A universidade se rebela

Ministro da Educação Mendonça Filho. Foto: Valter Campanato/ Agencia Brasil

Por Sônia Weidner Maluf.

O governo ilegítimo e suas forças policiais e jurídicas tentam barrar a pesquisa e o desenvolvimento científico do país. Pesquisadoras/es e professoras/es são perseguidos, cursos e disciplinas são censuradas e procuradores se arrogam o direito de interferir na autonomia universitária. Se a comunidade científica não se mobilizar, esse é só o começo de um longo período de sombras.

Vinte e três universidades já criaram, até o momento em que escrevo, disciplinas e seminários em torno do tema do golpe de 2016 e os rumos da democracia no Brasil, em resposta à tentativa de censura do ministro José Mendonça Filho (DEM) à disciplina do curso de Ciências Sociais da UnB intitulada “Tópicos especiais: o golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, do professor Luis Felipe Miguel. Na UFSC, o Centro de Filosofia e Ciências Humanas criou o Ciclo de Debates “O Golpe de 2016 e o futuro da Democracia no Brasil”, com a participação de docentes de vários departamentos e que inicia agora em março. O CFH ainda terá Luis Felipe Miguel proferindo a aula inaugural do semestre.

São atos de resistência que reafirmam a vocação reflexiva e crítica da universidade em um momento em que uma certa paralisia diante da avalanche de desmontes do governo golpista ainda perdura nos meios acadêmicos.

Em 21 de fevereiro, o MEC publicou uma nota acusando a UnB de promoção de pensamento político-partidário e no mesmo dia o ministro postou no twitter que havia solicitado à Advocacia-Geral da União, ao Tribunal de Contas da União e ao Ministério Público Federal a apuração de improbidade administrativa pelos responsáveis da disciplina na UNB. Réplica farsesca e bufa do personagem nazista que, ao ouvir a palavra cultura, tem o impulso de puxar seu revólver. Essa farsa tem se multiplicado no Brasil do golpe, com perseguições a docentes, pesquisadores/as, entre elas a condução do professor emérito da UNIFESP Elisaldo Carlini, de 88 anos, um dos maiores pesquisadores brasileiros sobre os usos medicinais da cannabis, chamado a depor na Polícia Federal por “apologia ao uso de drogas”.

Além de desconhecer alguns princípios básicos de sua pasta, como a autonomia universitária (definida na Constituição de 1988) e a liberdade de cátedra (ou seja, a liberdade de ensinar, de aprender, de pesquisar), o impulso repressivo e de censura do ministro é tal que ele não buscou sequer se informar sobre o assunto em pauta. Preferiu, à força do argumento e da reflexão, usar a força de seu cargo e do novo dispositivo repressivo do Estado brasileiro, a denúncia e o processo judiciais.

Desde o golpe de 2016 diversas iniciativas foram tomadas nas universidades e nas escolas por parte de docentes e pesquisadores/as (e também estudantes e trabalhadoras/es da educação) para refletir sobre o golpe e seus desdobramentos. Seminários, conferências nos encontros científicos e várias publicações acadêmicas, de livros a artigos e dossiês em periódicos reconhecidos e indexados. As sociedades científicas aprovaram moções e notas denunciando o golpe e suas consequências para a democracia e para os direitos. [1] Como é possível que o ministro da Educação não soubesse dessas iniciativas e por que resolveu reagir só agora e contra uma delas, a disciplina da UnB?

Ignorância interessada 

A tentativa de transformar campos e temas de estudo e mesmo conceitos científicos já consolidados em diversas áreas do conhecimento em “doutrinação ideológica” é um dos projetos da direita reacionária no Brasil hoje, representada em parte no projeto “escola sem partido”, que tem como foco de ataque o conceito e o campo de estudos de gênero. Parecendo desconhecer que se trata de um campo com uma já vasta produção no Brasil (e em outros países), com teses e dissertações produzidas, revistas especializadas e muito bem avaliadas dedicadas ao tema, políticos que apresentaram e defendem esse projeto (alguns do mesmo partido que o ministro) buscam, eles sim, trazer um debate científico para a arena político-partidária e religiosa.

No caso da UnB, um dos motivos da reação do ministro foi o uso do conceito de “golpe” no título da disciplina. O conceito de “golpe de Estado” pode ser considerado um conceito clássico no campo das ciências sociais, da história e da ciência política, com larga produção teórica, analítica e empírica sobre ele. Parte das reflexões e debates em torno do conceito aciona a distinção entre golpe e revolução (outro conceito de análise) – debate que chegou a esquentar os ânimos em relação ao que teria acontecido quando os militares tomaram o poder em 1964, cujas interpretações já se consolidaram na definição de que foi mesmo um golpe militar (ou civil-militar, conforme a historiografia recente). Praticamente ninguém no campo científico hoje defende a ideia de que 64 foi uma revolução. Foi golpe.

No caso do impeachment de 2016, o campo acadêmico, sobretudo naquelas disciplinas que tomam o Estado, as instituições políticas, os partidos e a democracia representativa como objeto de estudo, já tem consolidado de forma hegemônica a interpretação de que a destituição da presidenta Dilma foi um golpe de Estado, não militar, mas parlamentar, e também midiático-jurídico. Como dito acima, basta ver a crescente produção acadêmica sobre o tema.

Isso não significa que não possa haver outras interpretações que não entendam os eventos de 2016 como golpe, ou que os entendam como normalidade do processo democrático representativo. Essas interpretações existem e nada impede que defendam seus argumentos com os instrumentos teóricos, conceituais, analíticos, metodológicos legitimados durante décadas e mesmo séculos de formação do campo científico, sobretudo das ciências sociais e da história. No entanto, o ministro, que não tem em sua carreira nem uma linha voltada para a educação ou a pesquisa, não sendo nada além de um carreirista político, preferiu “puxar o revólver” e perseguir judicialmente os responsáveis pela disciplina. Além de censura, abuso de poder: essa foi a denúncia feita pelo ex-reitor da UnB ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB) José Geraldo de Sousa Junior, e que virou processo contra o ministro na Comissão de Ética Pública da Presidência da República.

Esse caso só tem um desfecho possível, o ministro deve sair do cargo, por incompetência e incapacidade de entender o que é ensino, pesquisa e produção crítica de conhecimento.

[1] Entre as associações que se manifestaram, estão, entre outroas, a Latin American Studies Association (LASA), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Nacional de História (ANPUH), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM), a Associação Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo (SBPJor), Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (COMPÓS), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR), Associação Brasileira de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB), Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG) .

 

[avatar user=”Sonia Maluf” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /]Sônia Weidner Maluf é antropóloga, jornalista, professora Titular da UFSC e pesquisadora do CNPq.

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