Por Luiza Villamea.
Cientista político e professor da Universidade de São Paulo, André Singer é conhecido por produzir análises acuradas sobre o cenário nacional. No momento em que o País anda convulsionado pela Operação Lava Jato e as urnas ajudaram a consolidar a onda conservadora que se insinuava desde as eleições de 2012, Singer acredita estar diante de um retrocesso social com ameaças à democracia. “Não vejo nenhum risco de cairmos numa situação ditatorial, mas há sérias ameaças sobre a qualidade, a profundidade e as características da democracia brasileira”, diz, referindo-se ao processo que culminou no impeachment de Dilma Rousseff e à operação que tem o PT como alvo preferencial. “A Lava Jato tem de continuar. No seu conjunto, é positiva e necessária, mas estou convencido de que ela vem se valendo de decisões arbitrárias, que colocam em risco os direitos individuais.”
Na opinião de Singer, apesar da gravidade do momento, que tem como pano de fundo um sistema de financiamento eleitoral repleto de vícios, os dirigentes políticos brasileiros não estão agindo à altura da situação: “As forças políticas perderam a noção da gravidade do que está acontecendo. O momento precisa ser encarado com muita responsabilidade”. Porta-voz do governo Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2007, Singer acredita que o ex-presidente tem capital político maior do que o partido criado em fevereiro de 1980: “Ele alcançou uma dimensão que, aconteça o que acontecer, continua sendo a peça-chave”. Para o cientista político, a saída para a esquerda brasileira, no futuro imediato, passa por duas iniciativas, ambas “difíceis”: a formação de uma frente “ampla, democrática e republicana” e a retomada dos trabalhos de base.
Brasileiros – Nas eleições de 2006, o então senador Jorge Bornhausen avisou que ele e seus pares acabariam com a “raça petista”, que se livrariam dela por pelo menos 30 anos. Demorou dez anos, mas a ameaça se concretizou?
André Singer – Analisando o resultado da eleição de forma panorâmica, acredito que não. A esquerda está de pé em várias cidades, em várias regiões. Nas sete maiores capitais, que têm mais peso político, essa presença está nítida na passagem para o segundo turno no Rio de Janeiro, com o PSOL, e no Recife, com o PT. O que chama a atenção é o fato de a esquerda ter ido para a eleição desunida. Dessa forma, fica muito difícil enfrentar a enorme onda conservadora que vinha se prenunciando e agora está instalada. Na eleição municipal de 2012 esse tema já estava posto. Naquela ocasião, argumentei que havia sinais, mas ainda não havia onda. E não havia mesmo, tanto é que em São Paulo o PT ganhou. E São Paulo acaba sendo um pouco o termômetro em matéria de eleições municipais, por onde se mede o conjunto.
Desta vez, a subida de Fernando Haddad no final, embora não tenha ido para o segundo turno, surpreendeu?
Sem dúvida. Surpreendeu. É um sinal de vitalidade, juntamente com o fato de que o eleitorado fez o raciocínio que faltou às direções, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro.
Qual raciocínio?
O raciocínio de que era preciso estar junto, de que era preciso fazer candidaturas de esquerda unificadas no Brasil inteiro e enfrentar de maneira unitária a situação, que é bem difícil. Essa onda conservadora tem características muito particulares no Brasil, mas é uma onda geral. Está no mundo inteiro. Diante de uma situação desse tipo, o mais racional é se juntar. Não é preciso fazer análises muito sofisticadas para chegar a essa conclusão.
Por causa das acusações dirigidas de corrupção, muitos partidos queriam mesmo era distância do PT. Vários prefeitos eleitos pelo PT mudaram de partido para tentar a reeleição.
Há um problema específico, que tem que ser encarado. Uma das características particulares do que está acontecendo no Brasil é que estamos diante de uma megaoperação anticorrupção. Grandes empresários, e estou falando de empresários gigantes, foram presos e estão presos. Isso é absolutamente inédito. É um fenômeno em si. A Lava Jato vem acontecendo há alguns anos e já teve diferentes fases. Não obstante eu recusar uma interpretação simplista da operação, me parece muito claro que ela vem focando sobretudo no PT. Tenho defendido há muito tempo que o PT precisa dar explicações, mas os outros partidos também têm que dar. Na verdade, a operação está pondo a nu o modo pelo qual o conjunto da política brasileira se financia, há 70 anos. Isso vem de 1945. Ficou nítido nas gravações do Sergio Machado (ex-diretor da Transpetro, que fechou acordo de delação premiada e é autor de gravações em que integrantes da cúpula do PMDB discutem os impactos da Lava Jato).
Por que 1945?
É nessa data que começa a democracia de massa no Brasil. O eleitorado explode. Uma grande quantidade de eleitores é incorporada pela primeira vez até chegarmos a ter aproximadamente 70% da população incluída no eleitorado. O Brasil é um País muito inclusivo do ponto de vista eleitoral. Significa ter democracia de massa. Significa também necessidade de recursos para fazer campanha de massa. O sistema de financiamento da política brasileira que está sendo posto a nu pela Lava Jato diz respeito a todos os grandes partidos. Essa é a minha convicção.
Falta explicarem as denúncias de corrupção?
É o problema real. Tem que ser enfrentado. A esquerda brasileira, particularmente o PT, terá que enfrentar esse problema, que não é simples. São duas mãos. O PT tem que explicar, mas também é preciso cobrar dos outros partidos, e estou me referindo ao PMDB, ao PSDB, que são os maiores. Cobrar apenas de um partido desequilibra o processo democrático, mas também não dá para dizer que esse partido não tenha que dar explicações.
E qual a participação da Lava Jato no cenário que saiu das urnas?
Essa megaoperação é tão inédita que ainda não dá para entender exatamente o que ela é e onde vai dar. Mas já é possível dizer que ela encontrou ramificações do modo pelo qual a política de massa no Brasil sempre se financiou. Só que o foco seletivo sobre o PT está afetando os resultados eleitorais e também dificultando a formação de uma frente de esquerda. Uma questão, insisto, que tem de ser enfrentada.
O PT corre o risco de perder a hegemonia da esquerda? Ou já perdeu?
A palavra hegemonia acabou entrando no linguajar corrente para significar meramente maioria, enquanto, na verdade, o conceito diz respeito a algo muito maior do que isso, que é a capacidade de dar direção. São duas coisas diferentes.
O PT ainda tem capacidade de dar direção?
Esse é o problema. O PT continua sendo majoritário no campo dos partidos de esquerda, apesar de ter perdido uma série de prefeituras, de ter perdido em São Paulo. A capacidade de direção é talvez a grande questão do momento, porque é em relação ao País. Só é possível dirigir uma frente se há uma orientação para o País. Essa é uma questão que não tem resposta neste momento porque vai bater no problema do lulismo. O lulismo é uma direção, é uma maneira de entender o País e o que tem que ser feito.
E onde foi que o lulismo errou?
Não dá para responder a essa questão de maneira direta porque não foi um erro só. Há, na verdade, uma mudança do quadro econômico mundial, uma enorme operação anticorrupção e uma mudança radical de posição do PMDB. Isso nunca tinha acontecido, porque o PMDB vinha se posicionando como um partido de centro. De repente, deu uma virada e virou um partido com um programa de direita.
Além disso, se voltou contra o governo, como nunca tinha feito antes.
Sendo que ele era parte desse governo. É um conjunto inédito de situações, conformando um quadro muito complexo. Diante desse quadro, talvez possamos dizer que aqui e ali o lulismo não teve capacidade de dar respostas. Eu, particularmente, acho que foi um erro a escolha, lá atrás, de um ministro da Fazenda (Joaquim Levy), no começo do segundo governo Dilma, que faria o programa derrotado na eleição de 2014. Tem outras coisas também. Tudo isso conforma um momento extremamente difícil para o lulismo.
Existe alguma forma de o PT existir sem que Lula seja a figura de maior protagonismo?
Não. Ele alcançou uma dimensão que, aconteça o que acontecer, continua sendo a peça-chave. No longo prazo, tudo pode mudar. Mas imediatamente não. Ele é uma grande liderança popular. Tem um capital político que talvez o partido não tenha neste momento. Além disso, ele é um grande dirigente político. E é o grande dirigente político do PT.
De qualquer maneira, é possível unificar a esquerda?
É absolutamente necessário. Não acho que seja fácil. Desde o começo de 2015 houve uma série de esforços nesse sentido. O resultado foi a formação de duas frentes (a Frente Brasil Popular e a Frente Povo sem Medo), ambas interessantes, dialogando entre si, conseguindo até mesmo tomar iniciativas conjuntas. Mas a formação de duas frentes já prenunciava que não haveria uma única nas eleições municipais. E o resultado está aí. Se tivesse havido, em Porto Alegre, por exemplo, teria sido possível passar para o segundo turno.
Em São Paulo alteraria o resultado?
Não dá para saber, porque a campanha teria sido diferente. Não é só o número de votos. No final das contas, a vitória do PSDB foi o resultado de uma unificação do eleitorado mais do centro e do centro-direita em torno do candidato que tinha chance de vencer o primeiro turno. Se tivesse havido uma política de frente ampla, teria sido diferente. Então, acho absolutamente necessária a formação de uma frente ampla, democrática e republicana, porque as questões colocadas no Brasil são muito amplas. Temos aqui um processo que ameaça a própria democracia, que passa pelo impedimento da presidente e pelas arbitrariedades que estão sendo cometidas no bojo da Lava Jato. Não estamos só diante de um retrocesso social, o que já seria muito grave em si. Estamos diante de um retrocesso social com ameaças à democracia. Então, o quadro do País é bem preocupante.
Na sua opinião, é possível bloquear iniciativas do governo Temer que conduzem ao retrocesso?
O resultado eleitoral não é bom nesse sentido. As forças que estão apoiando o governo se saíram melhor. Portanto, estão reforçadas para tomar essas medidas. Tudo vai depender da capacidade que o movimento de resistência consiga ter, tanto nas ruas quanto no parlamento. O quadro não é favorável para a resistência, mas tudo agora está em torno disso. Que capacidade terá de formar uma frente suficientemente ampla para conseguir deter essas iniciativas.
Ao mesmo tempo percebe-se que o governo Temer recua na medida em que há uma reação, muitas vezes apenas nas redes sociais. Ele vai e volta.
Ele recua sobretudo quando tem divisão no próprio campo dele. O que está acontecendo não é o resultado da capacidade e resistência desde fora, que, aliás, tem sido interessante. Há um movimento importante de juventude no Brasil contra o governo Temer. Agora, esses movimentos não têm tido ainda capacidade de deter as iniciativas desse novo bloco.
Recentemente você escreveu que se as camadas mais populares da população não se politizarem não vai ter como bloquear esse retrocesso. Mas isso é possível?
Não só é possível como necessário. Sem conversar com a população de baixa renda não há política de esquerda. Então, vai ter que ser feito um processo de conscientização. O trabalho de base tem que ser retomado, em outra etapa, com novas realidades. Hoje não se faz política sem redes sociais. Bem aproveitadas, elas democratizam a informação e o contato. Nesse sentido, essa retomada de trabalho de base se faz em outros moldes, mas o espírito central se mantém.
Uma base que experimentou no cotidiano melhoria das condições de vida durante um período significativo.
Esse é o ponto favorável. Falando sobre São Paulo, é claro que esse voto de rejeição que alcançou a periferia não pode ser desconhecido. Por outro lado, foram mais de dez anos de governos liderados pelo PT, que fizeram uma série de coisas positivas em favor da população de baixa renda. Não há como isso ficar simplesmente desconhecido pela própria população.
Nesse momento, o que está em jogo? A democracia está em jogo?
Eu não diria que esteja no horizonte um fechamento completo. Não vejo nenhum risco de cairmos numa situação ditatorial, mas há sérias ameaças sobre a qualidade, a profundidade, as características da democracia brasileira. A democracia brasileira avançou bastante no período pós-Constituição de 1988. Surgiu um avanço democrático importante nos anos seguintes. Na sequência, antes mesmo do impeachment temos essa situação complicada de uma operação anticorrupção que se vale do arbítrio. A Lava Jato tem que continuar, ela é importante. No seu conjunto, ela é positiva e necessária, mas vem se valendo de decisões arbitrárias, que colocam em risco os direitos individuais.
E o comentário de João Doria com relação a Lula, dizendo que iria visitar o ex-presidente em Curitiba, que levaria chocolate?
As forças políticas brasileiras perderam a noção da gravidade do que está acontecendo. Tem um quê de brincar com fogo. Pode acontecer de todo mundo se queimar. Tenho para mim que as forças políticas, os partidos, não estão agindo à altura do momento histórico que vivemos. O momento é grave e precisa ser encarado com muita responsabilidade pelos dirigentes políticos. O que está em jogo é fundamental para o conjunto da sociedade. Da mesma forma, é fundamental formar uma frente de esquerda.
Às vezes me parece um pouco utópica a formação dessa frente.
Tem certos momentos em que temos que bater em determinadas teclas mesmo sabendo que elas são difíceis, porque é a direção correta. Tenho convicção disso. Nesse momento pós-eleitoral isso precisa ser dito. E é importante dizer porque, se não se conseguir, quem tiver dificultado terá que assumir a responsabilidade do que fez, historicamente falando. O nosso papel é o de alguém que está procurando entender o processo, para eventualmente dar alguma contribuição do ponto de vista analítico. Até concordo com você, não acho fácil. A eleição já mostrou que não é fácil, mas parece-me que, na etapa que estamos, é o mais correto. É o que se tem que tentar. Vamos ter que viver esse processo.
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Fonte: Brasileiros.