Migração e esportes: a hipocrisia dos países ricos

Delegação de Refugiados, na Rio 2016, a primeira da história. Foto: Xinhua/Lv Xiaowei

Por Sergio Rodríguez G.

Tradução para Desacato.info: Elissandro dos Santos Santana.

As pesquisas científicas têm demonstrado que os seres humanos se deslocaram por todo planeta desde que passaram a existir. É uma de suas condições naturais; talvez, uma das mais importantes e transcendentes. O diferente tem sido os estudos que se tem feito a partir das circunstâncias em que se produziram e as repercussões em termos políticos, econômicos, sociais e culturais que tiveram em seus diferentes contextos por meio da história. Os instrumentos que os poderosos utilizaram em cada época denotam sua validade ou repúdio, conforme seja o caso.

A criação de Estados Nacionais na Europa a partir do século XVII e a expansão pelo poder das monarquias do Velho Continente criaram regimes coloniais que dividiram nações, modificaram tradições, culturas e costumes; além de violentar fronteiras onde existiam e colocá-las onde não existiam.  O colonialismo criou novos países nos quais se impuseram os usos, a cultura, a religião e o idioma das metrópoles. No entanto, apesar do esforço para impor uma lógica universal eurocêntrica, em cada canto do globo, os povos subjugados enfrentaram, em virtude de sua maior ou menor capacidade cultural, e de sua força civilizatória, a propagação maligna que foi imposta por meio desta avalanche, conhecida por modernidade.

O século XX impôs uma aceleração do processo colonial através da ocupação de territórios e da redução das nações, utilizando, para isso, qualquer instrumento que os poderes europeus tiveram a seu alcance. É claro, este “novo acontecimento” causaria impactos significativos nos movimentos populacionais que, durante aproximadamente um século e meio, fizeram com que o planeta se fosse construindo demograficamente de outra maneira. Ademais, o surgimento dos Estados Unidos como potência, que desde fins do século XIX, lutou por ganhar um espaço no grupo dos países que tomavam as decisões. Ainda que de forma parecida, a Rússia aspirou ao mesmo sonho, desde o início do século XX, ainda que a partir de outra perspectiva ideológica, e a localização geográfica de ambos os atores, fora da Europa Ocidental irrompeu na estrutura política do planeta durante a segunda metade do século passado, estabelecendo uma nova lógica a partir, sobretudo, da ilimitada expansão da economia estadunidense, o qual instaurou expressões inéditas dos deslocamentos humanos.

Mais recentemente (desde fins do século XX), este processo gerou indubitáveis transformações nas identidades, que, entre outras coisas, levou ao quase desaparecimento de certas “heterogeneidades”, às inovações na criação de políticas públicas em matéria de educação e cultura e a profundas mutações nas estruturas da sociedade e da economia.

Estados Unidos e Europa foram submetidos, quase desde o início do século XXI, a uma série de eventos que colocaram em evidência o fracasso de suas políticas migratórias: incremento de ações violentas, manifestações crescentes de imigrantes afetados por decisões governamentais, exclusão das minorias e exacerbação do racismo, o chauvinismo e a xenofobia, tudo acentuado pela suposição mecânica de que um imigrante é um terrorista em potencial à luz da política de “guerra ao terrorismo” inaugurada pelo Presidente Bush após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos.

A onda humana de migrantes proveniente dos países do Oriente Médio, que se calcula ao redor de 18 milhões de cidadãos ilegais chegados ao território europeu antes da “primavera árabe” e do começo da guerra na Síria mudou, para sempre, a perspectiva dos temas e das questões dos governos dos países da Europa, fazendo deste tema  uma prioridade na discussão para a tomada de decisões políticas e econômicas. No meio da última década, se calculava que Palestina, Turquia, Marrocos e Egito possuíam cada, dois milhões e meio de cidadãos vivendo na Europa, do mesmo modo, o número é de um milhão para a Argélia e meio milhão para a Tunísia e para o Líbano, de acordo com dados fornecidos pelo renomado antropólogo mexicano e pesquisador Andrés Fábregas Puig. A guerra na Síria, o surgimento do Estado Islâmico, a expansão da Al Qaeda, tudo sob o guarda-chuva e sob a visão ocidental veio a incrementar a níveis alarmantes estes números.

No entanto, revisando algumas informações, encontramos que nos Estados Unidos o maior número ao qual se chegou de migrantes ilegais foi de 12,2 milhões em 2007, o qual representava 4 % de sua população, Itália recebeu 167 mil imigrantes em 2014, segundo Euronews. Enquanto isso, os dados oficiais da União Europeia mostram que, em 2013, todos os países que compõem o bloco receberam 3,4 milhões, embora, no mesmo ano, saíram dela, 2.8 milhões, incluindo cidadãos de um país da União que se trasladaram a outro. Os maiores receptores foram Alemanha, com 693 mil, dentro de uma população total ao redor de 80 milhões, quer dizer, menos de 1%, e Reino Unido, com 526 mil, em uma população de 58 milhões, ou seja, um pouco mais de 1%. Ao olhar para estes números, não se entende o escândalo que montaram para tratar de achar respostas para um problema que eles mesmos criaram. Somente a partir de uma visão racista e xenófoba entranhada nas elites do poder e na política podem explicar a histeria frente a um problema que, como temos explicado, é tão antigo quanto a própria humanidade. Que haveria ocorrido se a Venezuela recebesse 6 milhões de migrantes, com uma população total ao redor de 30 milhões, isto é, 20 % da população (somente contando os colombianos) que teriam chegado ao país por um problema que a Venezuela não criou e que diz respeito, exclusivamente, às paupérrimas condições de vida do país vizinho, à guerra interna, ao crime organizado e ao para-militarismo? Por acaso o Presidente Chávez pediu ajuda internacional para conceder aos imigrantes todos os direitos sociais com que contam os cidadãos nascidos no país, incluindo, saúde e educação inteiramente gratuita e possibilidade de obter uma residência digna em igualdade de condições que os venezuelanos?

Mas, na verdade, o que motivou esta nota foi a consumação diante de bilhões de cidadãos de todo o mundo por um ato que revela a maior hipocrisia que jamais se esperou dos “donos do planeta”. A abertura dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro mostrou o desfile de uma delegação de refugiados que competiu sob a bandeira do Comitê Olímpico Internacional (COI), no qual dezenas de litros de lágrimas foram derramadas por tal “ato de humanidade” que se inseria em um suposto espírito olímpico. Espírito, na verdade, que excluiu do juramento inicial dos jogos a palavra Pátria, que se utilizou pela primeira vez na Antuérpia em 1920, quando os atletas se comprometiam “…pela honra de nossa pátria e pela glória do esporte” para mudá-la para “pela glória do esporte e pela honra de nossas equipes” que se utiliza agora, claramente, no processo de mercantilização do esporte que tende a esquecer os valores insuflados aos jogos olímpicos pelo Barón de Coubertin e que são expressão do verdadeiro espírito que deveria primar nos Jogos.

O risível na formação dessa delegação de migrantes (certamente inventada para que os mafiosos que dirigem o esporte mundial batam no peito) é que quando começaram os jogos, foi possível observar, por exemplo, à seleção da Suécia composta por três atletas de origem africana e quatro árabes, ou a uma jogadora de tênis de mesa alemã de origem chinesa, recebendo instruções… em mandarim, de sua técnica também alemã, e de origem chinesa. Da mesma forma, um ucraniano de origem croata competindo no mesmo esporte com um bósnio que representa a Eslovênia. Vimos um levantador de peso mexicano de origem cubana, um jogador de voleibol russo participando pela Itália e a Pedroso, uma cubana que também competiu pela Itália nos 400 metros de obstáculos. Não deixou de surpreender-me a judoca alemã por sobrenome Vargas, a futebolista da Dinamarca, em cujo dorsal se pode ler “Gómez” e o levantador de pesos Robles dos Estados Unidos, bem como o atleta britânico dos 400 metros de sobrenome não muito inglês Uhorhogu, e ao jogador de voleibol italiano Egoru, negros, ambos, como seus ancestrais, evidentemente, vindos da África.

Mas, o que ultrapassa qualquer limite de ironia e de descaramento, com respeito à origem dos atletas e a imoralidade associada com esse olhar aos imigrantes, é que da delegação de Barein, composta por 35 atletas, 10 nasceram no Quênia, 7 na Etiópia, 6 na Nigéria, 3 em Marrocos, 2 na Jamaica, 1 na Rússia e somente 6 em seu país. Este caso, nada mais é que um roubo vulgar de talentos por parte de uma monarquia corrupta e sem vergonha.

Não tenho dúvidas de que se os imigrantes ou os filhos dos migrantes tivessem integrado uma só delegação, esta seria a mais numerosa de todas, e, possivelmente, a delegação que mais medalhas conquistaria. Enquanto os governos reprimem brutalmente a emigração e tratam de impedi-la à força, se vangloriam pelos êxitos que suas nações obtêm por meio destes talentos que, independentemente do país pelo qual competiram, são expressão do melhor desta humanidade diversa e multicultural que tem todo o direito de viajar por onde desejar pelo sonho de uma vida melhor. Também são expressão do pior do capitalismo putrefato e decadente que, lamentavelmente, transformou o esporte em um negócio e os atletas em mercadoria.

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Fonte: Radio Universidad de Chile

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