Por Andréia Moassab, Marcos de Jesus e Vico Melo.
O branqueamento cultural como complemento do genocídio é um ponto de partida interessante para compreender os ataques ao direito à educação materializados pela operação de desmonte das universidades públicas estaduais e federais em curso e cujas consequências já são sentidas com maior intensidade pelos setores mais excluídos
Sem dúvida, as contribuições de Abdias Nascimento, intelectual e político negro brasileiro, são de fundamental importância à formulação de um quadro mais geral de interpretação a respeito dos retrocessos sociais acelerados pelo golpe civil-parlamentar travestido de impeachment em 2016. Abdias não se limitou a constatar o mais óbvio da violência que recai sobre grupos historicamente marginalizados como o das pessoas negras, a seletividade do direito penal ou sua exclusão do mercado de trabalho, por exemplo, mas almejou descrever e teorizar as artimanhas e as nuances de um poder cujas engrenagens se plasmam em diferentes estratégias de exclusão simbólica e cultural dos sujeitos por ele subalternizados. Algo assim tornou possível discutir, já nos finais da década de 1970 e em plena ditadura militar, o extermínio físico da população negra, afrodescendente e indígena atrelado ao embranquecimento cultural como a face oculta ou pouco debatida desse extermínio, sua condição de possibilidade. Nisso parece estar sua contribuição maior: o reconhecimento da estreita e íntima relação entre a modernidade capitalista e a racionalidade do extermínio (colonialismo), sendo aquela alimentada por esta.
O branqueamento cultural como complemento do genocídio é um ponto de partida interessante para compreender os ataques ao direito à educação materializados pela operação de desmonte das universidades públicas estaduais e federais em curso e cujas consequências já são sentidas com maior intensidade pelos setores mais excluídos. Como se sabe, as universidades públicas no Brasil surgem no segundo quartel do século XX como espaços para a formação das elites governamentais, da “nobreza de Estado”, como diria Pierre Bourdieu, em consonância com a necessidade de inserir o país no marco da modernidade capitalista ocidental. Por conta da própria formação histórica brasileira, as elites que frequentavam a universidade sempre tiveram um padrão bastante específico: amiúde homens brancos cristãos, proprietários, heterossexuais, de cultura urbana e liberal, cujo capital social, político e econômico se transmite ao longo das décadas a seus herdeiros, reproduzindo a ordem social violenta marcada pelo genocídio físico e cultural das populações negras, afrodescendentes e indígenas tomadas como o “outro” da nação.
Nos últimos anos, houve, a partir do incremento de uma série de políticas públicas, uma progressiva entrada de setores excluídos, marginalizados e pauperizados da sociedade brasileira nos espaços universitários, fissurando os privilégios históricos desse sujeito branco. As políticas de ações afirmativas, a lei de cotas, o aumento expressivo do número de universidades públicas e a interiorização dos campi, em que pese o reconhecimento de seus limites, são representativas de uma real possibilidade de inserção de sujeitos alijados desses espaços cujo ingresso forçado é resultado de suas lutas históricas. A entrada trouxe consigo outras cartografias corporais e, portanto, também epistêmicas, que passam a disputar com o conhecimento hegemonicamente produzido do ponto de vista branco europeu ou do das elites brasileiras subservientes a este padrão de poder, em benefício próprio. Algo assim exigiu a construção de outras agendas de pesquisa, de outras relações entre universidade e sociedade bem como a emergência de debates políticos mais incisivos acerca das desigualdades raciais que separam brancos e não brancos na sociedade brasileira.
O cenário de desmonte da educação pública e gratuita hoje representa, em alguma medida, uma espécie de “reação da elite branca proprietária do poder” cujo objetivo parece orientado por um desejo em restaurar sua hegemonia dentro desses espaços, já que o lugar próprio dos negros é a senzala – como demonstrou Lélia Gonzalez – e o dos indígenas, a floresta. Não que a entrada ainda tímida de setores periféricos na universidade pública nos últimos anos tenha conseguido romper com a hegemonia da branquitude, mas certamente gerou inúmeros pontos de tensão, conflito e disputa em um espaço historicamente a ela reservado, obrigando-a a rever alguns dos seus privilégios, ou melhor, a se perceber como sujeito de inúmeros privilégios apesar de sua reivindicação de estar ali por meritocracia. Evidenciar algo assim implica dizer que a defesa da universidade pública precisa incorporar em sua gramática um vocabulário que diga as desigualdades raciais e o genocídio operado pelas estratégias de embranquecimento cultural, além de, obviamente, denunciar suas cumplicidades com a acumulação do capital e com a dominação patriarcal. Nesse espectro de desmonte das universidades públicas, a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) se tornaram os alvos preferidos de discursos de ódio, de racismo e de xenofobia por parte dos “donos do poder” e de seus cães de guarda.
Esse ódio crescente endereçado à educação em geral e às duas instituições em particular se alimenta do capitalismo/colonialismo que, como sistema histórico, sempre necessitou promover classificações e hierarquizações entre entidades humanas como meios de facilitar o processo de acumulação incessante de capital, a exemplo da escravidão ameríndia e africana e da “domesticação das mulheres” para a vida e o trabalho no marco de uma conjugalidade monogâmica heterossexual e cristã dominadora. A tais grupos foi imposta uma lógica de que serviam exclusivamente ao trabalho (forçado/escravo) e à reprodução, esvaziando-os de qualquer sentido de humanidade e sendo, portanto, tratados como exteriores às instituições de ensino. O Brasil se encaixa inteiramente no processo neocolonial (de imposições de fora para dentro) e de colonialismo interno (imposições promovidas internamente) de “codificação paranoica da vida social”, levado a cabo por uma elite que se via fora do poder por vias democráticas há mais de uma década. É importante ressaltar que, mesmo fora do poder, as elites nacionais tiveram um acúmulo de riqueza sem comparação na história democrática brasileira, graças à alta das commodities no mercado internacional, impulsionada principalmente pelo mercado chinês em plena expansão, somado a volumosos empréstimos a fundo perdido concedidos pelos governos de Lula e Dilma ao agronegócio.
Entretanto, em momentos de crise o grande capital não aceita pagar a conta de sua própria crise, jogando o ônus nas costas de toda a sociedade brasileira, com maior peso para as populações marginalizadas historicamente no país. O governo Temer representa toda essa estrutura de expropriação e exploração contra uma grande parcela da população, vista exclusivamente como corpo-máquina. É nesse sentido que se baseiam as tão aclamadas reformas trabalhistas, previdenciárias, educacionais e sociais pelas elites brasileiras – dos meios de comunicação, empresariais e financistas – com intuito de impor esse “espaço-tempo vazio homogêneo” do capital colonial à sociedade como um todo. A ausência de uma leitura de raça e de gênero por parte da esquerda “acomodada” no poder a fez acreditar que, com a crise de 2007-2008, o capitalismo entrava num processo histórico de decadência e de contestação no sistema internacional. A escalada de violência brutal do capitalismo/colonialismo global contra qualquer direito social constituído não é fortuita ou aleatória, mas resultado da necessidade do aumento incessante da acumulação de riqueza do capital cuja história é inseparável de práticas racistas, sexistas e classistas colonizadoras.
Com a mudança das correlações de força no cenário nacional e a ascensão do capital colonial que trata latinos/as e africanos/as como Outro, a Unilab e a Unila se tornaram alvos prediletos desses ataques, por se apresentarem como projetos institucionais de luta pela redução das desigualdades regionais, raciais, sociais e de gênero. O Art. 2º, da Lei n.º 12.289/2010 que criou a Unilab, traz explicitamente que sua missão é a formação de “recursos humanos para contribuir com a integração entre o Brasil e os demais países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, especialmente os países africanos” além da promoção do “desenvolvimento regional e o intercâmbio cultural, científico e educacional”. Some-se a isso o fato de a Unilab estar localizada no Nordeste, no interior do Ceará e da Bahia, proporcionando a democratização da educação para a população dessas regiões que, até então, sempre foram invisibilizadas e/ou consideradas subalternas perante os centros decisórios e de poder no país – no Sudeste –, além de contar com uma forte presença de estudantes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop) e do Timor Leste, que representam 30% do número total de estudantes. Mesmo esse número estando aquém do projeto inicial da Unilab, de 50% de alunos/as estrangeiros/as e 50% de brasileiros/as, a universidade representa um incômodo às elites pelo fato de propor uma estrutura curricular crítica e contestatória ao status quo, buscando abarcar as diferenças e a pluralidade de saberes existentes nas sociedades africanas e brasileiras.
De igual modo, a Unila pauta-se por um ensino multiétnico, diverso e plural, que se propõe a um giro epistemológico ao estabelecer outras redes de conhecimento, menos dependentes do eurocentrismo tão caro à formação elegante das elites nacionais. Num cenário de profunda racialização geopolítica, o/a latino-americano/a é subalternizado. A América Latina dos/as brancos/as (sic) – correspondente às elites crioulas governantes – é o lugar do civilizado, do urbano, do progresso, do elegante, do intelectual, do “querer-ser europeu”. A outra América Latina é atrasada, rural, pobre, subalterna, onde está a mão-de-obra para trabalhos mal pagos e não intelectual. Esta América Latina, a elite dominante brasileira ou ignora ou explora.
Os discursos do historiador Marco Antonio Villa, comentarista da rádio Jovem Pan, e do deputado federal Sérgio Souza (PMDB/PR), sobre as estruturas curriculares e a “necessidade” de extinção da Unila, além da tentativa de cancelamento dos auxílios financeiros aos novos/as estudantes estrangeiros/as na Unilab, demonstra claramente o racismo e a xenofobia que tais grupos sempre tiveram em relação à presença de corpos que sucessivamente foram excluídos dessas estruturas de poder/conhecimento. Em tempos de ataques sucessivos contra esses grupos historicamente invisibilizados e/ou excluídos, se faz necessário assumirmos uma posição de defesa a projetos como da Unila e Unilab que visam a democratização do conhecimento e possibilidades de alternativas que rompam com a lógica monocultural própria do capitalismo/colonialismo. Contudo, para isso, devemos sair de nossas zonas de conforto e promover uma profunda autocrítica, recolocando na agenda a possibilidade de nos reabilitarmos em nossa humanidade. Como afirmou Frantz Fanon (2008), “é pela tensão permanente de sua liberdade que os homens [e mulheres] podem criar as condições de existência ideais em um mundo humano […] sensibilizando o outro, sentindo o outro e revelando-me outro”.
A autonomia universitária na produção de conhecimento sempre incomoda aqueles interessados na manutenção das estruturas de poder. O pensamento crítico nunca é bem-vindo quando privilégios de uma elite são questionados. Apesar de refletir apenas uma parcela da população e dos interesses regionais, num contexto de golpe no país, que vive o congresso mais conservador dos últimos anos, junto a um cenário internacional de retrocesso, trata-se de uma ameaça concreta e preocupante. A extinção de universidades como a Unila e a Unilab representa uma afronta aos avanços nos debates internacionais sobre direitos, autonomia e autodeterminação dos povos, respeito à diversidade, justiça social e radicalização da democracia. É um silenciamento brutal da luta por um mundo melhor.
Fonte: Controvérsia.