acho pouco provável que esse seria um negócio atraente para as empresas, afinal o SUS de uma maneira geral seria muito caro, pois possui uma estrutura enorme, além do que a maior parte do SUS atende pessoas que não podem pagar pelos serviços. Desta forma, interessa ao mercado essa forma de privatização seletiva, que se apropria de setores rentáveis do SUS e coloca as empresas para trabalhar para o Estado no fornecimento de materiais de consumo, exames e trabalhadores da saúde precarizados.
Nessa perspectiva, se faz necessário compreender melhor o cenário da entrada do privado na saúde. Faço isso com base na análise das políticas econômicas e de saúde e fundamentalmente com o apoio da a nota Febraplan e a disputa real pelo Sistema de Saúde Universal: Considerações sobre a atuação recente do setor privado nas políticas saúde.
Em diversos segmentos como: planos e seguros de saúde, medicina diagnóstica, farmácias e drogarias, hospitais privados, indústria farmacêutica, distribuidoras de medicamentos; entre outros, estão marcados, nesses últimos dez anos, pela formação de grandes grupos econômicos associados à abertura de capital de muitas empresas. Ainda nessa semana tivemos a entrada de duas gigantes do setor saúde para negociação de ações na BOVESPA com desempenho virtiginosamente positivo. Esse processo ilustra uma forte concentração de mercado ocasionada por movimentos de fusões e aquisições; corrida ao financiamento público e privado mediante empréstimos, créditos e operações financeiras; entrada de empresas de outros setores na saúde e diversificação dos negócios das empresas originais da saúde; além de relevância crescente das funções financeiras para alavancar ampliação
de escala, vantagens competitivas e resultados econômicos.
As mudanças estruturais nos mercados, nas empresas e na dinâmica de concorrência não acontecem desarticuladas da esfera política. Estão associadas à formação de empresas e entidades de representação mais poderosas, influentes, diversificadas, com maior proximidade com os núcleos de poder e maior capacidade de intervenção em diversas esferas do Estado. Todavia, os múltiplos grupos de interesse não são homogêneos. Há disputas políticas, econômicas e interesses contraditórios em jogo.
Desde a reforma sanitária, em meados da década de 1970, é conhecida a atuação de agentes privados na disputa dos rumos das políticas de saúde. Naquela ocasião os empresários também se articularam, como fica evidente na apropriação conveniente das expressões: “livre à iniciativa privada” e “complementaridade” do setor privado. A forma e a força da organização do empresariado à época estavam associadas tanto às características estruturais dos mercados e das empresas quanto ao poder de influência desta nas esferas de poder. Desde então, a dinâmica de representação e atuação do empresariado da saúde passou por grandes mudanças, moldadas por décadas de dependência e convivência com instituições governamentais e com o SUS. Passou também pelas questões políticas, econômicas e sociais que atravessaram o país e o setor saúde no período da Nova República em seus diferentes ciclos. Nesses 30 anos, o que se observou em todos os governos foi, a convivência entre avanços na implantação do SUS, mas sem avanços efetivos em termos de financiamento ou da consolidação de um plano de carreira para os trabalhadores do SUS. Esses avanços foram possíveis em momentos em que a correlação de forças era mais favorável, mas agora transformam-se em pontos vulneráveis onde os interesses do mercado atuam fortemente.
A luta entre público e privado na saúde cederam lugar à um certo espírito colaborativo, onde o discurso de reforço mútuo entre público e privado, expresso tanto por agentes do mercado quanto do Estado tomam conta de grande parte das discussões. O SUS deixou de ser uma ameaça, ao contrário, transformou-se, para os setores mais integrados à financeirização, em oportunidade, na medida em que o SUS garante a estabilidade sanitária, sustenta o setor privado e não impõe limites à expansão dos negócios.
Em 2007 surge a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), ligada à Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg) que articula interesses econômicos e financeiros de diferentes setores e agentes, de bancos e seguradoras a empresas de planos de saúde. A FenaSaúde hoje representa 23 grandes empresas de planos e seguros de saúde e é uma das entidades protagonistas dos debates acerca dos planos populares. Tem como presidente representante da SulAmérica Saúde e diretor-executivo um ex-ministro da previdência. A FenaSaúde disputa espaço com a antiga Associação Brasileira de Plano de Saúde (Abramge) 6, que representa parte das mesmas grandes empresas (excluídas as seguradoras) e outras de porte menor ou de abrangência regional. É nos segmentos de planos e seguros de saúde onde as movimentações do setor privado são mais facilmente evidenciadas. Em 2009, a criação da modalidade “administração de benefícios” pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), beneficiou e alavancou a Qualicorp, uma das maiores empresas do ramo hoje em dia.
Nas eleições de 2010 e 2014, as doações milionárias de planos de saúde para campanhas presidenciais e de parlamentares, de distintos matizes ideológicas, evidenciaram que a busca de governabilidade, mediante coalizões políticas pragmáticas e não programáticas, associada ao financiamento privado, também atingiam o setor saúde. Em 2016, após o golpe, assume um ministro da saúde cuja campanha a deputado foi financiada por empresa de plano de saúde.
Em 2014 foi promulgada uma Medida Provisória alterando o texto da Lei 8080, permitindo a participação de empresas e capitais estrangeiros em empresas privadas e instituições filantrópicas, posteriormente aprovada pelo Congresso Nacional. Empresas de diagnóstico e grupos hospitalares já tinham recorrido a investidores internacionais, apesar da vedação legal, e precisavam obter segurança jurídica. Posteriormente, revelaram-se acusações de pagamento de propina de Amil e Rede D’Or para Eduardo Cunha para aprovação da MP 656/2014, que no ano seguinte se tornaria lei. Essas empresas, não por acaso, estão às voltas com investidores estrangeiros que requerem “provas” de força econômica e política do empresariado local.
No mesmo ano, em 2014, a lei “farmácia estabelecimento de saúde”, proposta pelo campo progressista em 1994 para aprofundar a regulação do comércio farmacêutico no país, foi aprovada, mas totalmente desfigurada, após forte pressão da Associação Brasileira de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) junto ao Executivo e ao Parlamento. A mesma entidade foi protagonista na formulação do Programa Farmácia Popular em 2006, na modalidade de convênio com farmácias privadas e em sua expansão a partir de 2011 com o Saúde Não Tem Preço. Agiu pressionando o Judiciário e conseguiu reverter definitivamente a decisão da Anvisa de 2009, de proibir a venda de medicamentos em gôndolas de autosserviço.
Na disputa de ideias emergiram novas estratégias de preservação de hegemonia, executadas de forma articulada por entidades de diferentes segmentos privados da saúde. Foram criadas até estruturas com a função de think thanks, como é o caso do Instituto de Estudos em Saúde Suplementar – IESS. Nas eleições de 2014, a Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp)9 , em publicação com mais de 100 páginas intitulada “Livro Branco da Saúde”, defendeu sua agenda junto aos presidenciáveis.
Por sua vez, os hospitais privados ditos de excelência (modalidade criada em 2006) como Einstein e Sírio-Libanês, que se beneficiaram enormemente de empréstimos do BNDES e isenções fiscais, se tornaram importantes formadores de profissionais, formuladores e difusores de ideias através de projetos, pesquisas e consultorias, assumindo papeis que outrora eram exercidos por universidades e instituições públicas. Em 2015 foram fundadas duas novas importantes entidades: o Instituto Brasileiro de Organizações Sociais, que conta com 20 organizações associadas; e o Instituto Coalização Saúde, que busca congregar e unificar diversos grupos de interesse (planos de saúde, indústria farmacêutica, medicina diagnóstica, hospitais privados e organizações sociais) em torno da formulação de propostas para o setor saúde. O ICOS congrega “pesos pesados”, inclui empresas representativas e empresas de grande porte12, e em 2016 foi bastante ativo nas eleições, subsidiando com propostas candidatos à prefeitura de diferentes municípios. No caderno de propostas lê-se: “uma oportunidade única de união de toda a cadeia produtiva para pensar o sistema de saúde do Brasil” e o “momento de fortalecer os mecanismos de ação de livre mercado para que haja um reequilíbrio financeiro do setor de forma sustentável”. O ICOS propôs também a criação de farmácias populares municipais e parceria com as redes privadas e em substituição da provisão pública de medicamentos. A proposta foi encampada pelo prefeito de São Paulo, João Doria, em 2017, mas não avançou. A atuação da indústria farmacêutica tem sido estudada por grupos da sociedade civil, e não é menos intensa.
A questão central é que houve uma profunda inversão da hegemonia, mas ainda não temos noção precisa desta dimensão. Hoje quem define rumo e prumo de políticas estruturantes para a saúde é o setor privado, ao contrário do que ocorria nos anos 1980.
Essa tendência se aprofundou a partir do golpe jurídico-parlamentar de 2016. Reconhecer essas evidências não significa fazer coro ao imobilismo, ao derrotismo e à naturalização dos fatos. Ao contrário, significa que para voltarmos a produzir transformações a médio e longo prazo, não é suficiente apenas a indignação ou o escracho. Faz-se necessário compreender as regras de crescimento dos mercados, seus padrões de atuação política, identificar crises, contradições e práticas corruptas para, então, dimensionarmos corretamente a correlação de forças e avaliarmos as possibilidades concretas e realistas para ação política em contraposição aos interesses privados.
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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.