Por Luciane Recieri, para Desacato.info.
Suicidou-se nesta madrugada confusa de 26 para 27 de abril, meu espelho. Pulou da parede ao frio chão do banheiro. Contava o jovem espelho, 24 anos. Íntimo aqui em casa, me viu nos piores momentos, nas vezes que perdi a identidade e chorei indagando-lhe sobre quem era eu no mundo. Viu-me envelhecer. Viu-me de cabelos quase longos, quase curtos, quase nadas, quase brancos. Jovem. Grávida. Mãe. Com olheiras. Quantas vezes desviei o olhar porque me saberia? Depois a filha alcançou o metro e pouco do chão até sua altura, aprendendo a arte de Coty nos olhos não meus, mas que se assemelham de tanto nos olharmos. Suicidou-se às 3 ou às 4 ou às 5. Só sei que ainda era escuro e me fez pegar um taco de golfe para nos defender – as duas e os bichos -, olhei tudo, desde os fundos até a frente e nada encontrando, fui olhar o banheiro. Lá estava: jazia a meus pés ridiculamente calçados de meias nessa fria madugada. Eu estilhaçada nele, ele estilhaçado em si. Morreu quem mais me viu e mais se pareceu comigo em vida.
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Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP