Racismo ambiental no Brasil

 

Crianca em lixão em Natal. Foto João Roberto Ripper
Crianca em lixão em Natal. Foto João Roberto Ripper

Por Elissandro dos Santos Santana[1], Denys Henrique Rodrigues Câmara[2] e Joceneide Cunha dos Santos[3], para Desacato.info. 

Sabiam que para homens e mulheres negros sempre reservaram os rincões mais inóspitos no Brasil? Que eles foram trazidos forçados, maltratados, humilhados através do Atlântico, oriundos de várias partes do imenso Continente Africano, e jogados nas senzalas da maldição? Muitos, inconformados, fugiram e formaram os Quilombos (embriões de luta pela liberdade). Tais espaços até meados do XIX foram construídos em lugares de difícil acesso, com fins precípuos de evitarem que os andantes em fuga fossem descobertos pelos brancos opressores. No século XIX, com o aumento de libertos e processo maior de urbanização, alguns quilombos foram presentes no meio urbano, no centro e em lugares que a população branca transitava com limitações. Os quilombos representaram, a partir da poesia do sangue, um paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que eram castelos frágeis de sonhos, também eram fortalezas simbólicas para o hoje. Alguns destes espaços não eram fixos, pois a busca do senhorio patriarcal pela captura dos viajantes sedentos pela liberdade forçava a fuga constante. Os que não se rebelaram, por medo ou por outros sentimentos ainda mais profundos e sem explicação detalhada, continuaram nas periferias da Casa Grande, na insalubridade, no limite entre a vida e a morte. As reformas urbanísticas do final do XIX e inicio do XX, derrubaram os cortiços, com isso, boa parte da população negra e pobre passou a ocupar os morros dentre outros lugares.  Atualmente, não é muito diferente, diríamos até que a práxis da opressão segue a mesma lógica embaixo do sol que nos ilumina todos os dias, pois os ritos da política exclusiva, escusa, continuam conformando, forçadamente, a criação dos guetos, dos espaços distantes e inviabilizando a oxigenação das ideias das sociedades fascistas que, na atualidade, mesmo depois da libertação dos irmãos negros repudiam as quotas, inconformadas por conviverem, nos mesmos espaços universitários, aeroportos, shoppings e em outros ambientes do Brasil ainda que temporariamente, já que o poder aquisitivo dos negros, todavia, não se equipara ao dos brancos da elite capital. Nem todos conseguem transitar pelos espaços mencionados, pois muitos ainda não conseguiram ascender nem o mínimo possível e desejado socialmente, por isso, seguem marginalizados pela política, pela sociedade elitista, subjugados aos piores lócus, àqueles mais degradados, às favelas, aos morros, às palafitas, à periferia dos espaços geopolíticos de poder e de decisão. Nos espaços de vida da maior parte da população brasileira necessitada socialmente, em especial, os negros, o Estado continua ausente no que concerne à garantia dos direitos, mas presente através do efetivo militar truculento com seus soldados do eterno vigiar e punir os milhões de Amarildos. Sabem o que isso significa? Não? Explicamos: isso se chama racismo ambiental em pleno século XXI no país dos discursos olímpicos sustentáveis.

Para os que estão estranhando o tema, sentimos em desapontá-los, informando-os que a questão não é nova, haja vista que já vem sendo discutido nos espaços acadêmicos por intelectuais e pesquisadores de várias áreas do conhecimento que se preocupam com esse fenômeno de investigação científica, pelo movimento negro estadunidense que também iniciou esse debate e que, atualmente, se estende a outras localidades e em coletivos sociais espalhados pelo país. A discussão no Brasil foi encabeçada também por comunidades quilombolas, no entanto, infelizmente com pouca ressonância. Este tema é mais que real, é triste, e existe desde que nossos primeiros irmãos negros começaram a ser trazidos. Logo na viagem, nos navios negreiros, os ambientes já eram inóspitos e degradantes, tanto que muitos nem conseguiram completar a viagem e morreram nos porões das naves.

Em tempo, externamos que sabemos que a discussão é complexa e, por isso, de forma profunda, exige diálogos em torno de campos conceituais como raça, racismo e meio ambiente. Ademais, debates nesse âmbito devem ser elaborados a partir de noções e de saberes que orbitam por pontos como conflitos ambientais, justiça social, justiça ambiental e garantias constitucionais ambientais.

Acerca de meio ambiente, nós brasileiros precisamos ultrapassar os limites dos imaginários coletivos de que este seria tangente somente às matas, aos rios, ou seja, à flora e à fauna, pois o meio ambiente é tudo e nós somos parte disso. Para que isso fique mais claro, sempre que Elissandro dos Santos Santana vai a alguma palestra para falar sobre sustentabilidade e alguém o indaga sobre o que é meio ambiente, ele costuma explicar o conceito partindo da própria empiria, do bioma no qual reside, para elucidar que tudo aquilo que está no limite da Mata Atlântica, mesmo nos espaços de abrangência onde ela não mais existe, pertence a tal ecossistema. Com isso, sempre consegue mostrar que somos parte do meio ambiente e não seres isolados a ele, mesmo que estejamos na parte artificial construída pelo bicho homem.

Já que vivemos em um meio ambiente, merecemos viver bem e em harmonia, integrando-nos a tudo e todos, pois somente assim a sustentabilidade deixa de ser discurso e vira práxis, realidade. Ocorre que nem sempre todos têm acesso a ambientes equilibrados ecologicamente e isso fere os princípios e pressupostos da Carta Magna. Infelizmente, somente as elites se concentram nos espaços mais preservados ou em recuperação ambiental. O restante, a maioria populacional, negros e todos os marginalizados socialmente, minorias colocadas para escanteio, é condenado aos espaços inócuos de luta pela sobrevivência. Nesses espaços degradados, a própria vida se degrada com o desemprego, a fome, a violência, assassinatos e tantos outros males. Tudo isso é fruto de uma arquitetura mental injusta de exploração da Terra, sem respeito à dignidade de nossa Casa Comum. E nesse bojo de injustiça ganham força discursos de meritocracia que confundem até mesmo seres inquietos intelectualmente e possibilitam que as cobranças por justiça social não ocorram e, desta forma, o status quo das elites permaneça inalterado.

Acerca das garantias constitucionais, é oportuno e imprescindível pontuarmos que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, assegura a todos, independente das diferenças que nos fazem tão plural, o direito à dignidade socioambiental. O referido artigo apresenta a seguinte discursiva: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as gerações presentes e futuras.

No primeiro parágrafo do artigo citado, afirma-se que, para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Antes de seguir com a discussão pretendida, algumas reflexões em torno do termo raça são necessárias para elucidar como nossos imaginários de preconceitos foram construídos a partir dos espaços históricos e sociais, e como fomos idiotas enxergando superioridade entre um ser humano e outro, quando, na verdade, já está mais que provado que isso não existe no terreno da cor, aliás, não existe em nenhum aspecto.

Na tese “Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulista”, Lia Vainer Schucman, valendo-se de Munanga, apresenta-nos o seguinte: a ideia de raça e de racialização do mundo é, desde então, uma das explicações encontradas pela humanidade para classificar e hierarquizar os grupos humanos. No século XVIII, a cor da pele foi considerada um dos critérios dentro desse processo de classificação pela racialização e, dessa forma, a espécie humana ficou dividida em três raças, que permanecem até hoje no imaginário coletivo: branca, amarela e negra. No século XIX, acrescentaram ao critério de cor outros critérios morfológicos, como forma do nariz, lábios, queixos, ângulo facial etc.

Para enriquecer ainda mais a discussão, é oportuno recorrer a Carlos Moore, pois este teórico traz uma contribuição que é bastante útil para uma reflexão no que diz respeito à construção do conceito de raça. A partir desse pensador, há a concepção de que Raça é um conceito, uma construção, que tem sido, às vezes, definida segundo critérios biológicos, mas que avanços da ciência nos últimos cinquenta anos do século XX clarificaram um grave equívoco oriundo do século XIX, que fundamentava o conceito de “raça” na biologia. Para ele, porém, raça existe e ela é uma construção sociopolítica.

Concordamos com o autor acima, quando ele pontua que raça existe como construção sociopolítica, e isso nos faz recordar a questão levantada por Selene Herculano, de que a ONU declarou, ao final da II Guerra Mundial, que raças não existem, para colocar uma pedra nas discussões e perseguições aos judeus. Segundo ela, realmente, não existem, pois temos todos dois olhos, uma boca, os mesmos tipos sanguíneos, etc, mas existe a crença de que elas existem, ou seja, o racismo existe. As pessoas são discriminadas por serem pobres, donde vulneráveis e brutalizadas. ‘É que elas são pobres e exploradas’ dizem os que discordam em ver nisso racismo, não é por serem negras, índias ou do nordeste. Ainda segundo a referida autora, o movimento negro combate o racismo, mas reafirma a raça, agora com valor positivo e assim realimenta a crença de que raça existe. Ademais, a academia prefere definir a questão como sendo de classe e que, todavia, os pobres são negros, índios, nordestinos. Por conta da crença em raças, ficam aparentemente justificadas a normalidade e naturalidade do fato de determinadas pessoas conviverem com lixo, se soterrarem nas enxurradas e serem expulsas de seus lugares em nome do desenvolvimento.

Desta forma, pode-se dizer que, mesmo que se parta da ótica de que raça não existe isso não anula a existência do racismo, pois, infelizmente, esse mal ainda está presente na conformação da arquitetura mental brasileira e em muitos lugares do planeta, como resultado das construções de poder que subjaz no imaginário coletivo equivocado em torno do negro e de outras minorias, como inferiores.

Como bem sinaliza a pesquisadora Selene Herculano, o tema, à primeira vista, suscita estranheza e há quem ache que teria sua dose de oportunismo e “apelação”. Mas olhe a cor da pele de quem mora nas favelas sobre os morros, nos beira-rios e beira-trilhos; olhe a cor da pele de expressivo número dos corpos levados pelas enchentes, soterrados pelos deslizamentos.

A afirmação da pesquisadora Selene Herculano se torna ainda mais rica quando fazemos o cotejo entre a estética dos corpos político-sociais que habitam os espaços equilibrados ambientalmente, aqueles com todas as condições sanitário-ambientais de sobrevivência, em sua maioria, branca ou embranquecida socialmente, com aqueles que estão do outro lado, nos trabalhos degradantes, nos lixões a ganhar a vida, nas carvoarias em condições verossímeis à da escravidão, nos damos conta do racismo nosso de cada dia que se manifesta das formas as mais diversas possíveis.

Como considerações finais, valemo-nos do que afirma Selene Herculano: o clamor contra o Racismo Ambiental levanta questões sobre a ocorrência de racismo entre nós e, segundo Tânia Pacheco, embora totalmente diferente da forma como historicamente se manifestou e se manifesta ainda nos Estados Unidos, o racismo está indubitavelmente presente na nossa sociedade. Por mais que a herança negra esteja presente na maioria de nós, biológica e culturalmente, o racismo se configura, aqui, de formas diferenciadas e muitas vezes inconscientes. E deve ser combatido em todas as suas expressões. Isso não significa, entretanto, negar que a questão seja bem mais ampla.

Ainda a partir de Selene Herculano, é possível refletir que racismo é a forma pela qual desqualificamos o outro e o anulamos como não-semelhante, imputando-lhe uma raça. Colocando o outro como inerentemente inferior, culpado biologicamente pela própria situação, nos eximimos de culpas, de efetivar políticas de resgate, porque o desumanizamos: “ô raça!” Nesse sentido, no caso brasileiro, tornamos como “raça”, e inferior – ô raça!! – também o retirante, o migrante nordestino, que passará a ser percebido como o “homem-gabiru”, o “cabeça-chata”, o “paraíba”, o invasor da “modernidade metropolitana”. Assim, nosso racismo nos faz aceitar a pobreza e a vulnerabilidade de enorme parcela da população brasileira, sua pouca escolaridade, simplesmente porque naturalizamos tais diferenças, imputando-as a “raças”. Nesse sentido, pontuamos que a discussão sobre racismo ambiental poderia ser de grande relevância exatamente para grande parte dessas categorias, quilombolas, ribeirinhos, comunidades indígenas dentre outros.

Referências para a construção do texto 

HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente – InterfacEHS. Acesso em 24 de agosto de 2016. http://www.professores.uff.br/seleneherculano/images/Oclamor_por_justi%C3%A7a_ambiental_e_contra__racismo_ambiental__9-282-1-PB.pdf

HERCULANO, Selene. Racismo ambiental, o que é isso? Acesso em 24 de agosto de 2016 no http://www.professores.uff.br/seleneherculano/images/Racismo_3_ambiental.pdf

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Acesso em 24 de agosto de 2016. http://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf

WEDDERBURN, Carlos Moore. O racismo através da história: da antiguidade à modernidade. Acesso em 24 de agosto de 2016. http://www.abruc.org.br/sites/500/516/00000672.pdf

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulista. São Paulo, 2012.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Acesso em 24 de agosto de 2016. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

[1] Colunista, tradutor e colaborador do Portal Desacato. Membro do Conselho Editorial da Revista Letrando. Ambientalista. Especialista em sustentabilidade, desenvolvimento e gestão de projetos sociais.

[2] Especialista em educação de jovens e adultos. Especialista em língua portuguesa. Licenciado em língua materna e estrangeira. Professor de língua estrangeira do CIEPS – Complexo Integrado de Educação de Porto Seguro.

[3] Licenciada, mestre e doutora em História. Professora da Universidade do Estado da Bahia, Campus XVIII.

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