Por Heribaldo Maia.
No final do século XIX, casos e mais casos de histeria desafiaram a ciência. Pessoas surgiam com paralisias, tremores, cegueira, surdez, etc., sem aparente explicação. Diversas teorias e métodos de tratamento foram tentados, sem eficácia. Até que apareceu Sigmund Freud (1856 – 1939). Foi ele quem sistematizou o que se pensava sobre a histeria e percebeu que tal patologia mental tinha origem na forma como subjetivamos a realidade, construindo uma subjetividade que é, de certo modo, uma gramática da racionalidade de uma época. Dessa forma, a histeria é um modo de narrar o sofrimento específico de uma época. Hoje, século XXI, já não é a histeria quem nos assombra. Pessoas cansadas, sentindo-se vazias, numa vida sem sentido. É a depressão que se alastra de forma “epidêmica”, causando afastamentos nos trabalhos, abandono dos estudos e um surto de suicídios[1]. Mas quais as origens da depressão?
Diante desse alarmante quadro, diversos estudiosos buscam explicações nos mais diversos campos do conhecimento. Uma das formas de explicar a depressão e de também de entender a psique humana é a neurociência[2] – que hoje vem hegemonizando o debate científico[3]. Contudo, a hegemonia da neurociência não ocorre sem resistência. Há quem busque entender os processos de sofrimento contemporâneos pela crítica social, utilizando contribuições da psicologia, psicanálise, teoria crítica, diversos campos das ciências sociais, filosofia, etc. Levando em consideração suas diferenças, todos buscam uma relação entre a forma em que nos relacionamos socialmente, construção da subjetividade e formas específicas de sofrimento.
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Dentre os diversos pensadores críticos que estudam a depressão, destaca-se o filósofo sul-coreano, erradicado na Alemanha, Byung-Chul Han. Tendo seus textos publicados recentemente no Brasil pela Editora Vozes, o ensaio que mais chamou a atenção do público especializado e geral foi o “Sociedade do cansaço”. Outros três livros foram publicados pela mesma editora. Porém, apesar de Byung analisar diversos temas relacionados a cultura, há uma unidade no conjunto dos textos: é que sempre está presente a questão da depressão, não como um adoecimento mental individualizado, mas como uma forma historicamente determinada de sofrer em decorrência de uma mudança no ethos do capitalismo mundial. Nesse sentido, partindo da percepção de que a mudança na economia capitalista, a partir do neoliberalismo, – e, complemento eu, da reestruturação produtiva – formatou uma nova subjetividade. Transita-se, assim, de uma subjetividade repressiva, a exemplo do que foi descrito pelo inconsciente freudiano, para uma subjetividade do desempenho, onde a instância repressiva do outro se diluiu, e onde a própria sociedade não lhe impõe mais limites para a realização pessoal, sendo você mesmo seu limite a ser superado. Nas palavras de Byung:
“A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos.” (Han, 2017a p. 23)
Byung usa um termo já usado por Foucault, que é “empresário de si mesmo”. Esse termo resume bem o que o coreano descreve como subjetividade contemporânea. A origem que permite “Essa evolução está estritamente ligada com as relações de produção capitalistas.” (Han, 2017a, p. 101). Até mesmo setores da esquerda aderiram ao boom do empreendedorismo, de tal modo que os movimentos identitários que reivindiquem a inclusão na sociedade do empreendimento, não mais questionando os danos de tal lógica: como o exemplo temos o empreendedorismo negro[4] ou LGBT[5]. Também em nossa linguagem afetiva ou pessoal o jargão empresarial se faz presente. Frases como “você precisa investir em você para ganhar chances no mercado de trabalho” ou “investi tanto nessa relação e não obtive retorno” – como se relações afetivas seguissem uma lógica contábil. Mas o exemplo mais icônico é a revista Você S/A, o próprio nome já é um resumo bem feito do que Byung entende pelo sujeito de desempenho. Observe que o sujeito S/A (ou o empreendedor de si mesmo) é o sujeito que “é seu próprio objeto-propaganda; tudo se mensura em seu valor expositivo.” (Han, 2017b, p. 31/32).
No “Manifesto comunista”, Marx descreve uma interessante analogia. Que como Deus, o capitalismo cria um mundo e uma forma de vida a sua imagem e semelhança[6]. Byung também observa isso quando coloca que “O capitalismo acentua (…) tudo como mercadoria. (…) O que se busca é a otimização do valor expositivo” (2017b, p. 59). Nossa subjetividade segue, portanto, uma lógica da mercadoria. Mas não só nossa subjetividade, mas nossas relações interpessoais-afetivas-psicológicas. Enquanto mercadorias precisamos nos expor, criar valor em nós mesmos, “investindo”, aumentando desempenho para nos provarmos uma mercadoria melhor, mais atrativa para os ávidos olhos consumistas – de tal forma que a vida afetiva/social é hoje “um mercado onde se expõem, vendem e consomem” (Han, 2017b, p. 80).
Há um processo, em decorrência dessa lógica mercantil subjetivada, de erosão do outro. O ethos da concorrência expandida, de uma luta de todos contra todos (ao estilo Hobbes) para provarem-se boas mercadorias, cria uma forma de vida onde o outro é apenas uma instância de reflexo do seu sucesso como mercadoria. Cria-se uma espécie de narcisismo onde o outro é apenas uma fantasmagoria de um eu-ideal, assim “a erosão do Outro (…) caminha de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo.” (Han, 2017c, p. 7, 8). A lógica da troca pressupõe a possibilidade do cálculo e, portanto, da comparação, da mensuração. Elimina-se as diferenças substantivas e reais, pondo-se no lugar diferenças consumíveis. A alteridade dá lugar ao cálculo.
“A alteridade não é uma diferença consumível. O capitalismo vai eliminando por toda parte a alteridade a fim de submeter tudo ao consumo. (…) Sobre a alteridade não é possível estabelecer um registro de controladoria. Ele não entra no balanço de débitos e créditos.” (Han, 2017c, p. 34, 35)
É sob essas condições que Byung detecta um fenômeno interessante. Ele afirma que há uma mudança de paradigma patológico, assinalando que cada época, cada forma de organizar a sociedade, produz suas formas de sofrimento específicas, portanto, ao se analisar a sociedade do ponto de vista patológico “o começo do século XXI não é definido como bacteriológico nem viral [imunológico], mas neuronal” (Han, 2017a, p. 7). Saímos de uma lógica patológica-imunológica para uma lógica patológica-neuronal; ou seja: não é mais um outro externo que lhe adoece que lhe agride, mas a própria subjetividade que provoca o adoecimento, numa espécie de implosão subjetiva – por isso o depressivo é aquele que desmorona por dentro.
Não há mais a negatividade do outro que força o ‘eu’ a abrir-se para a alteridade. O que há é um excesso de positividade, onde não há limites externos para o ‘eu’ realizar-se. A depressão, o esgotamento, são reações patológicas “inerentes ao sistema” (2017a, p. 19) capitalista neoliberal, que cria uma aparência de potência ilimitada do ‘eu’. Dessa forma, o sujeito S/A é aquele que pensa – subjetivamente, portanto acredita de fato – poder ilimitadamente. A depressão é uma reação a essa lógica que se prova, na realidade concreta das contradições de um capitalismo superagressivo da era neoliberal, inatingível. Daí os sintomas de vergonha, cansaço de tentar e nunca conseguir, vazio de sentido já que todo esforço é em vão, etc. A depressão
“irrompe no momento em que o sujeito de desempenho não pode mais poder. Ela é de princípio um cansaço de fazer e poder. A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível. Não-mais-poder-poder leva a uma autoacusação destrutiva e a uma autoagressão.” (2017a, p. 29)
Nietzsche já nos alertava que “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie“ (Han, 2017a, p. 37 apud 1967, p. 236). Essa barbárie é da total desumanização. O processo de reificação descrito por Marx, vai chegando ao seu ápice, não somos mais humanos, somos mercadorias que nos vendemos em todas, não só nossa força de trabalho, as atividades de nossas vidas, somos “máquina de desempenho” em busca do máximo consumir e ser consumido… mas isso cansa.
Nesse momento é possível nos perguntar se não haveria possibilidade de satisfação mesmo dentro dessa lógica mercantil. Para Byung a resposta é clara: não. Pelo simples fato de que a lógica capitalista que é subjetivada pelos sujeitos é a lógica da acumulação crescente, permanente e desenfreada, da cultura do consumo, do criar e se mostrar enquanto valor. Sendo assim, o sujeito só pode subjetivar o que vive na realidade. Como atesta Marx: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência”[7]. Observe que a impossibilidade de realização dentro dessa lógica está além do controle dos sujeitos, visto que
“Não é que o sujeito narcisista não queira chegar a alcançar a meta. Ao contrário, não é capaz de chegar à conclusão. A coação de desempenho força-o a produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da gratificação. Vive constantemente num sentimento de carência e de culpa. E visto que, em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir. Sofre um colapso psíquico, que se chama de burnout (esgotamento).” (Han, 2017a, p. 85, 86)
Há um imperativo subjetivo oriundo da lógica neoliberal de “ter que se tornar você mesmo”, “você pode ser você mesmo, depende de você”. A publicidade está recheada de exemplos. Se antes havia uma imposição de padrões predeterminados, atualmente a publicidade abraça as diferenças consumíveis. O sujeito do desempenho neoliberal, o sujeito S/A,
“perceberia seus desejos (Wünsche) e sentimentos em grande medida de maneira imaginativa através de mercadorias e imagens midiáticas. Sua força da imaginação estaria determinada sobretudo pelo mercado de bens de consumo e pela cultura midiática.” (Han, 2017c, p. 65).
Assim, a publicidade reproduz os valores do capitalismo contemporâneo, que deixa claro a todo instante mensagens do tipo: “seja você”, “se empoderar”, está ao alcance de todos, para isso basta comprar e realiza-se[8]. É perceptível que diversas marcas já aderiram ao discurso da diversidade e de produtos direcionados. O padrão de reconhecimento neoliberal se baseia numa dinâmica própria das “leis econômicas” (Han, 2017c, p. 74). Nessa espécie de utopia do ser-si-mesmo, o sujeito implode ao constatar a impossibilidade de atingir o eu-ideal.
“O responsável pela depressão, na qual acaba desembocando o burnout[esgotamento], é antes de mais nada a autorrelação sobre-exaltada, sobremodulada, narcisista, que acaba adotando traços depressivos. O sujeito de desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, desgastado consigo mesmo. Está cansado, esgotada de si mesmo, de lutar consigo mesmo. Totalmente incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no mundo, fica remoendo, o que paradoxalmente acaba levando a autoerosão e ao esvaziamento. Desgasta-se correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor de si mesma.” (Han, 2017a, p. 91)
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Ainda há inúmeras brechas a serem entendidas, debatidas e pesquisadas em relação ao sofrimento psíquico contemporâneo. O assunto ainda é muito recente quando falamos de depressão. Entender as particularidades que cada cultura impõe ao sofrimento, por exemplo: como essa sociedade do desempenho se realiza num país de capitalismo neoliberal dependente como o Brasil? Essa é uma questão importante, visto que o cenário local é muito mais contraditório e dramático que na Alemanha de Byung-Chul Han.
Byung também aponta o que pode ser visto como um paradoxo: como uma sociedade que se vê como totalmente livre de coações é tão reificada e tão controlada? O coreano nos responde propondo uma dialética da livre-coação (Han, 2017a, p. 30), que se realiza num novo panóptico, que, ao contrário do modelo proposto por Bentham, é muito mais eficiente, pois atualmente nos imaginamos livres, enquanto os presos de Bentham se viam enquanto presos.
“O sujeito de desempenho da modernidade tardia não se submete a nenhum trabalho compulsório. Suas máximas não são a obediência, lei e cumprimento do dever, mas liberdade e boa vontade. Do trabalho, espera acima de tudo alcançar prazer. Tampouco se trata de seguir o chamado de um outro. Ao contrário, ele ouve a si mesmo. Deve ser um empreendedor de si mesmo. Assim, ele se desvincula da negatividade das ordens do outro. Mas essa liberdade do outro não só lhe proporciona emancipação e libertação. A dialética misteriosa da liberdade transforma essa liberdade em novas coações.” (Han, 2017a, p. 83)
Contudo, o ponto de convergência entre Byung e outros pensadores é que: o neoliberalismo, além de um modelo bárbaro do ponto de vista das condições materiais, gestou uma subjetividade humana completamente reificada, nem mais a arte, o amor, o sexo, escapam da lógica da mercadoria – e Byung trata de diversos desses pontos em seus livros, principalmente do poder, da arte, do conhecimento e do sexo.
Apesar do cenário pessimista, que não deixa nada a desejar a distopias como Black Mirror, há uma direção para a superação desse afogamento psíquico em que vivemos. Primeiro é entender que não existe possibilidade nessa forma de vida em que temos atualmente de superarmos as contradições sociais que gestão a depressão enquanto gramática do sofrimento humano. Assim, nos cabe pensar e agir em prol da construção de “uma nova forma de vida (…) donde possa surgir uma nova época, um outro tempo vital, uma forma de vida que nos resgate” (2017a, p. 113). Afinal, um mundo que não se suporta viver, é um mundo que necessita ser mudado.
[1]http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-09/suicidio-e-quarta-maior-causa-de-morte-de-jovens-entre-15-e-29-anos
[2]Sobre a questão da neurociência como forma de entender a psiquê humana na contemporaneidade e suas consequências, ver o artigo de Alain Enrenberg, “O sujeito cerebral”: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652009000100013
[3]O resultado dessa hegemonia é a evolução do DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), onde há um gradual abandono das categorias psicanalíticas, apontando para patologias mentais mais específicas e de cunho fisiológico, geralmente ligadas a carência ou excesso de alguma substância orgânica. O resultado é o crescimento de tratamentos via medicamento, que visa suprir ou controlar os níveis orgânicos, estabilizando a atividade cerebral.
[4]https://www.geledes.org.br/tag/empreendedores-negros/
[5]http://www.nos2.co/2017/08/empreendedorismo-lgbt-micro-rainbow-projeto-transforma-talentos-de-lgbts-em-negocios/
[6]https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap1.htm
[7]https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/08/15.htm
[8]É o que, mais ou menos, comenta pensador italiano Losurdo em: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/entrevistas/31615/losurdo+producao+das+emocoes+e+novo+estagio+do+controle+da+classe+dominante.shtml%22EUA%20s%C3%A3o%20o%20pior%20inimigo%20da%20democracia%20nas%20Rela%C3%A7%C3%B5es%20Internacionais%22
Referências:
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2ª Edição ampliada – Petrópolis-RJ: Vozes, 2017a.
HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis-RJ: Vozes, 2017b.
HAN, Byung-Chul. Agonia do eros. Petrópolis-RJ: Vozes, 2017c.